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Uma das temáticas a que nos referimos no início deste tópico diz respeito ao currículo e ao terreno da avaliação curricular, especificamente. O currículo, assim como a avaliação em educação, caracteriza-se como fenômeno complexo e, como tal, é entendido de variadas formas por distintas perspectivas teóricas, tendo diferenciações de base epistemológica e metodológica.

Consoante anota Holanda e Leitinho (2011, p. 19): “[...] a avaliação curricular deve abranger desde a concepção de currículo, ao seu desenvolvimento e sua validação”. E complementam: “Percebe-se que ao longo da história, que a avaliação curricular tem se desenvolvido como prática, antes de desenvolver-se como teoria; a busca de uma teoria curricular, com base empírica é um dos objetivos da investigação na área.”

Buscando então compreender o currículo e a avaliação curricular como prática e teoria, consideramos o primeiro como centro da atividade educacional (BEYER; LISTON, 1996) e, como tal, é influenciado pela pluraridade das concepções e ações educativas. Este aparece como objeto específico de estudo e pesquisa nos Estados Unidos, nos idos de 1920, numa época de crescente industrialização, de massificação da escolarização e de racionalização dos processos administrativos e econômicos, os quais se intensificam após a crise econômico-financeira de 1929.

O modelo econômico social afirmado então é o modelo taylorista-fordista, fundamentado nos princípios de produção e consumo em massa, na racionalização do processo econômico, com a institucionalização da esteira produtiva e a divisão de tarefas entre a gerência e o chão da fábrica. O modelo de Estado que lhe dá sustentação é o Modelo de Estado Ampliado, que tem como braço forte de ação as políticas sociais públicas em atenção às exigências de um movimento sindical largamente fortalecido e que dá base de sustentação política ao Estado.

É nesse âmbito, e fundamentando-se no “modelo da fábrica” e nos princípios da Administração Científica de Taylor e Fayol, que o currículo é concebido inicialmente. Para Bobbitt (2004), o currículo caracteriza-se como racionalização de resultados educacionais, especificados e medidos de forma cuidadosa e rigorosa, no âmbito do qual os alunos são processados como produto. Silva (2009) garante que o sistema educacional deveria ser tão eficiente quanto qualquer outra empresa econômica. E acrescenta:

A tarefa do especialista em currículo consistia, pois, em fazer um levantamento dessas habilidades, desenvolver currículos que permitissem que essas habilidades fossem

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desenvolvidas e, finalmente, planejar e elaborar instrumentos de medição que possibilitassem dizer com precisão se elas foram realmente aprendidas. (SILVA, 2009, p. 24).

Desta forma, a concepção de currículo caracteriza-se como procedimentos e métodos para a obtenção de resultados que possam ser precisamente mensurados. O currículo se torna industrial e administrativo e a preocupação central refere-se a questões técnicas que devem ser respondidas e fundamentadas numa postura de neutralidade (assepsia axiológica da cientificidade) e responderem ao “como” organizar o currículo.

Silva (2009) assevera que o modelo de currículo de Bobbitt iria se consolidar definitivamente com a publicação das ideias de Ralph Tyler em 1949 e sua expansão pelas quatro décadas posteriores. As ideias de Tyler também reafirmam a ideia de currículo como essencialmente uma questão técnica, cujos objetivos educacionais devem estar claramente definidos e formulados em termos de comportamento.

Compreende Silva que as ideias de Bobbitt e Tyler caracterizam o Modelo Tecnocrático de Currículo que emergem em contraposição ao Currículo Clássico-Humanista, cujo objetivo era introduzir os estudantes no repertório das grandes obras literárias e artísticas.

A racionalidade curricular de Tyler, que segundo ele, é simplesmente uma maneira ordenada de planejar o currículo identifica quatro questões básicas que deveriam ser respondidas no desenvolvimento do currículo e do plano de instrução: 1. Que objetivos educacionais os estudantes devem ser ajudados a atingir? 2. Que experiências de aprendizagem podem ser providas para permitir que os estudantes possam atingir os objetivos? 3. Como as experiências de aprendizagem podem ser organizadas para maximizar seus efeitos cumulativos? 4.Como a efetividade do programa pode ser avaliado? (LIRA, 2010, p. 118).

