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DISPOSITIVOS ANALÍTICOS: REFERENCIAÇÃO E CATEGORIZAÇÃO

Para a descrição e análise do corpus selecionado, adotamos o conceito de

simples atividade de designação de objetos do mundo. Segundo Bentes e Rezende (2008, p. 30), nessa noção de referenciação, “os referentes ‘situados’ no mundo ganham existência discursiva própria”. Dessa forma, no processo de referenciação, admitimos a impossibilidade de tratar os referentes como objetos-do-mundo, posto que são construções culturais e, em consequência, “sua essência inclui necessariamente um parâmetro antropológico”59 (APOTHÉLOZ; REICHLER- BÉGUELIN, 1995, p. 8), ainda que para que possamos interpretar as expressões referenciais seja necessário que recorramos aos nossos conhecimentos e experiências (APOTHÉLOZ; REICHLER-BÉGUELIN, 1995).

Isso quer dizer que, ainda que a dimensão empírica esteja presente já que há sempre uma base, isto é, um fundo existente, é no discurso que se dá o “movimento dinâmico que permite o surgimento dos objetos” (MARCUSCHI, 2006, p. 12). Dessa forma, utilizamos a noção de objetos-de-discurso tal como definida por Mondada (2003), Marcuschi (2006), Koch (2009) que consideram a dinamicidade na construção e reconstrução desses objetos.

Dessa forma, buscamos identificar e descrever o processo de referenciação, pois consideramos que “o discurso constrói aquilo a que faz remissão, ao mesmo tempo que é tributário essa construção” (KOCH, 2009, p.61). Dessa forma, todo objeto-de-discurso é produto da atividade cognitiva e interativa dos falantes e essa representação é construída pelo discurso e opera como uma memória compartilhada (KOCH, 2009).

Para Koch (2009), a constituição da memória discursiva se dá por meio de operações tais como as estratégias de: (i) construção ou ativação que consistem na introdução de um objeto que ainda não tenha sido mencionado de forma a preencher um nódulo, isto é, um endereço cognitivo; (ii) reconstrução ou reativação quando um nódulo é reintroduzido por uma forma referencial permitindo com que esse nódulo permaneça em foco; (iii) desfocalização ou desativação quando o foco passa a ser ocupado por um novo objeto-de-discurso.

E essas operações ocorrem de acordo com a relação que se estabelece entre os elementos do co-texto ou do contexto (KOCH, 2009) já que na construção da

59 Tradução livre de: “On ne peut plus dès lors se contenter de parler d’eux uniquement comme de

référents au sens mondain du terme, dans la mesure où ces objets ont acquis le statut de construits culturels, et où par conséquent leur “essence” comporte forcément un paramètre anthropologique”. (APOTHÉLOZ; REICHLER-BÉGUELIN, 1995, p. 8).

memória discursiva não é apenas a memória operacional que está em funcionamento, mas também nossos conhecimentos de mundo.

A introdução ou ativação de referentes no texto pode ser ancorada, quando um novo objeto-de-discurso é introduzido por meio de associação com elementos “presentes no co-texto ou no contexto sociocognitivo, passível de ser estabelecida por associação e/ou inferenciação” ou não ancorada, isto é, quando um não há essa possibilidade de associação e o objeto-de-discurso passar a ocupar um “endereço cognitivo” (KOCH, 2009, p.64-65). Nesse último caso, se essa representação do objeto-de-discurso se der por meio de uma expressão nominal, temos a categorização.

Por nos interessarmos, particularmente, pelo uso das expressões nominais, ainda recorrendo as definições de Koch (2009, p.68), sistematizamos as seguintes possibilidades de ocorrência na língua portuguesa:

Det. + Nome

Det. + Modificador(es) + Nome + Modificador(es) Det. + {artigo definido ou demonstrativo}

Modificador {Adjetivo ou sintagma preposicionado ou oração relativa} Assim, por meio dessas expressões nominais temos as categorizações. Porém, considerando que o processo de referenciação é dinâmico, “essas expressões podem sofrer constantes reformulações, de acordo com as diferentes condições enunciativas” (LIMA & CAVALCANTE, 2015, p. 296), em outras palavras, as “categorias utilizadas para descrever o mundo alteram-se tanto sincrônica quando diacronicamente: quer nos discursos ordinários, quer nos discursos científicos, elas são plurais e mutáveis, antes de serem fixadas normativa ou historicamente” (MONDADA & DUBOIS, apud KOCH, 2009, p.54). Por esse motivo, admitimos que há constantes recategorizações no discurso.

