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De acordo com o histórico pronunciamento de Ernest Renan (1882), a nação é uma consciência moral, onde o essencial é que os indivíduos tenham muitas coisas em comum e que também tenham praticado o esquecimento. Um século após, Anderson (2008 [1991]), que revisita a definição de Renan, cunhou uma acurada definição: nação é uma “comunidade imaginada”, limitada e soberana. De acordo com esse autor, imaginada porque os membros da nação têm em mente um espírito de comunhão, embora – mesmo na mais minúscula delas – “jamais se conhecerão, se encontrarão, ou sequer ouvirão falar da maioria de seus companheiros indivíduos (p. 32)”. Comunidade porque “sempre é concebida como uma profunda camaradagem horizontal” (p. 34).

“Não se imagina no vazio”, diz Schwarz (in ANDERSON, 2008). No que parece sensato trazer Hall (2006), quando diz que as culturas nacionais - compostas de

instituições, símbolos e representações - são fontes de identidade cultural, uma vez que produzem sentidos sobre a nação e servem como discurso.

Não interessa a este trabalho se aprofundar nas origens e transformações do conceito de nação e nacionalismo, o que importa é estar teoricamente sedimentando a idéia que, no ritmo da industrialização e como dispositivo da modernidade, as culturas nacionais funcionam como sistemas de representação e, neste sentido, buscam costurar as diferenças numa única identidade (HALL, 2006, p. 65).

No entanto, com a globalização e a compressão da relação espaço-tempo, Hall (2006) percebe um deslocamento “das identidades centradas e fechadas de uma cultura nacional”, considerando três conseqüências possíveis da globalização para as culturas nacionais e as identidades produzidas por elas: 1) a homogeneização das

identidades globais - sobre este aspecto, esse autor sugere três qualificações: a) a

tensão entre o global e o local, pois a globalização caminha em paralelo com a exploração das diferenças locais; b) a desigualdade da distribuição da globalização ao redor do mundo; c) a ocidentalização do fenômeno globalização, uma vez que as redes globais ainda são dominadas pelas indústrias culturais ocidentais; 2)

possibilidade de fortalecimento de identidades locais, possivelmente baseadas na

afirmação de grupos étnicos que se sentem ameaçados pela presença de outras culturas; 3) produção de novas identidades, pois há um entrelaçamento entre identidades diferentes.

A perspectiva de Hall (2006) é compreender a identidade cultural na pós- modernidade, embora na esteira da abordagem interpretativa da cultura e no avanço

das perspectivas intelectuais pós-modernas - que alardeiam a fluidez de tudo e certa impossibilidade de se falar em homogeneidade – há uma sinalização de alguns antropólogos para o abandono da idéia de cultura nacional (BARBOSA, 2009).

D´Iribarne (2009) defende que, servindo-se da mesma abordagem interpretativa nas investigações sobre como as culturas nacionais influenciam o funcionamento das organizações, não encontrou incompatibilidade entre a unidade presente no âmago de uma cultura e a modificação de práticas com o decorrer do tempo. Esse autor considera que um medo fundamental e as representações desse medo e das vias de salvação no imaginário social são as chaves que sugerem formas de encontro entre o que permanece e o que muda “quando os membros de uma sociedade evocam seu funcionamento coletivo” (p. 27).

Utilizando esta intersecção com o contexto das organizações, o conceito de cultura nacional tem sido continuadamente aplicado nos estudos organizacionais por meio da análise de traços da cultura brasileira que podem ser identificados no cotidiano das organizações e que influenciam o comportamento dos agentes.

O ponto de partida é, em grande parte, a idéia que a cultura nacional é um componente importante na formação da cultura organizacional e que, desta maneira, não pode ser desprezado, pois serve como fonte de influência para ações administrativas (LAURENT, 1989, citado por BARROS E PRATES, 1996).

Foi desta maneira que a partir de pesquisa quantitativa com 2.500 executivos, Barros e Prates (1996) apresentaram o “estilo brasileiro de administrar”, fruto de um sistema de ação cultural composto por quatro subsistemas: o institucional (ou formal),

o pessoal (ou informal), o dos líderes e o dos liderados. Para esses autores, traços culturais exercitam a intersecção entre os subsistemas, modelando o jeito de ser brasileiro, “uma construção nacional que a distingue de outras nações” (TANURE, 2009, p. 44). A pesquisa de Barros e Prates (1996) foi posteriormente estendida a mais 1.732 executivos no segundo momento e trabalhada de maneira individual por Btânia Tanure nos últimos anos, que vem apresentando suas considerações sobre as singularidades da gestão à brasileira.