A avaliação da aprendizagem, na proposta de Tyler, está integrada ao seu modelo para a elaboração do currículo, que assume, essencialmente, um caráter de controle do planejamento, analogamente ao que ocorre no processo de produção industrial. Vale ressaltar que, nos anos 1950, com o surgimento, nos EUA, dos projetos de desenvolvimento de ensino e currículo – seja como resposta a novos sistemas educacionais, seja provocada pela insatisfação com os programas institucionais, existentes a avaliação de currículo aparece com foro de disciplina científica.

Neste período considera-se que o currículo começa a adquirir cidadania epistemológica, mais especificamente com as obras de John Dewey, Tyler, dentre outros, cidadania esta reforçada pela criação de departamentos de currículos nas universidades dos EUA associada ao estudo de políticas educacionais (PACHECO, 2005). Os estudos realizados até então, todavia, estão mais voltados para componentes operacionais do currículo e menos à

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sua teorização, denotando um cariz tecnicista e uma doxa curricular que demanda a constituição de raízes epistemológicas.

No entendimento de Pacheco (2005), essa fragilidade no estudo teórico do currículo está relacionada à fragilidade do exame de fenômenos educativos, os quais se encontram referenciados em outras ciências, tais como a Psicologia, Filosofia, História, dentre outras. Essa referenciação influencia a busca do objeto central do fenômeno educativo, pois se constata que esta especificidade se encontra diluída. O currículo como parte do fenômeno educativo lida com problemas singularmente educacionais e, como tal, também recebe influxos dessa diluição e falta de especificidade.

Assim, como defende Pacheco (2005), sem um quadro teórico vindo de uma ciência auxiliar, a estrutura substantiva do currículo é formada numa lógica da interdisciplinaridade e também numa atitude de questionamento de problemas educativos essencialmente práticos. Consoante a essas discussões, destacamos o pensamento de Pinah, ao assinalar que a teoria curricular tem história única, presente complexo e futuro incerto.

Vale mencionar que as origens do pensamento curricular brasileiro seguem um hibridismo entre concepções enciclopedistas, tecnicistas e escolanovista. Consoante pensa Moreira (1997) nos anos 1920/30, o currículo se fundamenta no pensamento jesuítico, enciclopedista e progressivista. Nas décadas posteriores, especificamente nos anos de 1960 e 1970, o que orienta os estudos de currículo no Brasil é a visão sincrética entre o escolanovismo, tecnicismo, nacional-desenvolvimentismo e as teorias da emancipação.

Na década de 1970, a avaliação da aprendizagem no Brasil trilhou os caminhos da produção estadunidense, que tinha como referência os seguidores de Tyler: James Popham, Eva Baker e Robert Mager. As referências brasileiras no estudo de currículo foram Malina Couto e Lady Lina Traldi, que se destacam, sobretudo, nos anos 70, com o aparecimento dos projetos de currículo.

Sobre este aspecto destaca Saul (1995, p. 29):

Robert Mager, assumindo as ideias cientificistas de Tyler e apoiado na crença básica do valor da precisão para planejar o ensino, introduziu uma sistemática de especificação (operacionalização) dos objetivos educacionais. A definição de um objetivo útil deveria apresentar três características: a) conter, explícito, o comportamento observável do aluno; b) especificar as condições nas quais o comportamento deve ocorrer; definir o padrão de rendimento aceitável (critério) segundo o qual o nível de desempenho do aluno é considerado satisfatório.

Analisando as ideias de Traldi (1987), influenciadas por autores tecnicistas e behavioristas, a concepção de currículo define-se como uma educação sistematizada e

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organizada, a fim de atender às necessidades e interesses de uma dada sociedade ou cultura, ao mesmo tempo em que procurará atender as necessidades dos educandos. Traldi propõe currículos centrados em áreas de conhecimento, enfatiza a aquisição do conhecimento ao em vez do conhecimento em si mesmo, e propõe que uma avaliação efetiva do currículo se fundamentaria numa observação sistemática, na pesquisa, na investigação orientada e dinâmica da cultura, da realidade escolar e do educando.

Vale mencionar ainda que, nos anos 1970, mais crises capitalistas ocorreram e trouxeram como demanda a reformulação do Estado e da esfera do trabalho. O Estado ampliado estava esgotando suas possibilidades de se manter como tal, pois, segundo as justificativas oficiais o governo, estava falindo em razão da impossibilidade de sustentar os gastos com as políticas públicas, dentre as quais as políticas educacionais.

