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Há nesse percurso conceitual um outro aspecto importante a ser ressaltado, a saber, a diferença entre imagem e esquema corporal. A importância em definir tal distinção justifica-se na medida em que se posicionar diante das questões corporais implica posicionar-se diante do esquema ou da imagem do corpo. O que resulta em destinos subjetivos completamente diversos para o sujeito.

Nas concepções de Dolto (1984), a imagem do corpo distingue-se do esquema corporal na medida em que aquela, em sua constituição, faz-se a partir dos destinos do desejo materno endereçado ao bebê; engendrando, assim, um desejo próprio, pertencente a um único sujeito, que então vai se situando com uma história imaginária de seu corpo próprio. Diferentemente do esquema corporal que, tal como concebe, aponta para certa generalização dos sujeitos em relação à funcionalidade de seus corpos. Apresenta-se, ainda, como o suporte da imagem do corpo, sendo seu intérprete ativo ou passivo. De modo que, permitindo a objetivação de uma relação libidinal, o esquema corporal coloca-se como meio para fazer circular e comunicar a dimensão fantasmática desta relação.

Distingue Dolto (1984):

Se o esquema corporal é em princípio, o mesmo para todos os indivíduos (aproximadamente da mesma idade, sob um mesmo clima) da espécie humana, a imagem do corpo, em contrapartida, é peculiar a cada um: está ligada ao sujeito e à sua história. Ela é específica de uma libido em situação, de um tipo de relação libidinal. Daí resulta que o esquema corporal é, em parte, inconsciente, mas também pré-consciente e consciente, enquanto que a imagem do corpo é eminentemente inconsciente [...] (p.14).

Desse modo descrito, o esquema corporal faz referência mais de perto a algo da realidade física do corpo, na qual a funcionalidade orgânica do ser humano enquanto espécie se destacaria, ainda que nas modalidades consciente, inconsciente

ou pré-consciente. Enquanto que a imagem do corpo diz respeito a algo mais singular da história desse corpo. Algo da compreensão subjetiva de uma realidade corporal que aconteceu com um sujeito e não com outro.

Mas, no que implica essa diferença no tocante ao posicionamento do sujeito em relação ao seu corpo e à imagem que faz dele?

Ainda para a referida autora, as tensões de dor ou de prazer no corpo, de um lado, e as palavras vindas de outro, colocam em relação o esquema corporal e a imagem do corpo. São suas as palavras:

Edificada na relação linguageira7 com o outro, a imagem do corpo constitui o meio, o ponto de comunicação inter-humano. É o que explica, inversamente, que o viver em um esquema corporal sem imagem do corpo, seja um viver mudo, solitário, silencioso, narcisicamente insensível, nos limites da miséria humana... (Dolto, 1984, p. 30)

Isso quer dizer que, quando existe um outro com sua palavra, diante daquele que está se constituindo – uma testemunha humana, real ou lembrada, tal como descreve Dolto –, o esquema corporal se cruza com a imagem do corpo. Sendo o primeiro, lugar da necessidade e da vitalidade orgânica, e o segundo, o lugar do desejo. Assim, a imagem do corpo deve sua estrutura à comunicação entre sujeitos. É nisso que cumpre referi-la – a um intersubjetivo imaginário marcado no ser humano pela dimensão simbólica (Dolto, 1984).

Para Dolto (1984), enfim, a imagem do corpo deve ser referida ao desejo e não vinculada de modo exclusivo à necessidade. Trata-se da imagem do corpo que coexiste com a expressão do sujeito e testemunha a falta de ser, que o desejo terá sempre a intenção de preencher. São suas as palavras:

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Nas notas dos tradutores da referida obra encontramos a seguinte explicação: “O termo langagier, aqui traduzido pelo galicismo ‘linguageiro’, é um adjetivo que expressa em Dolto o sentido de ‘falar-se’, ‘comunicar-se’, nesse momento específico, ‘imagem falante do corpo’. [...] A idéia é trazermos para o português um texto tão próximo quanto possível do original de Dolto, mesmo que com isso percamos em sonoridade, fluência, em nossa língua. (N. da T.).” (p. 11)

É por meio da palavra que desejos findos puderam organizar-se em imagem do corpo, que lembranças passadas puderam afetar zonas do esquema corporal, tornadas, conseqüentemente, zonas erógenas, ainda que o objeto do desejo não esteja mais ali. [...] Se não houve palavras, a imagem do corpo não estrutura o simbolismo do sujeito, mas faz deste um débil ideativo relacional. (p. 30).

Jerusalinsky (2004), em sua maneira de abordar o problema, afirma que o esquema e a imagem corporal são produzidos pelo significante. De modo geral, isso significa dizer que, o esquema e a imagem corporal se articulam igualmente em função da posição subjetiva na qual o sujeito se coloca em referência a um e outro aspecto. Tudo irá depender do sujeito, que, em função das identificações primeiras ao seu semelhante, pode ser lançado pelo significante em direção ao real ou ao registro simbólico de seu corpo.

