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2 RENDIMENTO ESCOLAR: UM OLHAR SOBRE SEUS PRINCIPAIS

2.1 Breve Introdução à discussão de Fluxo Escolar

2.1.2 A cultura da Reprovação Escolar

Os estudos sobre repetência trazem à tona a cultura da retenção na educação brasileira. Esse fenômeno não é exclusividade da escola pública (EARP, 2009; PRADO, 2000; RIBEIRO, 1991). Apesar disso, são os pobres que sentem mais os seus efeitos (CRAHAY; BAYE, 2013).

Earp (2009) defende que a pedagogia da repetência, naturalizada por todos, é parte integrante da filosofia de ensino. Jacomini (2009) entende que essa discussão é pertinente, pois, embora passados 30 anos desde que algumas propostas educacionais questionaram a reprovação, ela continua presente na concepção dos educadores. Nesse sentido, Shirasu e Arraes (2014) postulam que esse componente cultural se localiza na educação como um todo, independentemente do nível social das crianças. Em parte, o que sustenta as altas taxas de reprovação correlaciona-se ao entendimento de que a repetência está associada à qualidade do ensino quando evita que o discente avance sem os conhecimentos necessários, acumulando deficiências dos anos iniciais.

Jacomini (2009) identifica, na organização material e simbólica da educação brasileira, a manutenção de processos sutis de exclusão e seleção:

A chamada escola tradicional centrava seus esforços principalmente na transmissão de conteúdos, geralmente de forma verbal, para crianças e jovens por ela considerados motivados e desejosos de aprender. Ou seja, não se concebia que era função da escola mobilizar nos alunos o desejo e a vontade de aprender ou pelo menos não desmobilizar esse desejo com sua forma imperativa e desinteressante de ser. Dado que sua tarefa era ensinar aqueles que aprendiam dentro desses padrões, aos demais, aplicava-se o

expediente da reprovação, pois se a criança ou o adolescente não tinham “capacidade” ou “vontade”, não poderiam concluir sua escolaridade. Essas medidas “pedagógicas” foram corresponsáveis na manutenção da educação como privilégio mesmo quando a maioria da população teve acesso à escola. (JACOMINI, 2009, p. 561, grifos no original).

A pedagogia da repetência, elaborada por Ribeiro em 1991, já denunciava uma cultura de imputação do fracasso escolar. Para o autor, “[...] a prática da repetência está na própria origem da escola brasileira” (RIBEIRO, 1991, p. 17). O ensino foi fabricado para a elite, e o professor tinha a função de mentor de uma educação familiar. Nesse contexto, a escola exerce a função de administradora da educação formal familiar.

Ribeiro (1991) constatou que a probabilidade de aprovação dos alunos pertencentes a zonas urbanas pobres do Nordeste na primeira série era próxima a zero. Consequentemente, a primeira série era realizada em dois anos. Esse resultado revelava que existia uma determinação política velada de reprovação sistemática. Portanto, era imputado ao aluno um fracasso já pré-estabelecido pelo sistema educacional.

A escola, quando se depara com a mudança paradigmática da educação como direito de todos, entra em crise, pois vinha sistematicamente reproduzindo uma educação apenas para aqueles que se adequavam aos seus moldes.

Nesse sentido, a Conferência Mundial de Educação em Jomtien realizada em 1990 foi um importante marco, visto que teve, como principal mensagem, o compromisso da aprendizagem para com todas as crianças. Para tal empreitada, a repetência, sintoma do fracasso escolar, é um dos principais entraves a serem combatidos, a fim de democratizar o acesso ao desenvolvimento, atendendo as necessidades de aprendizagem (GOMES, 2005).

O Instituto Brava et al. (2017) defendem que o direito à educação deve ser compreendido como direito ao pleno desenvolvimento. Assim sendo, o direito à educação deve ir além da garantia do acesso aos processos de escolarização, implicando a geração de desenvolvimento e aprendizado.

Desse modo, realizar uma educação para todos exige a superação de mecanismos políticos e pedagógicos que implicam na manutenção da exclusão. Nesse sentido, Jacomini (2009, p. 561, grifos no original) sugere que a seguinte reflexão:

[...] argumentos como “os alunos não querem aprender”, “não têm vontade”, “não se dedicam”, “não têm capacidade”, “não têm apoio da família”, “só querem saber de brincar e conversar”, muitas vezes usados para justificar a pouca aprendizagem dos alunos e legitimar a reprovação, precisam ser ressignificados na perspectiva da educação como direito.

Certamente, o direito à educação, extensivo a todos, remete-nos a uma nova dinâmica educacional em que cabe à escola envolver e despertar os alunos para uma vivência escolar mais rica. Ademais, a escola universal a todos deve estar pronta e aberta para todas as possibilidades de sujeitos e condições sociais. Deve esperar alunos com realidades mais colaborativas, ou não. A aprendizagem de qualidade deve acontecer independente do contexto biopsicossocial, com a organização escolar assumindo a complexidade e diversidade inerente aos processos de aprendizagem humana, bem como a diversidade dos contextos familiares/econômico/subjetivos dos alunos.

