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Paradigmas fundantes do currículo de Serviço Social no Brasil: da visão cristã

3 DADOS DE CONTEXTO: A FORMAÇÃO PROFISSIONAL DO

3.2 Paradigmas fundantes do currículo de Serviço Social no Brasil: da visão cristã

Partindo de uma leitura crítica do desenvolvimento da profissão, identificamos visões político-filosóficas que concedem feição à natureza da nossa profissão e do currículo de Serviço Social. Dentre as diversas leituras realizadas e a vivência da prática docente, observamos que, ao longo da história, os paradigmas fundantes da formação profissional são: Tomismo/Neotomismo, Positivismo/Funcionalismo, Marxismo ou marxismos e uma proposta de metodologia pretensamente fundamentada na Fenomenologia. Algumas perspectivas da

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Psicologia também influenciaram a visão do homem ao longo do processo de formação e exercício profissional do Serviço Social no Brasil, em destaque, a visão freudiana e a Gestalt.

Tais concepções destacadas tiveram seu período de maior influência, embora alguns tenham coexistido, ora com uma orientação sincrética ora como fundamento de posicionamentos políticos e profissionais diferenciados.

No seu surgimento e institucionalização, as influências conservadoras advindas da perspectiva cristã, particularmente da concepção neotomista, apoiavam a configuração do assistente social como profissional da ajuda. Desta feita, o modelo de formação profissional deveria ser orientado pela Doutrina Social da Igreja e seguir uma concepção de homem que considerasse seu corpo e sua alma e um modelo de sociedade como instância na qual o homem pode se completar e se realizar como pessoa, sobretudo no aspecto da dignidade.

A formação e exercício profissionais seguiriam, então, um projeto de sociedade que privilegiasse duas dimensões do homem – o corpo e a alma – e estava fundada em valores cristãos e em práticas caritativas e reformadoras do caráter. A fim de seguir essa perspectiva, a formação profissional do assistente social afirmava a supremacia da formação moral à formação técnica, embora as duas fossem reconhecidas como necessárias.

Nesse sentido, as escolas de Serviço Social deveriam consoante, Ferreira Silva (2008, p. 53):

Desenvolver a personalidade dos alunos, garantir sua formação profissional, dando- lhes o conhecimento dos problemas sociais e a técnica do trabalho a ser realizada para atingir sua finalidade o programa de ensino deve ser vivificado por uma sólida doutrina e, por outro lado, corresponder às necessidades do Serviço Social em geral e às necessidades e possibilidades particulares da sociedade que ela quer servir. Caso contrário, não se consolida o propósito principal da profissão: ação que responde honesta e eficazmente aos atritos sociais a solução verdadeira das graves questões.

Doutrinas e técnicas são, neste contexto, parâmetros básicos para a atuação do assistente social. Essa concepção esteve na formação profissional dos assistentes sociais e como base do exercício profissional até décadas recentes. No campo teórico-metodológico como proposta de intervenção profissional baseada em discussões coletivas, a proposta neotomista de homem aparece ainda no produto do I Seminário de Teorização do Serviço Social, articulado pelo CBCISS e realizado em 1967: o Documento de Araxá. Neste, a proposta neotomista esteve claramente presente na definição de valores como a autodeterminação, aceitação e não julgamento e dos princípios da perfectibilidade, dignidade humana e sociabilidade.

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Vale notar que aqui consideramos a dimensão ética como campo de mediações entre projetos que portam valores e que se relacionam com determinados projetos societários. E coletivamente (campo da universalidade) e vivenciado individualmente (campo da particularidade e da singularidade), o projeto profissional do Serviço Social se metamorfoseou de acordo com os objetivos profissionais definidos coletivamente, que tinham como referência matrizes do pensamento humano e, portanto, vinculado à defesa de determinada forma de sociedade. Assim se relacionam as dimensões ético-política, teórico-metodológica e técnico-operativa.

