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Quando se fala em cultura, é recorrente o uso da distinção entre o que seria a cultura popular e a cultura erudita, sendo a primeira considerada aquela mais rústica, menos elaborada, porém, por vezes, definida como aquela que representa o tradicional, o autêntico, e a segunda, ao contrário, com maior valor estético e criativo, mas também vista como mais artificial, decadente. Essa dicotomia seria, no entanto, vaga, considerando que a classe dominante é, em seu interior, diversa, assim como a classe trabalhadora (VELHO; VIVEIROS DE CASTRO, 1978).

Para tratar a questão da cultura popular, Chaui (2014, p.20) lembra a dualidade entre povo-povinho desde distinção romana entre populus e plebs em que povo definiria “a instância jurídico-política legisladora, soberana e legitimadora dos governos, e a plebe como dispersão de indivíduos desprovidos de cidadania, multidão anônima que espreita o poder e reivindica direitos tácitos”. O Iluminismo (BARBEIRO, 1985 apud CHAUI, 2014) defendia que “o povo” deveria assumir a tarefa política por ser o grupo dotado de razão enquanto “o povinho” deveria apenas ter suas necessidades básicas supridas e ser educado para conter seu desejo de igualitarismo através da disciplina do trabalho industrial.

Já os românticos viam o popular como puro, simples e, por isso, capaz de quebrar com o racionalismo e o utilitarismo do Iluminismo. A partir da concepção romântica,

[...] delineiam-se os traços principais do que se tornou a cultura popular: primitivismo (isto é, a ideia de que a cultura popular é retomada e preservação de tradições que, sem o povo, teriam sido perdidas), comunitarismo (isto é, a criação popular nunca é individual,

mas coletiva e anônima, pois é manifestação espontânea da natural e do Espírito do Povo) e purismo (isto é, o povo por excelência é o povo pré-capitalista, que foi contaminado pelos hábitos da vida urbana – na Europa, foram os camponeses que, vivendo próximos da natureza e sem contanto com estranhos, preservaram os costumes primitivos em sua pureza original; na América Latina, foram os índios, “raices de America”) (CHAUI, 2014, p. 24).

Chaui (2014, p. 24) também observa que, no Brasil, tanto a concepção romântica quanto a iluminista vão definir “cultura popular”, pois há, normalmente, a visão de que “a razão ‘vai ao povo’ para educar sua sensibilidade tosca (eis o papel das vanguardas políticas), e o sentimento ‘vai às elites’ para humanizá-las (eis o papel das vanguardas artísticas)”. Ambos os grupos perdem, no entanto, “o essencial: as diferenças culturais postas pelo movimento histórico-social de uma sociedade de classes” (CHAUI, 2014, p. 27). Não se pode afirmar, portanto, que haja uma cultura popular da classe trabalhadora “íntegra, autentica e autônoma, situada fora do campo de força das relações de poder e de dominação culturais” (HALL, 2003, p. 254), assim como também não é possível asseverar que a cultura popular seja totalmente encapsulada pela indústria capitalista; essa última ideia, segundo Hall, pressupõe um povo passivo e com pouca força para resistência.

A cultura popular, ao contrário disso, funciona num duplo movimento que ora contém ora resiste. Para Hall (2003, p. 255),

[...] há uma luta contínua e necessariamente irregular e desigual, por parte da cultura dominante, no sentido de desorganizar e reorganizar constantemente a cultura popular; para cercá-la e confinar suas definições e formas dentro de uma gama mais abrangente de formas dominantes. Há pontos de resistência e também momentos de superação. Esta é a dialética da luta cultural. Na atualidade, essa luta é contínua e ocorre nas linhas complexas da resistência e da aceitação, da recusa e da capitulação, que transformam o campo da cultura em uma espécie de campo de batalha permanente, onde não se obtêm vitórias definitivas, mas onde há sempre posições estratégicas a serem conquistadas ou perdidas.

Tendo em vista esse processo histórico-dialético da cultura, Hall (2003) amplia a definição mais clássica da Antropologia de cultura popular como as coisas que o povo faz, ao ressaltar a tensão contínua da cultura popular com a cultura dominante17.

17 Pode-se acrescentar que esse movimento de contenção e resistência também é observado em

relação às variedades linguísticas em que temos a contínua tensão entre as variedades mais populares e a variedade dominante.

Da mesma forma, pensando o Brasil como sociedade desigual e autoritária, dentro de um sistema estratificado de classes e inspirada no conceito de hegemonia e contra-hegemonia de Antonio Gramsci, Chaui (2014) vê cultura popular como expressão de resistência da classe trabalhadora, estando cultura dominante e cultura popular inseridas numa mesma cultura. Essa resistência pode acontecer tanto de forma individual por meio de expressões de rua, humor ou coletivas, por meio de grupos organizados.

Trazendo a cultura popular para o espaço urbano, temos que considerar que as cidades são construídas nas relações e interações de forma contínua. Por isso, por mais que a resistência da cultura popular possa se manifestar de forma individual, sua recepção e apropriação se dará de forma coletiva por uma grande quantidade de pessoas. É o caso dos grafites e pichações que, realizados por uma pessoa ou grupos pequenos, causam reações, positiva ou negativa, em milhares de outras pessoas que por ali circulem.