Tal como no princípio dos anos 70, a necessidade de gerir orçamentos cada vez mais exíguos traz de novo para a ribalta as dinâmicas avaliativas, das quais se espera um contributo efetivo para uma maior eficácia do ensino e para uma melhor rentabilização dos recursos. (RODRIGUES, 1993, p. 9).

Tal movimentação societária faz emergir produções que situam o pensamento e a estrutura tradicional em xeque. Dentre tais produções, destacamos os autores da chamada Nova Sociologia, a saber, Michael Young, Paulo Freire, Louis Althusser, Bourdieu e Passeron, Baudelot e Establet.

No Brasil, somente em 1978, aconteceram tentativas de evidenciar abordagens qualitativas de avaliação curricular. Em 1980 foi traduzido o livro de Parlett e Hamilton: Avaliação como iluminação. Foi nesse período que se vivenciou a chamada Reconceitualização do Currículo, em que se compreendia o currículo além de uma atividade técnica. Neste período, planifica-se o pluralismo epistemológico e metodológico no espaço da avaliação curricular. Dentre as perspectivas teóricas de explicação do currículo, podemos destacar as seguintes: Fenomenologia, Teoria Crítica da Escola de Frankfurt e Marxismo.

A perspectiva fenomenológica, representada pelos autores Max von Mannen e Ted Aoki (Canadá) e Madeline Grumet (EUA), valorizava os significados subjetivos que as pessoas dão às suas experiências pedagógicas e curriculares: “Toda consciência é consciência de algo”. Esta perspectiva representa um rompimento com a epistemologia tradicional e é a que menos reconhece a estruturação tradicional do currículo em disciplinas ou matérias.

“O currículo não é constituído de fatos, nem de conceitos teóricos e abstratos, é um local onde os docentes e aprendizes têm a oportunidade de examinar de forma renovada, aqueles

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significados da vida cotidiana que se acostuma a ver como dados e naturais.” (SILVA, 2009, p. 40).

Na teorização sobre o currículo, a análise fenomenológica é frequentemente combinada com duas outras estratégias de investigação: a hermenêutica (GADAMER) – descrição e interpretação – e a autobiografia (PINAR), que permite se fazer conexão entre o conhecimento escolar, a história de vida e o desenvolvimento intelectual e profissional, contribuindo para a transformação do próprio eu.

A teoria crítica do currículo, fundada em ideias marxianas e marxistas, está assentada na crítica radical à educação liberal dentro de uma análise da educação e da cultura de uma forma bem mais ampla, sem, no entanto, ter como foco o currículo e o conhecimento escolar. Os autores nomeadamente marxistas, a exemplo de Althusser, fazem uma crítica aberta à escola capitalista, a qual reproduz valores da forma de sociabilidade capitalista e reproduz as relações de poder inerentes a esta.

Foi somente, porém, com Michael Apple que pudemos acentuar a ascensão de uma crítica neomarxista às teorias tradicionais do currículo e ao papel ideológico do currículo. Ele procura investigar o currículo oculto e o oficial, buscando entender como a escola atua na distribuição do conhecimento oficial e com seu olhar centrado nas relações de poder que ocorrem na escola. “Currículo e Poder” compõem uma equação básica que estrutura a crítica do currículo desenvolvido por Apple.

Na perspectiva de Bersntein, Bourdieu e Young, o conhecimento corporificado no currículo resulta de um processo que reflete os interesses particulares das classes e grupos dominantes (SILVA, 2009, p. 46). Bowles e Gintis, por sua vez, chamaram a atenção para o papel exercido pelas relações sociais da escola no processo de reprodução social.

Berntein insiste na ideia de não ser possível separar questões de currículo de questões de avaliação. Para ele, existem dois tipos fundamentais de currículo: 1. o currículo como coleção, onde não há permeabilidade entre as diferentes áreas do conhecimento; e 2. o currículo integrado, onde as distinções entre as diferentes áreas de conhecimento são muito menos nítidas ou marcadas. Para Young, o currículo acadêmico tem sido apontado como: “[...] fonte de distribuição desigual de educação pela hierarquia nele envolvida, pelo isolamento entre as disciplinas que o compõem e pela exclusão do conhecimento não escolar.” (MORAES, 2008, p. 94).