Esse autor diz, ainda, que o esquema corporal isoladamente, nada seria e nem teria limites se não fosse uma contenção simbólica que lhe desse sentido, que lhe desse significação. O esquema então, faz sim, certa referência aos automatismos do corpo, mas a intervenção do significante lhe dá molde e ordena certo funcionamento do corpo que, por sua vez, fará referência ao desejo inconsciente. O entrelaçamento do esquema com o que é da ordem do simbólico engendrará, portanto, uma posição subjetiva em relação ao que é impossível apreender: o real do corpo, ou melhor, sua objetividade mesma (Jerusalinsky, 2004).

Essa complexidade das interações inconscientes presentes na formação da imagem do corpo e sua interface com o esquema corporal dão o tom e a forma à singularidade do desejo, em nome do qual nos posicionamos com nosso corpo e por ele, diante do outro.

Por conseguinte, essas concepções nos fazem retornar à problemática ora proposta, quando colocamos em questão o movimento que impele algumas mulheres a intervir na materialidade do corpo de modo tão contundente – tal como nas cirurgias plásticas –, mas que parece evidenciar, por outro lado, o quanto elas permanecem

situadas na dimensão imaginária desse corpo. Atreladas como parecem estar a uma imagem idealizada de corpo, como uma promessa de realização corporal.

Neste sentido, Rosenfeld (2005) traz um elemento que nos interessa sobremaneira, a saber, a dinamicidade da imagem do corpo, a qual demonstra, em última instância, a possibilidade de sempre repensá-la. Assim, descreve:

A imagem do corpo é incessantemente criada e recriada. As carícias e as primeiras manifestações de ternura das pessoas que cercam a criança pequena dão molde e forma a essa imagem de seu próprio corpo através da contenção (containment) e do contato ocular. Trata-se de um processo dialético, no qual o meio ambiente desempenha também um papel. (Rosenfeld, 2005, p. 930).

Sobre a citação, importa assinalar os elementos que, segundo o autor, estariam envolvidos na gênese da imagem do corpo. Conceitual e teoricamente, a interação desses elementos, presentes entre mãe e bebê, dá a importante idéia da forma que tomará essa imagem do corpo para o sujeito. Mas, cumpre destacar o modo como ele afirma que a imagem do corpo é incessantemente criada e recriada. À vista disso, podemos supor que é aí que residem as demandas do sujeito em relação a essa imagem que, apesar de já ter sido inscrita lá nos primórdios de sua história pessoal, continua a interrogar o sujeito em busca de certa compreensão de seu corpo. E que, de algum modo, pede a ele que repense a imagem de seu corpo.

Mesmo entendendo que esta é uma condição humana, não podemos deixar de questionar: o que permanece dessa imagem primeira? O que se dá nos desdobramentos posteriores? Que elementos inconscientes do estatuto dessa imagem ainda continuam demandando tais desdobramentos? De que falam esses desdobramentos?

Em termos outros, não se trata tão somente de afirmar que uma imagem de corpo é criada e recriada incessantemente, mas chamar a atenção para o que habita nesse movimento de criar e recriar uma imagem. Ou seja, pensar em como podemos

mapear um desejo que não cessa de questionar a imagem do corpo, tal como tem ocorrido nos dias atuais. Esse ponto ocupa lugar essencial em nossa problemática e nos interessa de perto poder pensar mais especificamente sobre as ressonâncias psíquicas dessa dinâmica da imagem do corpo.

Refletindo assim, é possível questionar certas intervenções no real do corpo – como já ressaltamos acima – e o modo como se apresentam articuladas às dimensões imaginárias e simbólicas do corpo. Diante disso, o que poderíamos colocar aqui em jogo? A objetividade de um corpo que se faz exaustivamente presente, mas que, paradoxalmente parece jamais se deixar apreender? Os apelos imaginários ao real desse corpo, com todo seu mapeamento milimétrico? Ou a dimensão simbólica de um corpo esculpido pelas mãos e olhar do outro, ou seria do Outro? Que discordâncias e concordâncias podemos crer existir entre tais espaços?

Como quer que seja, há sempre certo desconhecimento a respeito da imagem corporal; aquilo que não se apreende mesmo, tal como abordamos acima quando discutimos alguns elementos da formação da imagem do corpo e aqui tornamos a insistir. Algo que sempre fará eco e enviará continuamente apelos ao real desse corpo. De modo que, uma questão importante poderia ser interrogar, no discurso que circula a questão dos excessos e das faltas desse corpo, certo desajuste que não há como sanar: o imaginário e o simbólico tentando mapear esse real do corpo.

A origem disso tudo está certamente na passagem da primeira experiência de corpo, que é a de um corpo fragmentado, para a dimensão da primeira imagem, um primeiro movimento de unificar esse corpo, sentido antes como despedaçado. O estádio do espelho apresenta-se então como essa possibilidade, o espaço que favorece a percepção do corpo como unificado, essencial para a existência humana.