• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3 – TESTEMUNHOS E DESEJOS FEMININOS

3.3 As mulheres e seus depoimentos

3.3.3 Terceira entrevista

Gordura localizada. Coisa... Sujeira... Você tem que jogar fora, né? Tem que tirar, né? Limpar, pronto. A sujeira pra mim, só a limpeza. Pra mim tava sujo e agora tá limpo. (Ana)

Ana tem 43 anos, é fisioterapeuta, casada e tem três filhas. Conta que se casou ainda adolescente e muito cedo se tornou mãe. Mas, relata que faltava essa

parte da profissão. O que a fez retomar os estudos e terminar sua formação profissional

posteriormente. Hoje, realizou-se como mulher - em todas as partes, tal como proferiu.

Durante seu relato, a entrevistada respondeu às questões de forma breve. Suas respostas eram sempre com depoimentos curtos; ficando sempre em silêncio olhando para a entrevistadora, esperando a pergunta seguinte. Assim, suas observações foram, em sua grande maioria, muito objetivas.

Ana conta que na infância se achava horrorosa; considerava-se feinha e

gordinha. Relata também, que quando era criança, sua mãe mantinha seus cabelos

sempre muito curtos; segundo ela: tosados. De forma que, nas festas juninas do colégio feminino onde estudava, ela era sempre o menino do par, nas danças. Conta que hoje só usa cabelos grandes, assim como suas filhas.

No que concerne à adolescência, diz que seu corpo era muito bonito. Diz que resolveu fazer plástica, justamente, para não perder o que tinha: um corpo perfeito.

Em relação às cirurgias plásticas a que já se submeteu, conta que na primeira colocou um implante de silicone. Ana diz que decidiu, por impulso, fazer a primeira cirurgia e se arrepende. Pois, na intenção de levantar a mama que considerava caída, colocou uma prótese muito grande, de modo que a mama caiu ainda mais.

A segunda cirurgia, já muito bem planejada, segundo contou, trocou a prótese por uma menor e fez lipoaspiração, embora considere que não tirou quase nada e

sofreu muito. Na terceira cirurgia, faz nova lipoaspiração, dessa vez retirando a

quantidade adequada de gordura. Refaz também a cicatriz da mama direita. Atualmente, diz-se muito satisfeita com seu corpo e sem pretensões de novas cirurgias plásticas. Disse ter recuperado o corpo que tinha na adolescência.

3.3.3.1 Breves considerações psicanalíticas

O discurso de Ana sobre seu corpo deixa entrever certa compreensão objetivada dele. Isso porque, para a entrevistada, o corpo tem um papel, uma função essencial: a de proporcionar uma completude - Ana diz que seu corpo é tudo. Em função disso, dedica-se intensamente aos cuidados corporais, tais como ginástica e programas de reeducação postural, afirmando que o corpo precisa ficar arrumadinho,

bonzinho. Justifica esses cuidados pela profissão que exerce. É como se para Ana o

corpo representasse um objeto a ser esteticamente investido; ou, um instrumento apto a proporcionar um bem-estar a si mesma.

Em outras palavras, tudo ocorre como se o corpo para Ana precisasse estar anatomicamente numa forma perfeita e devesse ser, por isso, enquadrado tanto numa estética idealizada, quanto em um funcionamento orgânico saudável; compondo assim, uma imagem de corpo fisicamente ideal. Dessa forma, se apresenta apto a exercer sua função essencial: uma gratificação narcísica. Tal como afirma:

... Eu sempre tive um... Assim, um corpo bonzinho, não é que... E eu sempre... Eu gosto do meu corpo, sabe? Eu curto meu corpo, eu curto me arrumar, eu faço porque eu gosto, eu acho que meu corpo é... É tudo. Eu gosto do meu corpo.

A imagem que Ana tem de seu corpo, podemos assim supor, é a de um corpo moldável, funcional e necessariamente admirável aos olhos do outro. Atributos que precisam ser mantidos à custa de muito empenho, no sentido, talvez, de reter para si certa imagem, marcada pela ênfase nas conformações físicas. É assim que ela permanece investindo em seu corpo. Diz ela:

Eu gosto do meu corpo. Acho que eu tenho um corpo muito legal porque eu tenho quarenta e três anos e me cuido muito pra ter o corpo que eu tenho, tá entendendo? Eu faço musculação, eu faço aula de Pilates... Você tá falando corpo, corpo físico, não é isso?

