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Cultura, Identidade e Memória

No documento Centro cultural Mafalala (páginas 88-95)

2.2 ESTÓRIAS, UMA IDENTIDADE

2.2.1 Cultura, Identidade e Memória

Nas palavras de Lobato (1952), ao abordar o tema da cultura, não podemos olhar apenas para o lado da vida artística de um povo ou de comunidade. Segundo o autor, a cultura é uma atitude perante a vida, uma interpretação desta e, como tal, abrange os diversos aspectos de uma sociedade que é definida como agregado humano com interesses e aspirações em comum num determinado lugar.

É neste sentido de Lobato (1952) e com base em Bauman (2012), que é explorado o conceito de ‘cultura’ e que este pode ser estudado e observado de diferentes pontos de vista. Num primeiro sentido, como conceito hierárquico, onde o termo “cultura” encontra-se tão enraizado na mentalidade ocidental que todos o conhecem e usam, embora, muitas vezes de forma irreflectida do seu significado. Tende a ser usado como modo classificativo de terceiros, com quem existe contacto diariamente, segregando-os a nível cultural. Nível cultural num sentido de distinção do que é uma “pessoa culta”, ou por outras palavras, se é instruída e educada segundo os parâmetros que são familiares ao observador. É natural que haja reprovação de alguém que não corresponda aos padrões do grupo em que o observador se insere, pela sua “falta de cultura”. Conforme Bauman, este conceito hierárquico de ‘cultura’, pode ser herdado ou adquirido ou numa segunda vertente, pode ser moldado e adaptado por parte do ser humano. Num segundo prisma, o autor reflecto sobre o conceito de ‘cultura’ como uma forma diferencial. É um termo usado para distinguir e explicar as diferenças visíveis entre comunidades. Ainda que possa ser um termo não tão conhecido na antiguidade clássica, o povo grego. Ao longo da sua história, os Gregos encontram variados povos e eram conscientes das diferenças entre si, ainda que olhassem para essas diferenças como desvios do que seria para eles o padrão normal.

Este conceito diferencial de ‘cultura’ é sustentado por diferentes princípios. Um deles, baseado na crença lockiana27, onde os seres humanos

não são determinados apenas pelos seus genes hereditários e não está preparado para o modo de vida humano. Assim, são deixadas várias pontas soltas, para que o Homem possa amarrá-las de diferentes formas e em consequência dos determinantes naturais que encontra. Numa segunda premissa, as capacidades biológicas do ser humano são incompletas. As variadas formas socioculturais, são mutuamente exclusivas e correspondem a um conjunto de condições biológicas.

Segundo Lobato (1952) e olhando para cultura partindo de Goethe28,

que entendeu, através das suas viagens a Itália, que existe uma comunidade de hábitos, pensamentos e gostos entre o individuo e o meio em que este vive. Para Goethe, é isto que constitui a Kultur29.

“A Kultur, são as maneiras de viver e pensar colectivas que um povo forma durante o longo contacto com a natureza no decurso de lutas que sustenta contra ela. São também as transformações que introduz na natureza que o cerca. Estas maneiras colectivas de pensar e sentir, de agir ou de se organizar num país determinado, sob determinado céu, são, por outro lado, o fundamento necessário de toda a obra de arte.”

(LOBATO, 1952:47).

Lobato (1952) diz que Goethe descobre a ligação que existe entre o artista e o povo a que pertence. Um torna-se independente do outro e é neste sentido que cada país começa a procurar as raízes, os fundamentos da sua cultura, perdendo-se assim, a ideia de Kant30 e Herder31, uma vez que

consideravam a cultura como um bem comum a todos os homens. A cultura torna-se, em grande parte, o que sectoriza as civilizações, embora evoluam

27 Jonh Locke – Filósofo inglês do Séc. XVII

28 Johann Wolfgang von Goethe – Filósofo alemão do Séc. XVIII 29 Conceito Goethiano de Cultura

30 Immanuel Kant (1724-1804), foi um filósofo alemão, fundador da “Filosofia Crítica” - sistema que procurou determinar os limites da razão humana.

paralelamente, é pela cultura que se impõem e representam. Lobato faz referência a um outro autor, Tomás Mann32 que fala sobre a ‘Cultura’ como

uma base colectiva a onde os indivíduos pertencem a subdividem em agrupamentos “psico-socio-geográficos”, mas sempre com uma marca individualista.

