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Dialética sócio espacial e utopia conceitos

SUSTENTÁVEL 31 2.1 Mobilidade urbana sustentável

2 A BICICLETA COMO ALTERNATIVA PARA A MOBILIDADE URBANA SUSTENTÁVEL

2.4 A mobilização política através do uso da bicicleta e a ciclocultura – mudança na configuração dos espaços públicos das cidades.

2.4.1 Dialética sócio espacial e utopia conceitos

A discussão sobre mobilidade urbana se processa necessariamente no contexto da cidade contemporânea. Muitas das questões teóricas formuladas nos últimos anos, nos diversos campos de estudos desta cidade contemporânea, acabam por constituir um momento denominado pós-modernismo.

Apesar de este termo já ter sido usado nos anos 1930 por Frederico de Onís para representar uma corrente literária identificada dentro do próprio Modernismo, usaremos aqui um conceito expandido, elaborado por Harvey (1996, p. 47) e outros teóricos deste momento, que considera as transformações culturais (e não apenas estéticas) que ocorreram entre os anos 1968 e 1972.

Mesmo sem se aprofundar na discussão sobre a definição do conceito de pós- modernismo, Nesbitt (2008, p. 15) reconhece a existência de um período pluralista

que recebe o nome de pós-modernismo e cuja principal característica é: “inexistência de um tópico ou de um ponto de vista dominante” (NESBITT, 2008, p.15). Ela indica que o ponto em comum destas tendências contraditórias e coexistentes no pós- modernismo é o desejo de ultrapassar os limites da teoria modernista e comprova que esta nova teoria é uma crise de sentido na disciplina.

Ao se considerar a existência de uma crise, observamos o fenômeno de “permeabilidade das bordas” descrito por Klein (1996, p. 38) como uma característica das humanidades e das ciências sociais. A busca por um novo paradigma para a teoria da arquitetura e do urbanismo abre espaço para o diálogo com outras áreas de conhecimento onde se aplicam metodologias interdisciplinares e transdisciplinares. Desta forma, os marcos teóricos para o entendimento da produção do espaço urbano contemporâneo – pós-modernista – serão desenvolvidos a partir dos conceitos de Soja, em especial o da dialética socioespacial, e de Marc Augé sobre não lugares, mobilidade e utopia, pois considera-se que existe um diálogo entre estes autores.

As modificações sofridas na mudança da experimentação do espaço e do tempo são identificadas em Harvey (1996, p. 15) como Pós-modernismo. Augé (2012, p. 32) também trata deste fenômeno, conceituando-o como supermodernidade. Dentro destes dois contextos é necessário entender que a globalização tem um papel importante. Soja (2008, p. 190) associa este termo a um paradigma que abraça todos os estudos sobre o contemporâneo, seja nas relações entre os indivíduos e território ou mesmo nas relações interpessoais.

A cidade está no centro destas transformações da experimentação do espaço. Araújo (2012, p. 134), ao estudar a obra de Lefèbvre, demonstra que a cidade passa por diversas transformações ao longo do tempo que estão intimamente relacionadas com os modos de produção. Mogin (2009, p. 29) apresenta tipologias diversas de cidades que se apresentam ao longo da história da humanidade que vão desde ao conceito da polis grega até a cidade industrial onde prevalece à circulação com um aumento potencial dos fluxos até chegar à uma situação de compressão da noção de tempo e espaço. As mudanças sofridas pela cidade, principalmente no processo de industrialização, produzem profundas tranformações em sua morfologia:

Primeiramente, a industrialização negou a centralidade na cidade, fenômeno que Léfèbvre identifica como “implosão”, pois, o conteúdo político e comercial perde sua potência social. Depois, ocorre a “explosão” da cidade ou projeção de fragmentos da malha urbana disjuntos por uma vasta região (as periferias). Deste duplo processo

(implosão-explosão) uma anticidade foi produzida, política-comercial (ARAÚJO, 2012, p. 135).

É claro que essas mudanças apresentadas na síntese de Araújo da obra de Lefèbvre e por Mogin têm reflexo na produção do espaço na contemporaneidade. As relações interpessoais e das pessoas com o espaço urbano pouco a pouco deixam de ter a importância que tinham em modelos de cidades do passado. Desta contestação sobre a mudança do espaço público urbano Augé (2012, p. 71) formula o conceito de não lugar que se opõe ao conceito de lugar antropológico, aquele que exprime a identidade do grupo, que é vivido e vivenciado por esse grupo.