A esse respeito, Ribeiro (1991, p. 17), demonstra, por meio de análises antropológicas, que a prática de imputação do fracasso escolar era sempre atribuída externamente, ou seja, “[...] aos alunos, aos familiares, ao sistema sociopolítico”. Entretanto, raramente se atribuía causalidade à organização escolar, aos professores, e, por conseguinte, à sua formação.

Forgiarini e Silva (2008), por meio de uma análise histórica, observaram que o fracasso escolar tem sido justificado em função das características internas da criança. Diante disso, as variáveis externas à escola vêm em segundo plano; já as práticas pedagógicas, que exercem centralidade no processo de aprendizagem, pouco têm sido debatida entre os educadores.

A pesquisadora Earp (2009) propôs-se a observar, para a tese do seu doutorado, durante dois anos, o cotidiano escolar em duas escolas públicas na cidade do Rio de Janeiro, sendo uma estadual e a outra municipal. Após esse período de observação, constatou que havia algo em comum em todas as aulas: “[...] percebi que existe uma estrutura que organiza e hierarquiza os alunos nas salas de aula, que denominei de ‘centro-periferia’. Minha hipótese é que essa estrutura determina quem vai ser mais ou menos ensinado na sala de aula.” (EARP, 2009, p. 621, grifo no original).

Ainda de acordo com a autora, essa organização centro-periferia não se trata de uma localização geográfica, mas refere-se às relações que os professores estabelecem com alguns alunos. Logo, os alunos do centro são aqueles a quem os professores dirigem sua atenção durante a aula, enquanto os da periferia são marginalizados no processo de aprendizagem. Como resultado dessa lógica operante na organização de sala de aula, são os alunos da periferia que apresentam baixo desempenho escolar, alimentando a cultura da repetência:

A observação e a descrição de diversas e variadas “salas de aula” das escolas de Ensino Fundamental e médio mostrou como a “cultura” da repetência se realiza na estrutura da aula. Os reprovados estão na “periferia” da sala de

aula. A estrutura “centro-periferia” é vivida e praticada como “natural”. (EARP, 2009, p. 623, grifos no original).

Analogamente, Jacomini (2009) observa, na prática docente, a legitimação do ensinar voltada somente para aqueles alunos tidos como ideais. A esse respeito, Earp (2009) afirma:

[...] a aula não é dada para todos porque a escola parece não ter essa função nas representações da maioria dos professores. Os docentes entrevistados justificam ter mais ou menos interação com alguns alunos. “São os mesmos que participam”; “Alguns alunos não se interessam”; “Nessa turma não tem nenhum que se salve”; “Alguns alunos não têm vontade de aprender”; “Esses alunos não têm jeito”; “Alguns alunos não querem nada” (EARP, 2009, p. 624, grifos nossos).

Segundo Ribeiro (1991, p. 18), a persistência das taxas de reprovação diz respeito a uma “[...] verdadeira metodologia pedagógica que subsiste ao sistema”. Nesse sentido, Jacomini (2009) acrescenta que o processo de seriação com promoção ou retenção foi sendo adotado na prática docente, justificando-se pelo imaginário coletivo de que não se pode fazer uma educação de qualidade sem esse processo classificatório. Percepção semelhante também é apresentada por Earp (2009) nas falas dos sujeitos ouvidos em seu estudo:

Quando você faz o exame com critério, você filtra: só vão para a etapa seguinte aqueles que aprenderam o necessário para ir para a etapa seguinte. Tem que ter o mínimo de exigência séria. Porque senão você não filtra. A reprovação é o filtro (palavras de um professor da Escola 2).

A reprovação seleciona. Ela seleciona os que querem estudar dos que não querem estudar. Tanto que você vai ver os alunos meus que são reprovados é gente que não quer nada mesmo. É gente que não quer estudar (palavras de um professor da Escola 2). (EARP, 2009, p. 626).

Esse processo classificatório era tão naturalizado que pouco se questionava a respeito dos seus impactos para os alunos e seus familiares, assim como não era confrontado como essas medidas pedagógicas eram adotadas (JACOMINI, 2009). A reprovação coloca no aluno tão somente a responsabilização pelo seu desempenho, sendo a repetição a chance de ele se adequar aos moldes pré-estabelecidos. Earp (2009) pôde constatar o peso antidemocrático dessas medidas pedagógicas na medida em que observou que os “bons alunos” são produzidos pela própria estrutura da sala de aula: estes são os de centro, que são também aqueles que tendem a ter notas boas. Portanto, a seleção elege os de centro e periferia, enquanto a reprovação filtra esses alunos.

No sentido de subsidiar o questionamento sobre a efetividade e o alcance da reprovação, a subseção seguinte investiga na literatura estudos que se propõem a responder a esse impasse.