Nesse sentido, consideramos que ética profissional não é secundária na formação do assistente social, mas crucial para a prática cotidiana dos assistentes sociais. Portanto, pensamos esta como fio condutor da formação profissional e se propõe ocupar espaços além de uma estrutura normativa formada pelo código profissional, que é um parâmetro para a categoria se guiar. Necessário se faz destacar, então, o fato de que os primeiros três códigos profissionais do assistente social estavam embebidos pelo neotomismo, por princípios que defendiam a conciliação de classes e compreendiam a prática profissional dos assistentes sociais como uma prática nomeada por vocação, que buscava a harmonia e a paz social.

No contexto das décadas de 1960 e 1970, configurou-se no campo da educação uma exigência pela tecnificação das profissões. Desta feita, a formação e o exercício profissionais mudaram sua base de apoio para a então denominada perspectiva modernizadora, que tinha como fundamento explícito o paradigma positivista/funcionalista, sem, no entanto, deixar de incorrer em sincretismos com a perspectiva neotomista.

Desde esse momento, as exigências sobre a formação profissional incidiram sobre a profissionalização do Serviço Social e pelo necessário uso da técnica em suas intervenções profissionais. Em tal época, a tônica das discussões versava sobre a natureza do Serviço Social e em sua definição como ciência, técnica ou arte.

Nesse período, a atuação profissional deveria balizar-se pela neutralidade, e a importância fundamental do aprendizado do assistente social recorria sobre o adequado uso da técnica no encaminhamento dos “problemas sociais”. A formação profissional do assistente social balizava-se num envolvimento ou, no mínimo, um não questionamento das estruturas de poder vigentes e novas propostas teórico-metodológicas surgiram como opções ao serviço social conservador e sua tríade – caso, grupo e comunidade.

Neste período, com as discussões envolvendo a perspectiva modernizadora, realizadas no seminário de Araxá e Teresópolis, a tônica era a tensão entre a micro e macro atuação. Na macro atuação, a grande novidade era a intervenção do Serviço Social junto a

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populações (além da intervenção com indivíduos, grupos e comunidades) e sua atuação em políticas sociais, planejamento social e administração.

Esse cenário mais abrangente de definição das funções profissionais ao nível da macro atuação, trouxe novas exigências para a formação profissional, dentre as quais destacam-se a incorporação de mais disciplinas no currículo mínimo de Serviço Social matizado pelas exigências de domínio teórico em campos de conhecimento antes não abordados ou exigidos, a saber: Teorias do Estado, o estudo da Teorias Geral da Administração, o domínio das teorias e técnicas de planejamento e formulação e gestão de politicas sociais. Documentos da época mencionam também a exigência da pesquisa e relatam o crescimento do número de cursos de Serviço Social, trazendo também como inovações desses tempos o reconhecimento da docência como campo profissional do assistente social e o inicio da pós-graduação em Serviço Social, com a institucionalização de alguns programas de mestrado e doutorado no eixo Rio-São Paulo.

Como nossa formação acadêmica, no entanto, ainda era frágil e a influência católica não se dissipara instantaneamente do Serviço Social, continuamos tendo por base os pressupostos éticos cristãos da sociabilidade, perfectibilidade e dignidade humana, por assim dizer aprendendo e aplicando o que o código de ética vigente pressupunha e, contraditoriamente, assumido as exigências de tecnificação da prática profissional.

Essa formação e atuação tripartide (Caso, Grupo e Comunidade) foi amplamente questionada pelos veios transformadores do Movimento de Reconceituação, que questionaram não somente a metodologia de atuação do Serviço Social, mas, principalmente, os pressupostos teóricos que lhes dão feição.

Como uma das perspectivas de questionamento do tradicionalismo profissional, uma perspectiva no Movimento de Reconceituação do Serviço Social, embora de menor vulto, foi a denominada perspectiva da Reatualização do Conservadorismo, a qual foi constituída por estudos individuais de assistentes sociais desenvolvidos nas pós-graduações. Essa perspectiva trouxe como tônica uma problemática aproximação com as perspectivas fenomenológica e existencialista e que deram vazão ao que José Paulo Netto denominou de um combate em duas frentes: a recusa das tradições positivistas e neopositivistas e a não aceitação da tradição marxista como aportes teóricos para uma nova metodologia do Serviço Social, justificado pela centralidade que esses paradigmas davam aos processos objetivos e a dinâmica macrossocietária em detrimento dos processos subjetivos e do aspecto microssocial nos quais estavam envolvidas as questões sociais a serem tratadas pela profissão.