Augé (2012, p.87) diz que duas realidades complementares podem ser usadas para designar os não lugares: (1) espaços constituídos em relação a certos fins – transporte, trânsito, comércio, lazer – e (2) a relação que os indivíduos mantêm com estes espaços. Estas duas relações se correspondem, mas não se confundem, os não lugares criam uma tensão solitária. Opondo a esta condição, o conceito de “lugar antropológico” é entendido como a construção concreta e simbólica do espaço e se apresentam como um lugar identitário, relacional e histórico. Existe uma relação dialética entre estes dois conceitos já que é possível transformar o não lugar em lugar antropológico – e vice-versa – a partir da relação que das pessoas estabelecem com o espaço. O lugar antropológico definido por Augé pode ser identificado com “espaço social” conceituado por Lefebvre em A Produção do Espaço. Este espaço social é caracterizado por três dimensões práticas espaciais e temporais que são: o vivido, o percebido e o imaginado. Segundo Harvey (1996, p. 202) as relações dialéticas entre elas é o ponto de uma tensão dramática por meio da qual pode ser lida a história das práticas espaciais.

No conceito de dialética sócio espacial, utilizado por Lefebvre, está implícita a ideia da influência mútua entre as relações espaciais e sociais. Sintetizando, “estamos falando de processos que, por um lado são simultaneamente econômicos, sociais, políticos e culturais e, por outro, referem-se tanto a conceitos teóricos quanto às praticas” (COSTA, 2015, p. 37). Este conceito é primordial para a compreensão do espaço urbano onde a organização espacial influencia e, ao mesmo tempo é influenciada pelas relações sociais que nela se processam.

Harvey (2013, p. 48) lembra que “a liberdade da cidade é, portanto, muito mais que um direito de acesso àquilo que já existe: é o direito de mudar a cidade mais de acordo com o desejo de nossos corações.” Ele lembra que a resposta de Lefèbvre

para a luta pelo exercício ao direito da cidade está na mobilização social e na luta política social. Cabe destacar que este direito não é abstrato, ela pertence às práticas diárias e tem a capacidade de transformar a cidade no lugar onde novas concepções e configurações da vida urbana possam ser pensadas.

A ideia da sociedade urbana, o urbano, para Lefèbvre (1999, p. 28) não é uma realidade acabada, mas uma virtualidade iluminadora. Ele ainda considera o urbano como o possível, definido por uma direção onde alcança-lo significa contornar ou romper aquilo que o torna impossível. É importante lembrar que “o processo de construção de uma teoria do espaço em Lefèbvre não está focada em um objeto definitivo, acabado, mas em um processo, que procura incorporar a dimensão política do espaço em teoria e prática.” (COSTA, 2015, p. 35).

Se em Lefèbvre temos um espaço definido a partir de um processo de produção, Augé (2010, p. 95) demonstra que a utopia na cidade se desloca de uma concepção congelada e imóvel para um meio de reinventar o cotidiano. A utopia é, assim como o urbano definido por Lefèbvre, uma possibilidade.

Augé afirma que “hoje mudar de vida é mudar inicialmente a cidade. Tem muito a ser feito e tudo aquilo que foi realizado, mas não ficou bom. Mas uma utopia encontrou seu lugar, isto já é alguma coisa” (AUGÉ, 2008, p. 11). Seguindo a mesma linha, Harvey (2013, p. 44) reconhece que a liberdade da cidade é mais do que um direito de acesso ao que já existe, é um direito de mudar a cidade. Este direito é exercido por meio da mobilização social e da luta política, no cotidiano.

Em Elóge de la Bicyclètte, Augé apresenta a utopia da cidade transformada pela bicicleta. Esta utopia propõe um futuro alimentado com esperança onde é possível a partir da história presente movimentar a sociedade, mudar as linhas de vida e subverter os medos e rancores dos menos imaginativos. A cidade que conhecemos hoje se transforma, diminui o ritmo e se abre para relações sociais mais abertas e cordiais. A bicicleta é o agente promotor de mudanças sociais, de formas de produção do espaço. Augé afirma que o ciclismo é a imposição aguda do espaço e do tempo.

O simples fato de que a prática da bicicleta dá assim uma dimensão perceptível ao sonho de um mundo utópico onde o prazer de viver será a prioridade de cada um e assegurará o respeito de todos nos dá uma razão de ter esperança. Retorno à

utopia, retorno à realidade, tudo está ligado. A vocês, ciclistas, para mudar a vida! O ciclismo é um humanismo (AUGÉ, 2008. p. 88).12

Augé aponta assim para uma transformação do espaço a partir o retorno do uso da bicicleta nos deslocamentos cotidianos dos moradores. O cicloativismo pode ser assim considerado um movimento social, uma prática insurgente que propõe a subversão da ordem vigente da mobilidade urbana. O estudo antropológico deste fenômeno se encontra com as reflexões neomarxistas da teoria do espaço presente no planejamento urbano.

2.4.2 A bicicleta como instrumento político de mudança do espaço público