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Além de utilizar expressões de autoidentificação para se definir, o autor do canal também define o outro, o que podemos denominar de heteroidentificação, por meio de expressões referenciais e enunciados. Em alguns momentos, o ator social do qual ele fala faz parte de seu grupo social. Em outros momentos, esse “outro” pertence a outro grupo social.

Acreditamos que, ao categorizar/referir o outro, o Motoboy também se autocategoriza, produzindo sua construção identitária a partir da diferença que constrói em relação aos membros de outros grupos sociais, considerados o contexto social mais amplo e as condições históricas, e não apenas o indivíduo. Por esse motivo, ao analisarmos a forma como o Motoboy define os outros atores sociais com os quais convive, como, por exemplo, os agentes públicos, compreendemos a relação que se estabelece entre esses sujeitos e, consequentemente, a forma como o Motoboy se posiciona na sociedade.

No enunciado a seguir (106), o Motoboy tematiza os agentes públicos em que, por meio de uma expressão nominal com um extenso modificador, demonstra seu posicionamento de oposição e descontentamento em relação a esse grupo social, o que produz um afastamento:

Exemplo 106

[...] hoje tem agente de trânsitos cobrador de impostos filhos da puta espalhados pra qualquer lado... me perdoem vocês aí que são agentes de trânsito e policiais de trânsito mas eu recusaria um emprego desses... é:: aliás eu nem prestaria concurso cara... (V14)

Depois da categorização que é feita de forma a expressar esse desconforto em relação a esses atores sociais, o Motoboy toma como interlocutor os próprios agentes de trânsito e policiais de trânsito e, por meio da introdução de um recurso de atenuação (“me perdoem, vocês aí”) estabelece uma relação de diferença com esses profissionais, afirmando que não ocuparia esse tipo de posto profissional.

Num movimento oposto, no enunciado seguinte (107), após cumprimentar os lixeiros na rua, o Motoboy faz um comentário a respeito dessa categoria profissional:

Exemplo 107

[...] esses caras aí merece o maior respeito mano... trampo da porra... como qualquer outro profissional... mas esses daí são foda... são os caras que mantêm a nossa cidade limpa né mano? (V23)

A introdução desse referente por meio da descrição definida “esses caras” se dá por uma ancoragem no contexto. Nesse e em enunciados anteriores se detecta que o Motoboy defende e busca exaltar as funções desempenhadas pelas categorias profissionais que, como a dele, fazem parte das classes populares.

Já em (108) e (109), o referente é um “outro” em relação à classe social: os membros de organizações da sociedade civil como “Pró-vida”64, “Maçonaria”65 e “Ordem Illuminati66” que representam a classe burguesa em nossa sociedade:

Exemplo 108

[...] a maioria dos cara com esse adesivo no carro aí ou então com aquele adesivinho do compasso e um transferidor uma letrinha g dentro tá ligado? Que é de uma... dos maçom... a maioria deles no trânsito são forgado pra caraio tio... (V3)

Exemplo 109

[...] eles são tipo da hora de conversar tá ligado? ((risos)) interessante... só que no trânsito eles são forgado pá porra mano... (V3)

64 Trata-se de uma associação que possui corpo diretivo e consultivo e sede em São Paulo. Seus

membros realizam encontros e podem participar de atividades no clube da instituição. Existe uma central que recebe doações, as quais são chamadas de “dízimo”. Em seu site oficial, o grupo se descreve da seguinte forma “A PRÓ-VIDA é um movimento filosófico iniciático, que se propõe a conduzir pessoas interessadas a reconhecer e despertar o enorme potencial de suas capacidades mentais, psíquicas e espirituais”. Fonte: <https://www.provida.net/br/>. Acesso: jul. 2017.

65 Os maçons se encontram em espaços que denominam, normalmente, de “loja”. São,

aproximadamente, 6 milhões de integrantes no mundo. A “Maçonaria é uma sociedade discreta, onde suas ações são reservadas e interessa apenas àqueles que dela participam” e para ingressar nesse grupo é preciso ser convidado por maçons. Por esse motivo, não existe um site da organização, mas apenas sites de lojas. Fonte: < https://www.significados.com.br/maconaria/> . Acesso: jul. 2017.