Em seu discurso, as cirurgias plásticas pelas quais passou, parecem significar, numa importante medida, um resgate do seu corpo da adolescência – um corpo de aparência mais feminina – de linhas e formas bem delineadas. Também sob o aspecto do resgate inconsciente de características físicas, situa-se o desejo de Ana por cabelos longos. Aqui, porém, o desejo parece ser o de romper com o corpo de menino de sua infância, talvez idealizado por sua mãe.

Por outro lado, a cirurgia para refazer a cicatriz abaixo de sua mama direita parece revelar certo incômodo em sustentar aquilo que talvez considere esteticamente inadequado. Como no parágrafo anterior, também supomos o resgate inconsciente de um tempo onde o corpo ocupava certa posição fálica14 – um corpo que ela tinha e que, de alguma forma, perdeu ao longo do tempo. Sobre isso, Ana afirma:

Eu sempre tive esse corpo e o meu corpo quando eu era solteira ele era realmente muito bonito, eu acho que por isso que eu fiz cirurgias plásticas, até para não perder o que eu tinha. [...] Eu tinha um corpo legal.

Associado a essa idéia e ao afirmar que a mulher ocupa vários espaços, Ana parece dizer que a mulher precisa necessariamente realizar seus ideais narcísicos . Supomos isso quando ela afirma que a mulher tem que agitar, se arrumar, se produzir,

sair, badalar, passear, lutar e vencer. Como numa cadeia associativa, na qual a última

instância é a da vitória. Seria, de certo modo, afirmar que a mulher não pudesse ter faltas. Como se ela precisasse ser onipotente e onipresente para ser mulher.

Entretanto, nessa passagem, parece inscrever-se certa angústia de castração, em que a idéia da passividade feminina é considerada como aterradora. É como se através da negativa, Ana estivesse deixando em certa evidência, a ameaça inconsciente em ser uma mulher faltante. Exalta assim, seus papéis de mulher:

[...] Aquela mulher passada, dona de casa, eu tenho verdadeiro horror... A mulher tem que ir à luta, tem que vencer. [...] Pra mim faltava, como mulher,

14

Compreendendo essa posição do corpo a partir da concepção lacaniana dos Três tempos do Édipo, discutida no capítulo anterior.

essa parte da profissão, tá entendendo? Aí agora eu acho que eu tô altamente satisfeita com tudo que me rodeia. Como mulher, assim... Mulher em todas as partes, de esposa, de mãe, de empresária, de profissional eu me realizo, tá entendendo? Hoje eu tô altamente realizada, graças a Deus.

Podemos dizer também, que, para Ana, o corpo parece representar um acesso para exercer sua posição feminina. Posição essa que aqui aparece expressivamente veiculada pela idéia de um corpo arrumado, direitinho. Ou seja, um corpo que foi, de certo modo, retomado através de uma imagem inconsciente passada e que agora, pode ser mostrado numa organizada e adequada perspectiva estética. É o que disse prontamente quando questionada sobre como se via hoje como mulher:

Hoje eu tô super... Assim, super feliz com meu corpo. Tô realizada com tudo o que eu fiz. Gosto do meu corpo, gosto de ver assim... Me arrumar, de ver tudo arrumadinho, tudo direitinho. Gosto de botar uma roupa legal, que fique... Que mostre que o corpo tá legal. [...]. Eu tô super feliz com meu corpo hoje. Em todos os sentidos.

Enfim, o que chama nossa atenção é o lugar que a cirurgia plástica parece ocupar em função do desejo de reviver inconscientemente um processo de perda. Ou melhor, diante de uma perda simbólica – o corpo feminino ideal da adolescência – Ana parece seguir em busca do resgate de suas formas, da perfeita adequação de seu desenho estético. Refaz sua cicatriz, intervindo no real do corpo, para que algum processo simbólico a possa reconduzir a certo lugar inconsciente: a imagem idealizada de seu corpo. Só então pode dizer-se hoje, uma mulher realizada - em todas as partes.