“A cultura dum povo que vive em determinado meio é produto da interpretação do homem e do meio em que vive, feita em gerações sucessivas, no fluir constante da vida, quando com a linhagem das gerações se cria a mentalidade local, característica, de acções e reacções que geram por sua vez a constância dos problemas e as ansiedades permanentes que dão sentido ao viver humano. Sem isto não vejo que possa existir uma cultura como expressão das lutas, dos sacrifícios, das aspirações, das reivindicações e das conquistas de uma sociedade.”

(LOBATO, 1952:51)

“A cultura dum povo é sempre a síntese dum passado que se exprime no presente com o dinamismo suficiente para ser o guia determinante do futuro. Nasce com uma sociedade em determinado meio geográfico e evolui com ela, até com ela morrer.”

LOBATO, 1952:51-52

Segundo este excerto de Lobato, só se é possível ter uma visão retrospectiva de uma cultura, só é possível conhecer o passado embora se torne difícil de datar o início de uma cultura. É possível datar factos, determinar influencias e investigar as fontes, mas tudo isto é apenas o lado aparente de qualquer cultura. A cultura de determinada sociedade, ainda que constituída por diversas classes, grupos e famílias, reflecte os seus problemas. É neste sentido que Lobato cita variados autores a fim de dar a

32 Thomas Mann (1875-1955), foi um escritor alemão e recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, em 1929;

conhecer diferentes e/ou complementares pontos de vista acerca do conceito de história.

Segundo Lobato 1952, para Ortega33 a história é um sistema das

experiências humanas, todas encadeadas de forma rigorosa e única. Já para Bernheim34 a história é a ciência que explora e expõem os factos da evolução

humana, determinadas num espaço e tempo específicos, com todas as suas acções, singulares e colectivas. Já Lonrentz, chama à história de “ciência experimental”, ciência essa que dá a conhecer e desenvolve, na sua sucessão temporal, as acções dos homens tendo em conta todas as suas causas internas e externas a fim de se dirigir conscientemente os estados políticos e sociais de uma comunidade. Para o próprio autor, Lobato, a história traduz- se na acção do homem, enquanto individuo singular e colectivo, no tempo. Depois de Kant, começa-se a ter noção de dois mundos distintos. O da Natureza e o da Cultura. O mundo da história é toda a cultura assim como o mundo da ciência é toda a Natureza. O autor chega à conclusão que a cultura integra todo um processo evolutivo próprio e que é estudado e registado pela história. Por isto mesmo, a história é, na sua essência, a história da Cultura.

Conforme Halbwacks (1990), é importante que não se confunda a História com o que é a memória colectiva de uma determinada comunidade ou povo. Para o autor, a História é a compilação de factos que ocupam parte da memória dos homens, factos esses que foramaprendidos em livros ena escola. A história inicia-se a partir do momento em que a tradição finda. Ou seja, quando deixa de existir memória social de determinado facto ou costume. Para que exista e seja considerado ainda uma memória, é necessário que o individuo, seja enquanto singular ou enquanto grupo, tenha que procurar nas suas lembranças. A memória colectiva distingue-se assim da História como algo que ainda está vivo na consciência do grupo que a detém, sem ultrapassar os seus limites. Já a História, ultrapassa os limites de um grupo tornando-se universal e necessário de aprendizagem para que não

33 Teófilo Ortega (1837-1919), foi uma figura da Cultura Contemporânea, médico, cientista e escritor;

seja esquecido. Outra característica que Halbwacks refere para distinguir a memória colectiva da História é o facto de esta última ser apenas uma que se subdivide em diversos temas enquanto que, a memória colectiva, existe em múltiplas vezes. O grupo que vive o acontecimento, tende a perpetuar o mesmo, os sentimentos que sentiu e as imagens do que assistiu. O grupo quando busca essas memórias, sente que permanece o mesmo e toma consciência da sua identidade ao longo do tempo.