Mas ainda na primeira metade da década deste novo milênio, surgiram críticas sobre a produção acadêmica brasileira da década de noventa na área de cultura organizacional - incluindo-se no caso o trabalho de Barros e Prates (1996); entre as principais, pode-se citar Alcadipani e Crubellate (2003). Esses autores apontam, a partir de uma perspectiva teórica pós-moderna, ressalvas, entre outros aspectos, à generalização das conclusões sobre a cultura brasileira e a adoção de uma estabilidade dos chamados traços culturais nacionais, nos estudos organizacionais, ao longo dos tempos.

Em reflexão sobre as críticas, Caldas (2009) faz primeiro uma divisão entre as principais correntes de pesquisa na produção acadêmica nacional, na área de organizações. Para esse autor, três correntes se sobressaem: a empirista quantitativa, inspirada em Geert Hofstede; a empirista qualitativa, que faz análise empírica de estudos de caso aprofundados, focando-se em traços culturais; e a antropológico- histórica, “que parece derivar generalizações conceituais da cultura brasileira de relatos históricos ou antropológicos quanto ao país” (p. 62).

Quanto às duas primeiras correntes, Caldas (2009) reconhece o potencial das críticas sobre a tradição quantitativa (variáveis padronizadas, representação da cultura como estável ao longo do tempo etc) e ressalta que a reflexão sobre a crítica permite alternativas de pesquisas de natureza qualitativa. Estas, que compõem a segunda corrente, acreditam que o estudo aprofundado permite revelar traços culturais que não aparecem por meio de questionários e que não são derivados “necessariamente da história do país como um todo”, mas também são objeto de criticas pela tendência que apresentam nas generalizações sobre a cultura brasileira.

Sobre as críticas à terceira linha de pesquisa, a de base antropológico- histórica, notadamente sobre as considerações de Alcadipani e Crubellate (2003), Caldas (2009) faz ainda reflexão mais aprofundada, até pelo fato de nela se inserir, e rejeita o argumento dos críticos sobre a influência das premissas de Hofstede de forma generalizada nos estudos culturais brasileiros, pois, segundo ele, nesta linha antropológico-histórica muitos até discordam da quantificação de perfis culturais e de estudos interculturais. Caldas (2009), não obstante, acolhe dois outros argumentos da crítica: o fato dessa linha ter como base relatos históricos sobre o Brasil que podem já não ser válidos para compreensão da contemporaneidade, diante da possível mutação de traços culturais ao longo do tempo, e a generalização dos traços culturais “para chegar a uma cultura organizacional brasileira”, ignorando a multiplicidade cultural brasileira.

Ainda no mesmo texto, Caldas (2009), que se diz motivado por essas críticas à terceira linha de pesquisa e pelo o que ela deixou de produzir (a pesquisa de base histórica brasileira sempre se referiu às implicações do passado no presente, mas

nunca estabeleceu análise do presente para fazer reflexões sobre o futuro), apresenta quinze proposições e um modelo conceitual para uma “cultura nacional múltipla e fluida”, conforme Quadro 03.

Quadro 3: Proposições sobre o contexto cultural brasileiro

PROPOSIÇÕES DECORRENTES DAS PRESSÕES PELA HETEROGENEIDADE

PROPOSIÇÕES DECORRENTES DAS PRESSÕE PELA HOMOGENEIDADE

P1: no Brasil, devem ser observáveis pelo menos cinco regiões culturais distintas, provavelmente compostas de muitas outras subdivisões internas: (1) Sudeste Urbano, (2) Sul Urbano, (3) Norte e Nordeste Costeiros Urbanos, (4) cultura Amazônica e (5) cultura Rural Brasileira

P2: o Sudeste brasileiro constitui um agrupamento cultural distinto no Brasil e seus padrões culturais devem ser os mais próximos daqueles da “alter-cultura” hoje projetada na maior parte do país.

P3: em áreas com fortes diferenciais históricos, como o Sul Rural do Brasil, deve haver uma maior dispersão em relação à “alter-cultura” do país do que em centros urbanos maiores e de mistura étnica mais intensa P4: áreas com fortes padrões históricos de migração, como o Sul Rural do Brasil, devem fortemente afetadas por resíduos de cultura européias ocidentais e centrais e/ou subculturas originárias de seus fluxos migratórios; P5: também devem ser perceptíveis subconjuntos culturais transregionais que diferenciem entre subculturas de desenvolvimento econômico distinto: por exemplo, a dispersão cultural ou as diferenças entre as populações pobres de cidades tão diversas quanto São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Salvador devem ser

significativamente menores que a dispersão cultural ou as diferenças culturais entre os grupos mais abastados das mesmas cidades.

