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A cultura do “tout automobile”

SUSTENTÁVEL 31 2.1 Mobilidade urbana sustentável

2 A BICICLETA COMO ALTERNATIVA PARA A MOBILIDADE URBANA SUSTENTÁVEL

2.2 A bicicleta como alternativa de deslocamento nas cidades

2.2.1 A cultura do “tout automobile”

O automóvel surge, no início do século XX, como um modo de transporte individual, rápido e prático. Até a Segunda Guerra Mundial, ele é considerado um artigo de luxo, reservado apenas para as classes mais abastadas. Apesar de ainda ser pouco utilizado na Europa neste momento, o automóvel, por seu volume de ocupação, sua velocidade e sua modernidade, se impõe sobre todos os outros modos de deslocamento. Héran (2010, p. 52) relata que o primeiro código de trânsito, elaborado pela indústria automobilística, surge em 1922 e tem como objetivo de disciplinar os pedestres e ciclistas que circulam nas ruas.

As observações sobre o desaparecimento da bicicleta no cenário das cidades em função do aumento dos deslocamentos de veículos são observadas em Augé (2008, p.19), quando ele constrói o mito da bicicleta do período após a Segunda Guerra Mundial. Este período é marcado pelo uso intenso da bicicleta tanto para os deslocamentos diários quanto em grandes competições de ciclismo de estrada que são responsáveis por criar heróis nacionais. A decadência deste mito é atribuída ao afastamento – ou mesmo rompimento – da bicicleta com a vida cotidiana. “O distanciamento entre as residências e os locais de trabalho e a utilização sistemática do carro expulsaram a bicicleta para o domínio do esporte e do lazer.”4 (AUGÉ, 2008,

p. 19 - tradução da autora).

Silva (2009, p. 38) observa que “a introdução do automóvel teve a seu favor vários aspectos diretamente relacionados ao processo de modernização das cidades”. A pavimentação previamente implantada nas cidades para atender a demanda de uma maior circulação de pessoas, charretes, animais e bicicletas permite mais velocidade e eficiência para o automóvel. Ele ainda ressalta que a produção e o uso do automóvel em larga escala

[...] potencializou a lógica individualista e competitiva, já presente no corpo da sociedade moderna, contribuindo significativamente para a destruição das bases de sustentação do projeto coletivo implícito na vida urbana e formalmente representado pela cidade (SILVA, 2009, p. 41).

O fim da Segunda Guerra Mundial marca o início da transformação das cidades ocidentais. O espaço público precisa ser adaptado para acomodar o crescimento do número de automóveis nas vias. É neste momento que surge a expressão “tout- automobile” – traduzida como “tudo pelo automóvel, nada contra o automóvel” por Silva (2013, p. 378) – na França e serve para designar a ideia de que todos os problemas de deslocamentos podem ser resolvidos pelo uso quase que exclusivo do automóvel.

As mudanças nas cidades provocadas pelas políticas “tout automobile” são descritas por Héran (2010, p. 72) e por Razemon (2014, p. 18). Ambos demonstram que o automóvel domina toda a cidade enquanto pedestres e ciclistas são deixados de lado, descartados e até mesmo esquecidos pelo poder público. Héran (2010, p. 74)

4 L’éloignement des lieux de vie et des lieux de travail, l’utilisation systématique de la voiture ont repoussé la bicyclette dans le domaine du sport ou des loisirs.

mostra que a partir dos anos 1950 todos os esforços de modificação das cidades são voltados para o automóvel, enquanto pedestres e ciclistas são reservados a espaços reduzidos ao estritamente necessário. O discurso de George Pompidou de 18 de novembro de 1971 traduz bem este pensamento:

Existe algum esteticismo ao qual se deve renunciar e [...] não é porque impediremos os carros de circular que deixaremos Paris mais bela. O carro existe e devemos acomodá-lo e trata-se de adaptar Paris tanto para a vida dos parisienses quanto para as necessidades do automóvel, desde que os motoristas estejam dispostos a se acomodar (POMPIDOU apud HÉRAN, 2014, p. 73 – tradução da autora).5

O fenômeno do planejamento das cidades centrado no automóvel pode ser percebido com mais força nos Estados Unidos. Mapes (2009, p. 16) descreve a trajetória da evolução da cultura automobilística nos Estados Unidos desde a implantação das indústrias no início do século XX e mostra que o estilo de vida americano vai se modificando com automóvel enquanto as cidades vão se adaptando a essa nova realidade.