Alencar (2008), apoiando-se em Sacks (1995) amplia essa compreensão da categorização para definir a categorização social enquanto processo que é sensível à dimensão local e também situado nas práticas sociais. Para a autora (ALENCAR, 2008, p. 117), a categorização é “uma forma complexa de classificar membros, complexidade essa que se caracteriza pelo contexto social e situacional em que os membros estão inseridos”.

Também nesse sentido de se considerar sempre o contexto social da interação, Bentes, Silva e Accetturi (2017) defendem uma ampliação da noção de ancoragem, isto é, da forma como os referentes são introduzidos ou ativados no discurso, de modo que compreenda não só as dimensões textual e do gênero do discurso, mas também a dimensão do contexto social mais amplo.

Considerando que há pouca interação entre o Motoboy e outros falantes durante os vídeos, portanto, poucas intervenções de outros sujeitos, quando o Motoboy introduz a si mesmo como referente, ele não está fazendo referência a elementos ativados por outros falantes, mas está fazendo associações com outros textos sobre motoboys que circulam na sociedade ou com elementos de seu contexto social.

6.2 A CATEGORIZAÇÃO DO MOTOBOY PELO MOTOBOY

Considerando que o objeto-de-discurso “motoboy” é criado e retomado constantemente nos vídeos do canal Motoka Cachorro!!!, iniciaremos a seção apresentando enunciados em que o falante ativa esse objeto-de-discurso ou mesmo o retoma por meio da categorização “motoboy”, recorrendo, desse modo, à estratégia de autocategorização por meio dessa expressão nominal. Nos dois casos a seguir, as categorizações “o motoboy” e “os motoboys” são reintroduzidas no texto/vídeo em que o autor do canal define os tipos de motoboys e dá dicas para quem pretende ser um deles. Nesse caso, o referente “motoboy” é o próprio tema do vídeo e a audiência imaginada pelo falante é a de pessoas leigas a respeito da profissão, mas que teriam interesse nela.

É importante destacar que entendemos “audiência imaginada” tal como postula Bell (1984) para quem os falantes condicionam o uso dos recursos linguísticos em função de quem é sua audiência, o que ele denomina de design de audiência.

No primeiro exemplo desse capítulo, observa-se “o motoboy” sendo retomado para trazer uma definição geral sobre essa profissão. Já no segundo exemplo, embora haja novamente a retomada para trazer uma explicação, essa se faz a respeito de uma determinada característica dessa ocupação: a necessidade de o profissional ser o responsável pelos gastos com suas próprias ferramentas de trabalho, forma precária de trabalho, apresentada no primeiro capítulo.

Exemplo 59

[...] o motoboy primeiramente ele faz diversos serviços de entrega de pequenos volumes e documentos e comida e etecetera e tal... né? tudo o que cabe dentro desse bauzinho ou dentro de uma mochila ou dentro de uma caixa térmica... é aquelas que vocês conhecem que vocês veem os motoboys aí na rua transportando... certo? (V22)

Exemplo 60

[...] geralmente o o o o motoboy ele::: ele arca com todos os custos né? ... documentação moto é o própria prestação da moto é dele gasolina é dele troca de óleo manutenção... (V22)

Dessa forma, verifica-se que as informações trazidas a respeito desse referente nesses enunciados são dadas como novas pelo falante a partir do público esperado para esse vídeo. Abaixo, é, igualmente, possível perceber essa forma de trabalhar com o referente, embora haja, nesse exemplo, a introdução de outras duas categorizações para “motoboy”: a primeira, “motoca”, funcionando como sinônimo de “motoboy” e a segunda, “motoqueiro”, uma recategorização de “motoca” e de “motoboy”, realizada pelo uso de um hiperônimo, já que o termo abrange não somente os motoboys, mas também outros condutores de motocicletas:

Exemplo 61

[...] qual que é a parte do motoca? A parte do motoqueiro é fluir no trânsito sem atrapalhar o trânsito... né? ... sem cau... né meu? .. sem causar tumulto... né meu? (V12)

A categorização “motoqueiro” é introduzida porque a definição que será feita sobre a forma de condução no trânsito não diz respeito somente aos motoboys, mas a todos os motociclistas. No próximo caso, primeiramente, vemos que a categoria “motoboy” é melhor determinada como “aquele que toma multa” e, na sequência, essa determinação referencial é ampliada quando se busca dar uma exemplificação por meio da predicação sobre a descrição indefinida, “um motoboy”, que enfatiza o aspecto de raridade de não se tomar multa sendo motoboy:

Exemplo 62

[...] pra você tomar multa é só você ser motoboy tio ((risos)) é difícil um motoboy que não tomou umas multa viu... (V3)

É comum, portanto, que o Motoboy ative ou reative o referente “motoboy” com a finalidade de descrever as particularidades dessa profissão para seu interlocutor. Outro tema recorrente nos vídeos do canal é a referência à classe social

ou origem social do Motoboy. A seguir, se explicita a autocategorização extensa com diversos modificadores, sendo dois associados à sua identidade de classe:

