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Na construção de um sistema de orientação a partir dos pontos cardeais está subjacente uma organização própria. A divisão do globo em dois hemisférios, ou a distribuição geográfica de um território nacional em regiões, principalmente a oposição norte-sul, ilustram a tendência para uma estruturação do espaço em função de valores, que embora à partida possam parecer isentos, não são despidos de uma considerável carga sociocultural.

Do mesmo modo, a partir do eixo que é fornecido pelo corpo humano, a oposição esquerda/direita traduz uma diferenciação, como se constata, por exemplo, nas correntes políticas. A diferenciação psicológica dos termos cima/baixo, por sua vez, é mais do que evidente. Basta lembrarmo-nos das expressões que povoam o nosso léxico, e que traduzem a ideia de dominação ou controle: os líderes estão acima do povo, estar em cima do acontecimento, etc.

Paralela a esta diferenciação, a oposição interior/exterior, ao mesmo tempo que delimita duas regiões, pressupõe a passagem de uma região à outra, na medida em que as fronteiras que a caracterizam não são discretas. Por esse facto, este vector é marcado por uma dinâmica considerável, já atestada, aliás, quando nos referimos à importância, e que sobrevive nos nossos tempos, do limiar, como marca já não apenas de religiosidade mas fundamentalmente de identidade cultural.

O carácter dinâmico da orientação espacial é definido por um factor básico: o estabelecimento de regiões. Sempre que se põem em oposição duas regiões, está implícita, ou pelo menos latente, a passagem de uma região a outra. O espaço é produzido pelos limites que o caracterizam, os mesmos limites que a actividade humana respeita e traduz, nas diversas culturas. Veja-se o exemplo de cidades como Paris, Budapeste ou Varsóvia (Cf. Batoréo, 1999), em que a divisão da cidade pelo rio em margens corresponde a uma divisão social que marca o desenvolvimento dessas cidades, ou o caso de Barcelona, onde o distrito de L’Eixample integra vários bairros, entre os quais a Esquerra de l'Eixample e a Dreta de l'Eixample, numa transformação dos vectores de orientação do corpo humano em modelos de urbanização com conotações culturais acentuadas. Em Portugal, também é frequente encontrar-se a distinção cima/baixo, sobretudo em localidades de reduzida dimensão (Fajã de Cima / Fajã de Baixo, do concelho de Ponta Delgada, Bidoeira de Cima / Bidoeira de Baixo, do concelho de Leira, etc.).

Com a abertura a uma dimensão virtual da comunicação e da cultura e o conceito de ciberespaço, apoiada pela introdução generalizada nessa dimensão do elemento multimédia, os vectores de orientação transformam-se. Os diversos acontecimentos são reintroduzidos na rede a cada passo, a partir das fontes mais variadas, perdendo-se a necessidade dos sistemas axiais de orientação típicos. Não é o lugar da produção que é referido, é o tempo da produção, ao minuto, ao segundo, porque o ciberespaço é vertiginoso, e tudo o que está demasiado longe (no tempo) é desvalorizado, a não ser que seja reproduzido e reintegrado no tempo actual.

Na sua etimologia, a palavra ciberespaço reúne dois conceitos: o prefixo grego ciber- designa “pilotagem, condução ou regulação”, (Silva, 1998: 1136) enquanto o espaço aparece como uma extensão metafórica do tratamento que é dado informação: “A metáfora espacial é aplicada à entidade ‘imaterial’ que é a informação, bem como à sua localização e transporte no ciberespaço. O outro – o seu contraponto – é o familiar espaço físico onde o homem, os outros seres vivos e as coisas estão e se deslocam.” (Silva, 1998: 1136). Logo, o homem

conduz-se num espaço que não é o seu espaço físico mas reconhece nele os mesmos elementos que orientam a sua percepção e trata a informação nele recebida como real. A virtualidade do ciberespaço encerra assim uma aparente contradição (cf. Ciotti e Roncaglia, 2005: 191). Mas o paradoxo é apenas aparente. O carácter virtual do ciberespaço corresponde menos a uma realidade negada do que a uma realidade estruturada nos mesmos moldes que a realidade física que a ele se contrapõe: “Quando usiamo il termine ‘virtuale’ in ‘espressione quali ‘realtà virtuale’ o ‘spazio virtuale, non intendiamo negare qualunque forma di realtà ai fenomeni di cui stiamo parlando. Al contrario, intendiamo significare che la realtà specifica di questi fenomeni, pur non essendo una realtà física, è srtutturata sul modello constituito dalla realtà física. Cosi, uno ‘spazio virtuale’ non è uno spazio físico, ma è strutturato in modo ‘simile’ allo spazio físico”. (Ciotti e Roncaglia, 2005: 191).

Na rede, o espaço não perde as suas características, o que muda é a orientação nesse espaço. Os sistemas de navegação são diferentes e cedem o seu papel aos motores de busca, que, de uma forma quase automática, conduzem o viajante para todas as direcções possíveis, algumas até contraditórias. O homem perde-se do seu espaço, levando-nos a acreditar num mundo regulado pela lógica das máquinas.

Torna-se necessário, neste contexto, rever a perspectiva da espacialidade. A necessidade de verbalização do espaço, no contexto de uma nova relação semântica com a realidade vem reforçar a importância do espaço, que o conceito de virtualidade vinha desvalorizando em favor do tempo.

Sendo a Internet uma multiplicidade de sítios, onde se entra ou de onde se sai para entrar noutros sítios, o conceito de hipertextualidade está associado ao conceito de acesso: é preciso “entrar” no hipertexto para que a informação seja veiculada. E aqui, entrar, entende- se numa perspectiva marcada por factores dinâmicos. “Entra-se”, para se percorrer, através do máximo de ligações, os conteúdos pedidos. Estes conteúdos distribuem-se por regiões temáticas, obrigando o cibernauta a um esforço de selectividade acrescido como forma de evitar as regiões indesejáveis e aceder apenas às efectivamente procuradas. Logo, a navegação faz-se de trajectos, através de sítios, regiões, estabelecendo-se uma origem e um fim para a acção desencadeada.

A distinção tradicional de vectores de orientação perde aqui importância, devendo ser reavaliada em função das propriedades semânticas associadas ao movimento e ao percurso. O facto de elas se manifestarem num contexto virtual vem demonstrar a sua essencialidade.

O fenómeno da virtualidade em que nos vemos mergulhados funciona como um modelo de aprendizagem que vai ao encontro dos esquemas mentais que se constituíram como padrão pelo legado cultural que nos orientou, desde a infância, na nossa relação com os outros. A relação desses esquemas com a linguagem, simultaneamente autónoma em relação aos sistemas de comunicação criados na nova sociedade da informação e deles dependente, revela-se um factor indispensável à integração na vertigem do novo mundo e à sobrevivência, nesse novo mundo, da identidade e da diferença.

O nosso espaço, mesmo o ciberespaço, é o espaço da cultura orientada para os outros. Muitos acreditam mesmo num modelo em que “o ciberespaço, e em particular as possibilidades novas oferecidas à comunicação interpessoal, constituiria a sede de acontecimentos tendentes a incrementar, de forma radical, o desejo e a prática da comunicação entre as pessoas.” (Silva, 1998: 1139).

No fundo, todo o espaço é espaço do diálogo e do intercâmbio, mas é também o espaço físico, geométrico, o espaço que percebemos e em que nos movimentamos.