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Certamente que não se trata somente de expor aqui, os significados do corpo para o homem de nossos dias, mas de pensar sobre as significações de suas formas, traduzidas pela imagem que ele veicula.

Costa (2004) nos apresenta o que ele denomina de Culto ao Corpo da atualidade e de sua conseqüente cultura somática. Com isso, afirma que a questão do culto ao corpo deve ser analisada, abordando não somente o quantum de investimento nesse movimento, mas a modalidade dessa questão nos relacionamentos intersubjetivos, esclarecendo que: “o que diferencia a atual cultura somática dessas outras não é a quantidade de tempo despendido nos cuidados do corpo, mas a particularidade da relação entre a vida psicológico-moral e a vida física.” (p. 204).

Por esse entendimento, é essencial destacar que o Culto ao Corpo dispõe de inúmeros modos para se revelar na contemporaneidade. Dentre eles, os cuidados com a sua imagem assumem um lugar preponderante. Neste espaço, a estética do corpo capturou o existir humano de modo avassalador.

De fato, na medida em que o mercado se colocou como a ordem das coisas e a tecnologia se tornou o princípio maior a oferecer conforto e segurança para toda e qualquer intervenção ao sujeito, a estética do corpo parece se apresentar como uma das muitas resultantes desse complexo jogo. Como mais um item inserido na ordem do consumo, cujo lugar de destaque atualmente é ocupado pelas cirurgias plásticas. Um item que se propõe a oferecer um leque de soluções imediatas para o alcance de um determinado formato de corpo imaginado.

Uma vez desejado, esse corpo se revela e circula na cultura, manipulado por grandes e inusitadas variedades de intervenções estéticas. Nestas, a adesão ao culto

da imagem do Corpo permanece claramente anunciada ao outro, servindo, dentre outros propósitos, como uma espécie de mediador entre os sujeitos.

Mas, que movimento é esse?

Como quer que seja, isso só evidencia que as lacunas sobre certa imagem do Corpo estão sendo presentificadas pelas intervenções cirúrgicas. Parece que algo aí ainda precisa ser dito e que, de algum modo, ainda não se fez presente nas palavras sobre sua imagem. O estatuto dela e o lugar que ocupa nos modos de subjetivação da contemporaneidade nos levam a um outro universo: àquele que faz da materialidade do corpo apenas uma passagem para alcançar uma determinada imagem.

É verdade que a imagem do Corpo, em um contexto tão virtual como o dos dias atuais, poderia parecer apenas mais uma vertente da relação do homem contemporâneo com o mundo tecnológico, uma conseqüência dele. No entanto, o que o corpo deve aparentar é o que consideramos relevante questionar. O corpo natural está rapidamente perdendo espaço para o corpo que deve parecer mesmo ter sido manipulado pela intervenção cirúrgica. Um corpo que se mostra maciçamente presente. Aliás, nunca esteve antes com uma objetividade tão descritível; mas, que simultaneamente, deve enganar, dissimular, apagar, enfim virtualizar; deixando entrever uma determinada aparência de corpo que pelo seu próprio código atual, deve ser efêmera, ou, em última análise, obrigatoriamente continuar a ser buscada. Um desejo mais que legitimado na contemporaneidade.

A necessidade atual passa a ser, então, permanecer falando sobre a imagem que esse Corpo pode apresentar e as possibilidades que se tem de modificá-la, pelas mudanças físicas impostas às suas formas. A imagem passa, então, a ser o ícone, o ponto mor de referência pessoal, e o corpo, curiosamente, apenas um modo de alcançá-la.

Para onde aponta todo esse movimento?

O Corpo concebido pela psicanálise – este que é formado pelos elementos inconscientes das vivências corporais mais arcaicas, mediados pela linguagem e por imagens que circundam tais vivências – coloca em questão esse discurso sobre o Corpo atual. Interroga o espaço que ele tem ocupado nas relações entre sujeitos e o modo como nele se humanizam.

As palavras de Fernandes, que faz uma importante observação acerca do Corpo na psicanálise, consideram:

O Corpo psicanalítico encontra seu lugar não apenas em uma anatomia e em uma fisiologia objetivas, mas também em uma anatomia própria, singular. Tal anatomia se constrói a partir do cenário fantasmático de cada um. Está claro que encontramos nas manifestações objetivas do Corpo biológico as ressonâncias desse outro Corpo, portador de múltiplos sentidos e significações em função desse cenário fantasmático. E é isso que faz do Corpo biológico um Corpo-linguagem, aberto à abordagem psicanalítica. (Fernandes, 2003, p.85).

O cenário fantasmático de que fala a autora pode ser entendido como o lugar onde a imagem do corpo tem a oportunidade de ganhar voz – sua morada mesma –; ou ainda, o lugar de expressão significante de uma anatomia imaginada que foi e é constituída pelos acontecimentos da história corporal de cada sujeito. Nesse cenário, a palavra se propõe a resgatar os significantes subtraídos de sua cadeia, recuperar os sentidos perdidos ou acrescer-lhes outros. Mesmo porque, um Corpo, que é constituído originalmente pelas palavras ditas, nos faz pensar igualmente que pode ser também

decifrável por elas, tal como defende a referida autora quando diz que “cabe a uma

abordagem psicanalítica do corpo tudo aquilo que o toca na palavra. Isto é, todas as formas de viver o corpo e de colocá-lo em palavras [...].” (Fernandes, 2003, p. 103).

Contudo, a autora faz uma importante advertência para as presentes articulações ao afirmar que, embora o corpo da psicanálise seja atravessado pela linguagem e por isso, submetido à lógica da representação, existe igualmente a possibilidade da existência do que ela denomina como o corpo do transbordamento.

Com isso, ela quer dizer que nem sempre as questões inconscientes que envolvem o Corpo estão ou podem ser submetidas a um sistema de significações. Pode, nesse sentido, coexistir um excesso que atravessa o aparelho psíquico e não se organiza segundo àquela lógica. (Fernandes, 2003)

Isso é importante, na medida em que a imagem do Corpo tanto pode ser incluída nas tramas inconscientes, que marcam a constituição do Corpo, como pensada a partir de algo que esteja para além dessa lógica da representação. Daí o sentido da expressão corpo do transbordamento, como algo que excede a própria dimensão de Corpo simbólico.

Claro que conceber as presentes questões nessa perspectiva não implica encerrar nossa proposta de aproximação de significações da imagem do Corpo, mas, ao contrário, implica no desejo em buscar outras vias que possam, de algum modo, nomear tantas interrogações. Significa, sobretudo, inquirir esse excesso e buscar conferir-lhe um lugar na história de vida do sujeito, como algo que supostamente está para além do simbólico.

Na vastidão dessas questões, o universo feminino assume uma posição de destaque, uma vez que nele existe uma submissão do Corpo aos artifícios das intervenções estéticas cirúrgicas de modo cada vez mais reiterado. Esse movimento aparece marcado, fundamentalmente, por um discurso em prol de certa imagem de corpo feminino a ser cuidada. Questão pautada menos num ideal de beleza em si, que no desejo de permanecer interrogando o próprio corpo acerca de sua imagem de feminilidade.

Nesse ponto, poderíamos abrir um parêntese e perguntar: como esse entendimento de corpo feminino chegou até nossos dias? Que trajeto histórico terá sido esse?

É o que propomos discutir a seguir.