Exemplo 63

[...] quem falou que o pobre louco da favela motoboy não chega nos oitenta k? (V33)

A ancoragem dessa autocategorização se dá pelo contexto em que foi dito ao Motoboy que ele não conseguiria ter sucesso com seu canal, seja pessoalmente, seja por meio de comentários nos primeiros vídeos do canal. A nosso ver, o trecho funciona como uma resposta a todos os que duvidaram dessa empreitada. A expressão referencial ressalta os aspectos identitários associados ao Motoboy de um tipo social que não teria prestígio e nem legitimidade social para ser visto e ouvido e a pergunta retórica que estrutura esse enunciado questiona esse pré-julgamento social.

Como é possível notar em (64), a descrição definida “a favela” é utilizada no lugar da referência à primeira pessoa do discurso. Dessa forma, o Motoboy se autocategoriza como “a favela” de forma metafórica:

Exemplo 64

[...] tá tirando... a favela seu arrombado do caralho? (V22)

É importante frisar que o uso metafórico de “favela” ocorre com frequência na fala popular de periferia para definir sujeitos. Um exemplo clássico desse uso é a música de Bezerra da Silva “Eu sou favela”60. Essa troca do adjetivo “favelado” pelo substantivo “favela” apresenta o funcionamento semântico-discursivo de tomar o todo pela parte, isto é, de definir o sujeito não apenas como morador de uma favela, mas como seu próprio representante. Em nosso exemplo, “a favela” não é um qualificador ou uma definição do sujeito, mas a própria categorização.

No enunciado a seguir, outros grupos sociais e categorias profissionais são introduzidos na fala do Motoboy. Primeiramente, a categorização “pessoa” é empregada de forma a neutralizar a pessoa sobre o qual se fala (ILARI; BASSO, 2008,

60 Bezerra da Silva foi um cantor, compositor e violonista. Nascido em Recife (PE), viveu a maior parte

da vida no Rio de Janeiro e é uma das grandes referências do samba brasileiro. Trecho da canção: “A favela é, um problema social/A favela é, um problema social/Mas eu sou favela/Posso falar de cadeira” (itálicos nosso). Outro exemplo do uso metafórico de “favela” é o do rap do grupo Cocktel Molotov de Brasília (DF) “Os Favela”. Verso da canção: “Nóis é favela, mas nóis é elegante” (itálicos nosso).

p. 235) e essa referência é melhor especificada pela oração relativa “tem uma profissão menor remunerada”. Posteriormente, o falante introduz uma série de novos referentes que exemplificam quais “pessoas” seriam essas, sendo o último referente o “motoboy”. Após as exemplificações, o falante introduz uma nova categorização que encapsula61 os referentes anteriores por meio da descrição definida “o pessoal da minha classe”, fazendo uma referência às classes populares ou à classe dominada da qual o falante faz parte:

Exemplo 65

[...] pessoas... é... que têm uma profissão menor remunerada assim que nem... que nem porteiro que nem faxineira... que nem motoBOY né meu?... o pessoal da minha classe né? (V3)

No exemplo (62), “um motoboy” é recategorizado por meio de outra expressão que localiza o motoboy no interior da classe dominada na organização da sociedade cindida em classes sociais:

Exemplo 66

[...] se você não tiver um motoboy... um mero subalterno motoboy pá fazer a sua entrega... (V3)

É interessante notar, que no trecho acima, a partir da presença do pronome pessoal reto “você” e de uma expressão que lhe está relacionada (“a sua entrega”), impõe-se um interlocutor ou uma audiência imaginada para esse enunciado que é a dos clientes, das pessoas que contratam o serviço dos motoboys. Nesse trecho, parece encontrar-se resumida a relação entre cada uma das posições sociais no contexto do mercado consumidor no capitalismo contemporâneo: aquele que, predominantemente, presta o serviço e o que, na maior parte das vezes, consome.

Com base nas análises das categorizações, recategorizações e autocategorizações que o Motoboy emprega, é possível afirmar que a questão de classe é significativa para esse sujeito. Além disso, as reativações da categoria “motoboy” são frequentes com a finalidade de, por um lado, dialogar com um público que deseja conhecer mais sobre esse ator social e, por outro, com quem se utiliza dos serviços de motofrete: o cliente.

61 Ver Koch (2009, p. 70): “esta é uma função própria particularmente das nominalizações que [...]

sumarizam as informações-suporte contidas em segmentos precedentes do texto, encapsulando-as sob a forma de uma expressão nominal e transformando-se em objetos-de-discurso”.