Fleming (2012, p. 85) diz que o crescimento e o estímulo ao uso de veículos motorizados são uma história paralela àquela do deslocamento das classes mais influentes em direção às vilas operárias nos subúrbios das cidades. Em um primeiro momento, a mudança do homem trabalhador para áreas mais distantes do centro da cidade só foi possível graças ao carro que se torna um bem de consumo. Nos anos 1970, a segunda onda do feminismo trouxe o desejo das mulheres de conduzirem os seus próprios carros e as casas das famílias americanas passaram a ter dois carros. Por fim, nos anos 1980, os filhos adolescentes destas famílias ganharam o direito a ter o seu próprio carro, aumentando ainda mais o número de veículos nas residências. As políticas de valorização do automóvel acabam por produzir uma cultura de completa dependência. Mapes (2009, p. 16) observa que todo o desenvolvimento tecnológico voltado para o automóvel acabou por transformá-lo em uma extensão da própria casa do homem. Em dez anos, os americanos passam mais tempo dentro de seus carros do que em suas próprias casas. Razémon (2014, p. 21) reforça essa ideia

5 Il y há un certain esthétisme auquel il fault renoncer et [...] cést nést pas parce qu’on empêcherait les voitures de circuler quón rendrait Paris plus beau. La voiture existe il faut s’en accomoder et il s’agit d’adapter Paris à la fois à la vie des Parisien et aux nécéssités de láutomobile à condition que les automobilistes veuillent bien se discipliner.

ao afirmar que “no imaginário coletivo, o automóvel continua sendo o meio de transporte por excelência”6 (tradução da autora).

Esta política que valoriza o automóvel é facilmente identificada nos países emergentes e em desenvolvimento, incluindo o Brasil. Silva (2013, p. 378) destaca fatores tais como a pressão da classe média e os interesses associados da indústria do petróleo e das grandes obras públicas que determinam prioridades políticas voltadas para o transporte individual. Observa-se que as grandes obras estruturadoras para preparar as cidades brasileiras para a Copa do Mundo em 2014 são, em sua maioria, alargamento de vias e construção de viadutos para melhoria do fluxo de veículos.

Eveline Trevizan, Superintendente de Projetos e Educação da BHTrans (Empresa de Transportes e trânsito de Belo Horizonte) e Coordenadora do Programa Pedala BH, confirma a prevalência da cultura do “tout automobile” ao reconhecer que, apesar dos avanços já ocorridos com o início da implantação do projeto de mobilidade por bicicletas em Belo Horizonte, a resistência da população da cidade, dentro da BHTrans e da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) ainda existe:

Então a gente tem ainda uma cidade totalmente voltada para o automóvel, a gente tem inclusive dentro da própria BHTrans, né, da Própria Prefeitura, pessoas que acreditam que Belo Horizonte não é uma realidade para a bicicleta, que a gente não deve disponibilizar tantos recursos assim para este projeto, enfim, é um programa que desperta muitas reações muitas vezes muito agressivas contra ele, sabe (LAGE, 2016, p. 15).

As observações de Trevisan se justificam ao observar as declarações de um morador da cidade, em um blog intitulado SOS, sobre os projetos da BHTrans – em especial sobre o programa Pedala BH:

Os planos apresentados pelas duas instituições (BHTrans e Sudecap) caminham diametralmente ao desejo da população. Ao fechar vias; alargar passeios; afunilar cruzamentos; implantar ciclovias, deixando menos espaço para carros onde eles já não cabem mais; usar arranjos provisórios no lugar de obras definitivas, (os famosos puxadinhos), na tentativa de dificultar a vida de quem tem carro, esperando com isso que a população mude o comportamento, já está comprovado que não é o caminho (RIBEIRO, 2013).

Esses modelos utilitários [SUVs] estão cada vez maiores, mais largos e são o sonho de consumo da maioria dos motoristas brasileiros apaixonados por carros. A teimosia da BHTrans não tem limites, basta

ver que a maioria dos veículos estacionados nas laterais das vias, ficam com um dos lados para fora do espaço destinado ao estacionamento. Isso compromete o fluxo, já que os carros que circulam nas faixas laterais precisam diminuir a velocidade para não bater nos retrovisores daqueles estacionados. Com efeito, a BHTrans precisa compreender que não se muda cultura enfiando modelos importados goela abaixo da população (RIBEIRO, 2014).