Já na compreensão lúcida de Boudieu e Passeron, a cultura não depende diretamente da economia, no entanto a dinâmica da reprodução social está centrada na reprodução cultural e a cultura a que se atribui valor é a cultura das classes dominantes.

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Explicitando o pensamento dos autores sobre currículo Silva (2009, p. 35) assinala que: “Sua proposta pedagógica consiste em advogar uma pedagogia e um currículo que reproduzam, na escola, para as crianças das classes dominadas, aquelas condições que apenas as crianças das classes dominantes têm da família.”

Em relação a Paulo Freire, há um consenso em assinalar que ele não desenvolveu uma teorização específica sobre o currículo, embora seu esforço de teorização consista em responder a uma pergunta curricular fundamental: o que ensinar? Em suas respostas a essa questão, caracteriza um conceito fundamental de educação problematizadora, defendendo a noção de que todos os sujeitos estão ativamente envolvidos no ato do conhecimento.

Freire não se limita a criticar a educação bancária, ele fornece instruções detalhadas de

como desenvolver um currículo que seja a expressão de sua concepção de ‘educação problematizadora’. O ‘conteúdo’ é sempre resultado de uma pesquisa no universo

experiencial dos próprios educandos, os quais são também ativamente envolvidos nesta pesquisa. (SILVA, 2009, p. 46).

Para estudiosos de seu pensamento, Freire inspira o modelo de avaliação emancipatória, desenvolvido por Saul (1995) e outros autores, que, dentro de seu marco conceitual elegem a categoria de avaliação dialógica como fundamento para compreensão crítico-analítica e reflexiva da realidade curricular e educacional.

A terceira perspectiva destacada no Movimento de Reconceituação do Currículo ancora-se na perspectiva defendida pela Escola de Frankfurt, que influenciou o pensamento de Henry Giroux. Assim como as demais vertentes desse movimento de reconceituação, a grande crítica aqui realizada refere-se à racionalidade técnica e utilitária, bem como ao positivismo e sua visão asséptica do currículo. “Giroux sugere que existem mediações e ações no nível da escola e do currículo que podem trabalhar contra os desígnios do poder e do controle.” (SILVA, 2009, p. 53). E acentua que a escola e o currículo devem ser locais de exercício de habilidades democráticas.

Aqui cabe destacar o pensamento de Adorno, um dos componentes da Escola de Frankfurt, citado por Moraes (2008, p. 141) que assinala, sobretudo, que não se forma uma consciência emancipadora, sem vivenciar a emancipação:

Para Adorno, a palavra emancipação tem sido esvaziada de seu sentido. As grandes dificuldades que se opõem à emancipação nessa organização do mundo emergem da contradição social, posto que prevalece em sua configuração a heteronomia em detrimento da autonomia.

Na década de 1990 até a atualidade, podemos perceber os influxos do neoliberalismo e da globalização sobre as reformas na educação, dentre as quais podemos

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destacar: o impacto sobre a organização do trabalho passa a exigir maior qualificação sobre o trabalhador, os governos aumentam as despesas com educação a fim de obter um sistema educacional bem estruturado, a utilização da informática faz surgir a educação a distância como forma de baratear os custos e atingir o maior número de pessoas. Todas essas ações contribuem para a conformação da chamada “sociedade do saber”.

Nesse contexto, as reformulações resultantes da implementação do processo de Bolonha poderão aproximar o sistema educativo às lógicas e ao sistema de mercado, harmonizando e flexibilizando as estruturas curriculares para a mobilidade dos docentes e discentes entre as instituições, dentro de um espaço europeu de ensino superior mais coeso e competitivo. (MORAES, 2008, p. 24).

Considerando essa análise histórica que nos fez compreender as concepções de currículo, optamos, como paradigma de fundamentação da nossa incursão investigativa, a Teoria Crítica do Currículo, ou a tendência de organização curricular dinâmico-dialógica (LEITINHO, 2000), mais próxima as ideias de Giroux (1996), o que nos possibilitará compreender o currículo não como dotado apenas de um caráter técnico, e sim como “artefato social e cultural”, marcado por determinações sociais e históricas e permeado pelas dimensões pessoais, éticas, sociais e políticas, como esfera pública democrática (SILVA, 2009).