A dinâmica urbana possui, portanto, essa característica da quantidade. “Em vez de anomia, isolamento ou fragmentação, o que se vê [principalmente no contexto dos grandes centros] são regularidades, arranjos coletivos, oportunidades e espaços de trocas e encontros” (MAGNANI, 2012, p. 251). Para Georg Simmel (2006, apud FRÚGOLI Jr., 2007, p. 11), a “sociedade não é composta apenas por indivíduos, e sim por indivíduos em interação”, sendo que essas interações são recíprocas e acontecem de forma contínua. A essa concepção Simmel dá o nome de sociabilidade. E essas associações é que formariam a unidade, porém uma unidade em que há diversidade e em que as pessoas se inserem em múltiplos espaços diversos entre si.

Ao trazer a sociabilidade para pensar a experiência urbana, Joseph (2005,

apud FRÚGOLI Jr., 2007) define os temas “trânsito”, “estrangeiro” e “conversa”,

retomando Simmel. Para este autor (JOSEPH, 2005 apud FRÚGOLI Jr., 2007), “trânsito” é a multiplicidade de contatos no espaço urbano e ao mesmo tempo a reserva que permite encontros seletivos e contatos significativos entre pessoas, grupos e coletivos de forma ordenada. A noção de “estrangeiro” é típica das grandes metrópoles em que os laços sociais são mais frágeis a depender da relação identitária que se estabelece entre os estranhos. E a “conversa”, ao contrário, é a possibilidade de se construir uma igualdade, ainda que temporária, por meio da sociabilidade.

Como é possível notar, a concepção do sociólogo francês Isaac Joseph de sociabilidade considera o “nós” como aquilo que surge do encontro público entre os citadinos que se locomovem pelo espaço diferentemente da compreensão iluminista que pensa o “nós” como algo já constituído. A ideia de movimento que tanto constitui as atividades dos motoboys pode ser, portanto, pensada como forma de sociabilidade dos citadinos de forma geral.

Um contraponto à concepção de Joseph (2005 apud FRÚGOLI Jr., 2007) de cidade enquanto espaço de construção de relações ampliadas, como é o caso das vizinhanças, é que “em várias outras situações, principalmente quando em circulação por outros espaços urbanos, os mesmos [sujeitos] enfrentam contextos de reserva, estranheza e distanciamento” (FRÚGOLI JR. 2007, p. 54).

Dessa forma, a cidade representa a desigualdade, as contradições sociais da sociedade e, por isso, são importantes os estudos que focam nos problemas, na precariedade da cidade, embora ela não seja só caos e desorganização. Há também vida, movimentos sociais e resistências por meio das novas formas de ocupar e transitar no urbano. Por meio da sociabilidade urbana, é possível identificar inúmeros exemplos de “usos e arranjos não previstos pelas regras e destinação do espaço” (MAGNANI, 1998, p. 68).

As práticas urbanas revelam, portanto, que a experiência da rua não deixou de existir nas grandes metrópoles, pelo contrário, houve uma diversificação e adaptação às novas circunstâncias, por meio de novas modalidades e novos diálogos (MAGNANI, 1998). A antropologia urbana contribui, dessa forma, para mostrar o que há de resistência dentro dos grandes centros urbanos por meio das transformações na cultura urbana.

Sob influência dos estudos etnográficos urbanos, portanto, consideramos que, na cidade, existem “grupos, redes, sistemas de troca, pontos de encontro, instituições, arranjos e muitas outras mediações por meio das quais aquela entidade abstrata chamada indivíduo participa efetivamente da cidade em seu cotidiano” (MAGNANI, 2012, p. 267). Tendo isso em vista, pensamos o motoboy como ator social que faz parte da dinâmica urbana ao fazer uso das diversas esferas da cidade, a do trabalho, a da cultura e das estratégias de sobrevivência.

Para analisar a experiência da rua no espaço urbano, pode-se recorrer a teoria de DaMatta (1997) e sua importante contribuição para a Antropologia Brasileira

com seu estudo sobre a violência na sociedade brasileira e distinção que faz das noções de rua, casa e o outro mundo da década de 1970. A casa representa aquilo que é pessoal, familiar e, por isso, avesso à mudança e à história, à economia, ao individualismo e ao progresso; já a rua é o espaço formal, da lei, do mercado, da história linear e do progresso individualista e sociabilidade capitalista. E o outro mundo é definido pelo o que é sagrado, espiritual e, portanto, pela renúncia ao mundo.

Ampliando a distinção rua versus casa de DaMatta, Magnani (2012) traz a noção de pedaço, domínio intermediário entre a rua e a casa, em estudo publicado originalmente em 198418. “O pedaço19 é o lugar dos colegas, dos chegados. Aqui não é preciso nenhuma interpelação: todos sabem quem são, de onde vêm, do que gostam e o que se pode ou não fazer” (MAGNANI, 2012, p. 89, itálicos do autor). Diferentemente do espaço da vizinhança em que as pessoas se conhecem, no pedaço, por meio de compartilhamento dos mesmos símbolos, seus frequentadores se reconhecem pela semelhança de gostos, valores, hábitos, modos de vida.

Considerando a sociedade de classes, temos que “o ‘mundo da rua’ não é senão o ‘mundo da casa’ da classe dominante” (CHAUI, 2014, p.114) e, por isso mesmo também, é nesse espaço em que ocorre a resistência. Para Chaui (2014, p. 114-115, itálicos da autora), “é porque o direito aos direitos é recusado pela rua deles, isto é, pela sociedade global, que a periferia organiza o pedaço, no qual não prevalecem apenas as relações do ‘mundo da casa’, mas estas se combinam para criar uma outra rua”.