P6: quanto maior for o acúmulos de bolsões de

desenvolvimento fora do Sudeste, mais esses novos centros irão desenvolver culturas distintas de suas origens e/ou criar híbridos culturais extraídos de seus padrões culturais originais e dos padrões do Sudeste.

P7: quanto maior o nível de dependência (econômica, cultural) do Brasil, maior será a tendência à homogeneização cultural, atualmente em direção a padrões culturais anglo-saxônicos. P8: quanto maior o foco e os resultados do Brasil em desenvolvimento institucional, maior será a tendência à homogeneização cultural, provavelmente em direção aos padrões anglo-saxônicos que definiram e defenderam essas tendências institucionais adotadas.

P9: a homogeneização e a anglo-saxonização do Brasil, derivadas do desenvolvimento institucional, devem ser observadas primeiros na “alter-cultura” (cultura como deveria ser) e apenas posteriormente em representações culturais correntes (cultura como é).

P10: quanto maior a concentração de riqueza e do desenvolvimento brasileiro no eixo Rio-São Paulo, maior será a tendência à homogeneização cultural em direção aos padrões do Sudeste e , por extensão, aos anglo-saxônicos.

P11: quanto maior o crescimento econômico do Brasil e/ou menor sua desigualdade de renda, maior a tendência para a homogeneização cultural, principalmente em direção a padrões do Sudeste, uma vez que essa região vem representando a “alter- cultura” hegemônica (P2).

P12: quanto maior a proporção de trabalho assalariado em relação ao trabalho autônomo ou de subsistência rural, maior deverá ser a tendência à homogeneização cultural, provavelmente em direção aos padrões da região Sudeste, uma vez que tem ela sido a campeã da “alter-cultura” hegemônica centrada na vida de trabalho (P2).

P13: graças à maior permeabilidade à anglo-saxonização, a região cultural do Sudeste Urbano deve apresentar menor coletivismo, maior universalismos, menor hierarquia, menor aversão ao risco e maior padrão cultural de realização do que as demais regiões, seguida da região cultural do Sul Urbano. P14: graças ao seu conservadorismo histórico e às suas raízes tradicionais, o Norte e o Nordeste Urbanos e a região Rural Brasileira devem apresentar masculinidade e hierarquia maior do que o Sudeste Urbano e um pouco maior do que o Sul Urbano. P15: quanto maior a homogeneização cultural brasileira, menor deverá ser a relevância do coletivismo, menor a aversão ao risco e a maior a orientação para o padrão cultural de realização em seus perfis culturais.

Na visão desse mesmo autor, as proposições – na condição de generalizações cautelosas - podem servir como ponto de partida para o debate e para pesquisa em torno da percepção de uma cultura em constante mutação e “sujeita a pressões internas e externas por homogeneização ou heterogeneização” (p. 79).

O que Caldas (2009) demonstra, dessa maneira, é ser seu ponto de vista “de orientação pragmática”, baseado na dinâmica heterogeineidade/homogeneidade, atento ao contexto histórico, mas aberta para a compreensão de uma cultura nacional múltipla e fluida, conforme modelo da Figura 1 (p. 36).

Percebe-se que o reconhecimento de Caldas (2009) sobre uma cultura brasileira múltipla e fluida é sinal de atenção às críticas dos últimos anos, em especial, sobre a necessidade de se considerar a mutação dos traços culturais ao longo do tempo e o cuidado exigido com a caracterização de “uma” cultura brasileira, até mesmo pelas considerações de Hall (2006) apresentadas no início desta seção.

Em relação a esse aspecto, é pertinente lembrar uma diferenciação entre identidade cultural e cultura ressaltada por Cuche (2002 [1996]). Segundo esse autor, a cultura pode existir sem uma consciência de identidade, mas esta pode manipular e modificar o conteúdo cultural. O que diz Cuche (2002 [1996]) entra em sintonia com a passagem de Hall (2006) citada anteriormente e com a fundamentação pós-moderna utilizada por Alcadipani e Crubelate (2003) quando lembram que “ela (a perspectiva pós-moderna) não apresenta o sujeito como possuidor de uma identidade fornecida pela cultura, e contra a qual é muito difícil escapar” (p. 67).