66 Associação que tem como princípios a igualdade e a justiça e seu objetivo é “Criar lideranças

capazes, fazer a sociedade avançar rumo à Nova Ordem Mundial, difundir o iluminismo e cultuar os valores da paz, justiça e igualdade”. Fonte: <https://www.provida.net/br> Acesso: jul. 2017. É também considerada como um grupo secreto de pessoas que desejam influenciar questões políticas, econômicas e sociais. Fonte: < https://www.significados.com.br/illuminati/> Acesso: jul. 2017.

O Motoboy emprega uma descrição definida mais extensa para se referir a esse grupo e ao “Pró-vida”, a partir da descrição de símbolos nos adesivos dos carros. Além disso, ele os qualifica ora como “forgado” no trânsito e “tipo da hora para conversar”. Também é possível notar que, novamente, após emitir um julgamento sobre o grupo, o Motoboy faz um ajuste em seu discurso considerando sua audiência (design de audiência). Por ter conhecidos que fazem parte desses grupos, inclusive clientes, que podem estar assistindo a seus vídeos, a oração “eles são tipo da hora de conversar” atenua os sentidos negativos associados a esses grupos que formam enunciados anteriormente e posteriormente à atenuação.

No contexto em que o Motoboy está estacionando para fazer uma entrega na Avenida Paulista ou Centro Paulista, um dos centros econômicos indicados por Frúgoli Jr. (2006), ele mostra o hotel Maksoud Plaza67 e inicia uma série de categorizações para distinguir o pobre do rico:

Exemplo 110

[...] esse daí é o Maksoud Plaza hein? É:: hotel aí conceituado aí... dos boy... dos pans... dos pun... pá tá ligado? Avenida Paulista né jow? ... é outras ideias no baguio... aqui é só os tipo exótico cheios de dinheiro... e uns tipo favelado metido a exótico cheio do dinheiro mas na verdade são pobres tá ligado? ((risos)) trampa tipo no... só porque trampa no escritório anda de socialzinho quer meter um estilinho diferente e tal mas... (V3)

Num primeiro momento, as categorizações por meio das gírias paulistas “os boys”, “os pans” e “os pun” fazem referência aos “ricos”. Em seguida, o falante apresenta descrição definida para recategorizar o referente e, ao recordar que não são somente os ricos que frequentam o Centro Paulista, introduz um novo referente, os “pobres” que são descritos como aqueles que se comportam como se fossem ricos pelo local em que trabalham e pelas roupas que usam.

No exemplo abaixo, em que o Motoboy categoriza o outro pela classe social, temos dois referentes: os que viajaram no feriado generalizados pelas expressões “o pessoal”, “todo mundo” e os que ficaram em casa. A esse último grupo, o falante atribuiu formas nominais como “virgens”, “cabaços”, “nerds”, mas o mais interessante é “os futuros patrões”; nesse momento, ele determina a posição social

67 Hotel tradicional da cidade de São Paulo, o Maksoud Plaza localiza-se a uma quadra da Avenida

Paulista. É um dos hotéis mais emblemáticos de São Paulo e do Brasil, por ter recebido vários governantes e celebridades do mundo inteiro e servir de cenário para novelas e minisséries da Rede Globo.

que esses jovens irão assumir no futuro. De todo modo, esses dois grupos são os das pessoas que fazem parte da classe média ou da classe alta, isto é, são os que podem viajar nos feriados ou os que estão investindo em seus estudos e profissões.

Exemplo 111

[...] o pessoal todo mundo viajou... tá todo mundo na praia... só: que tem uma categoria de ser humano que não foi viajar... que são os VIRgens... os cabaço... é... os nerds... os futuros patrões... que são aqueles que ficam estudando para concursos públicos... é:: se especializando em suas profissões ao invés de irem curtir comer as bucetinhas na praia... é::: hoje eles estão todos em casa jogando GTA e a minha missão é abastecê-los de comida... e todo mundo sabe né?... virgem não cozinha... nerd não cozinha... nerd não sabe cozinhar... (V2)

Como Giles (2001) postula, o falante faz ajustes para marcar sua identidade a partir da diferenciação em relação ao outro, o que o autor denomina de divergência. Assim, pode-se afirmar também que as definições e as categorizações que falante faz do outro também contribuem para o reforço de sua própria identidade, de seu papel social e lugar na sociedade, já que a relação identitária se constitui na diferença.