A História é um quadro de mudanças e que sugere que as sociedades estão em constante metamorfose. A memória colectiva é um quadro de analogias e que convence o grupo que permanece o mesmo, o que se altera são as relações do grupo com terceiros.

Halbwacks (1990), refere e aborda ainda Auguste Comte35, no sentido

de explicar que o equilíbrio mental dos indivíduos mantem-se porque os objectos com que se lida e convive diariamente pouco se alteram com o tempo, oferecendo uma imagem de permanência e estabilidade. Quando, por alguma razão, o individuo, é obrigado a mudar de quadro cénico e se encontra num novo entorno material, a primeira reação, instantânea e antes de se adaptar, é estranhar e passar por um período de incerteza. A matéria que nos rodeia leva a nossa marca e a dos outros que a vivem. A estabilidade da habitação, da rua, do bairro, e os seus aspectos impõem ao grupo que os vivem uma sensação apaziguante e de continuidade. Quando um grupo se

insere num mesmo quadro e espaço, tende a transformá-lo à sua imagem

enquanto que, simultaneamente, adapta-se aos objetos que que a ele resistem. Por isto mesmo, qualquer acto de intervenção na cidade, independentemente de ser arquitectónico ou não, deve procurar a identidade do lugar em que se insere para que deste modo se obtenham ferramentas para que se possa controlar a intervenção e dominar o território e os seus mecanismos de transformação para que assim se chegue a um resultado em que convirja tudo num só contexto. Isto remete-nos para o Genius Loci, abordado por Schulz, o génio do lugar que é habitado pelo

35 Auguste Comte (1798-1857), Filódofo Francês, foi um dos fundadores da Sociologia e do Positivismo;

Homem, o conjunto de características físicas e sociais (arquitectura, linguagem, hábitos) que caracterizam determinado lugar e que cria a tal identidade do lugar que o arquitecto ou o individuo interveniente deve encontrar. Nesta sequência, também Halbwacks (1990) refere que cada detalhe e aspecto de um lugar tem um sentido que, apenas é alcançável para os membros do grupo que o vive e sente diariamente.

“Assim se explica como as imagens espaciais desempenham um papel na memória colectiva (...)” “(...) o lugar recebeu a marca do grupo e vice- versa. Então, todas as acções do grupo podem-se traduzir em termos espaciais, e o lugar ocupado por ele é somente a reunião de todos os termos.” HALBWACKS, 1990:93

Lynch (1960), diz-nos que a cidade é idêntica à arquitectura, uma vez que se trata de uma construção no espaço, mas a uma escala muito maior e que apenas se torna percetível no decorrer de largos períodos de tempo. A cidade tem muito mais do que apenas se pode ouvir e ver. Nada é possível de se conhecer sem que esteja introduzido no seu meio ambiente com toda a cadeia de acontecimentos e recordações de experiências passadas. A cidade “é o produto de muitosconstrutores que constantemente modificam a estrutura por razões particulares: Se, por um lado, podem manter-se as linhas gerais exteriores, por outro, há uma constante mudança no pormenor. Apenas parcialmente é possível controlar o seu crescimento e a sua forma. Não existe um resultado final, mas somente uma continua sucessão de fases.” (Lynch, 1960:12)

Para Halbwacks (1990), os diversos quarteirões que existem numa cidade, bem como os seus constituintes, praças, ruas, habitações e outros edificados, estão ligados ao solo onde foram implantados. O grupo que habita e vive cada cenário, ganha a percepção de que o aspecto envolvente não se altera. O autor explica ainda que são as áreas urbanizadas mais pequenas e antigas das cidades, locais de onde os moradores pouco saem a não ser para ir trabalhar, que se formam pequenos mundos isolados da restante cidade. Os hábitos locais são resistentes à mudança e as maiores transformações de cidades dão-se no decorrer da história, consequência de

desastres naturais ou acontecimentos marcantes como invasões, ocupações, incêndios, entre outros. Toda a memória colectiva é desenvolvida num determinado quadro espacial, assim como a actividade conjunta relaciona- se com o lugar, com a parte espacial em que se insere.

No documento Centro cultural Mafalala (páginas 88-95)

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