Figura 1: Modelo conceitual dos perfis culturais múltiplos e fluidos brasileiros

Com efeito, Cuche (2002 [1996]), ao lembrar que a identidade cultural é uma categoria da identidade social, ressalta a imperícia em se tentar reduzir a identidade cultural sem levar em consideração à heterogeneidade do grupo social. Nesse caminho, o autor evidencia a necessidade de se observar a identidade de forma multidimensional e propõe que a análise científica não deva pretender achar a verdadeira definição das identidades particulares que estuda, mas os significados que levam os indivíduos a recorrer a elas (p.202). A conclusão de Cuche (2002 [1996]) fundamenta-se, em parte, nas considerações de Frederik Barth sobre a manifestação relacional da identidade, para quem o importante não é inventariar os traços culturais distintivos para definir sua identidade, mas localizar os que são utilizados pelos

membros do grupo para afirmar e manter uma distinção cultural (BARTH, 1969, citado por CUCHE, 2002 [1996], p. 182).

Embora estimulante, o modelo proposto por Caldas (2009) não teve por objetivo centrar esforços na busca de traços culturais que impactam a gestão, e é atento a essa necessidade de localizar traços culturais no ambiente de gestão e suas transformações ao longo do tempo, que este trabalho fundamenta-se no Modelo Contemporâneo da Gestão à Brasileira-MCGB (CHU, 2010).

A opção por Chu (2010) é motivada, entre outros aspectos, pelo fato desse modelo considerar as transformações decorrentes no perfil do gestor com a internacionalização dos negócios e os impactos decorrentes da globalização, situação pertinente ao ambiente (mercado financeiro) no qual foi realizada a pesquisa.

Há ainda uma perspectiva de ordem prática posta pelo MCGB, uma vez que o modelo detalha quais traços culturais irão impactar determinada dimensão organizacional, embora esta característica seja pertinente também ao modelo apresentado por Barros e Prates (1996).

No entanto, o modelo de Chu (2010) foi construído a partir de pesquisa empírica, de natureza qualitativa e, de certo modo, mais distante do simples “replique” dos questionários e das categorias de Hofstede (2003 [1991]), cujos efeitos para a produção acadêmica nacional na área de cultura organizacional já foram salientados pela crítica.

Além disso, ao perceber um sistema cultural em caráter transitório e que passa por um processo de hibridização entre o local o global, o modelo admite caráter dinâmico aos traços culturais e à gestão praticada no Brasil, de maneira até semelhante com as tensões avaliadas por Caldas (2009) para caracterização dos perfis culturais múltiplos e fluidos dentro do país, não caindo facilmente na armadilha das generalizações improváveis.

Por fim, sobre esse aspecto, é válido dizer que a consideração sobre um “Modelo da Gestão Brasileira” baseada em considerações culturais sugere simplificações e estereótipos. Mas, embora já antes ligeiramente registrado, vale observar o mesmo Caldas (2009), até por ser um dos mais profícuos na área, ao fazer a defesa dos autores que tratam das questões de cultura nacional e cultura organizacional:

“tais representações culturais do Brasil têm seu valor, ainda que sejam (a) tomadas meramente como ´pontos de partida´, que levam a generalizações cautelosas feitas num primeiro contato, mas para s quais devem ser extraídos refinamentos a partir da experiência local afetiva; (b) tomadas com cuidado por causa de suas profundas limitações e, portanto, usadas como ‘fontes de insigths´ quando ao ambiente de negócios em terras desconhecidas e não como mapas topográficos exatos, detalhados e definitivos do terreno intercultural; (c) baseadas em casos reais e menos generalizantes, derivadas da experiência e enriquecidas com as nuances de cada caso específico” (CALDAS, 2009, p. 61).

Na próxima seção será apresentado, de forma mais detalhada, o Modelo Contemporâneo da Gestão à Brasileira-MCGB (Chu, 2010). Antes, vale salientar que esta seção poderia ter fundamentado, em diversas páginas, uma forma de compreensão da cultura brasileira utilizando vasto referencial teórico já devidamente explorado por diversos trabalhos que se encaixam em uma das três linhas apontadas por Caldas (2009). Não o fez, principalmente, por dois motivos: a) pelo fato do MCGB já contemplar reflexão sobre o assunto; b) por ter preferido fundamentar a importância da cultura nacional como conceito e a necessidade de localizar os traços culturais na compreensão da realidade social e, consequentemente, no ambiente das organizações.