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A aproximação com a perspectiva fenomenológica foi considerada problemática por muitos autores, principalmente por não discutir as ideias centrais das fontes primárias desse paradigma, principalmente de seus autores principais – Husserl e Heidegger – tendo uma apropriação de segunda mão desse paradigma11, o que ocasionou a incorrência em simplismos teóricos e equívocos metodológicos. Essa analise tergiversada da fenomenologia desembocou numa proposta de intervenção profissional do assistente social centrada no diálogo assistente social-cliente e propondo um atendimento pautado inteiramente na dinâmica individual, o que alguns autores consideraram um retorno ao Serviço Social de Caso e, consequentemente, uma reatualização do conservadorismo no Serviço Social.

Sem, no entanto, ter muito fôlego ou expressividade nos processos de formação e exercício profissional da profissão, a proposta do Serviço Social fundamentar-se na fenomenologia teve pouca aceitação dos protagonistas da profissão em seus órgãos de representação acadêmicas e profissionais.

A grande polêmica nesse contexto de ascensão e distensão da ditadura militar ocorrida de forma mais contundente, em finais dos anos de 1970 em diante, foi a contraposição entre conservadores – constituída por assistentes sociais ligados ao poder governamental em curso e ao paradigma positivista – e o chamado Projeto do Serviço Social Crítico, o qual articulava intelectuais e profissionais de esquerda na América Latina e, particularmente, no Brasil. A elaboração deste projeto crítico, entretanto, não se fez sem contradições ou polêmicas, haja vista as perspectivas dos paradigmas críticos que ascenderam como base do Serviço Social: os marxismos.

Acompanhada e influenciada pelas transformações societárias em movimento, em plena ascensão da ditadura militar no Brasil e dos movimentos de contraposição a esta, novamente a profissão se encoraja para repensar suas dimensões teóricas, técnico-operativas e ético-políticas, mas, desta vez, pensando essas dimensões de forma articulada e dentro de uma perspectiva de totalidade.

No ano de 1979, embasada em discussões teóricas e posicionamentos políticos anti-ditadura e anticapitalistas, a profissão realizou o que simbolicamente representou uma ruptura com as elites burguesas e os poderes constituídos por essa, e se aliou a um projeto societário de defesa das classes trabalhadoras e/ou subalternas, destituindo da mesa de

11O estudo do paradigma fenomenológico teve como referência principal o livro “Fenomenologia e Ciências

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abertura do Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais12 as autoridades politicas do governo e dando assento aos representantes dos movimentos sociais e de trabalhadores.

Essa virada histórica marcou a ascensão da chamada perspectiva de Intenção de Ruptura do Movimento de Reconceituação, que teve seu momento de emersão com a proposta de um grupo de professores e estudantes da PUC de Minas Gerais, que formularam uma proposta metodológica de intervenção nos problemas sociais fundadas no método crítico: o Método BH.

Dado, porém, o contexto repressivo da época em razão de suas limitantes condições de apropriação teórica dos paradigmas críticos, o Serviço Social, nesse momento, se aproximou de autores associados ao marxismo estruturalista, com destaque para Louis Althusser que, com sua perspectiva de Estado e de instituição como espaços de reprodução da ideologia dominante, basilou a proposta do Serviço Social atuar, principalmente, nas dinâmicas extra-institucionais, ou seja, em articulação com as comunidades e os movimentos sociais de contraposição à ditadura e à ordem constituída.

Nesta proposta, fazia-se ainda a defesa da ideia de que o objetivo-meta da profissão era a realização da transformação social, consolidando assim um erro histórico de confundir prática profissional com práxis social e política. Essa proposta ficou conhecida como a adoção de um marxismo acadêmico ou um marxismo sem Marx e concentrou-se em discutir a perspectiva de revolução do paradigma crítico.

Após esse momento inicial de emersão, tivemos a consolidação da perspectiva da intenção de ruptura, que teve seu marco com as produções acadêmicas centradas especificamente no pensamento marxiano e nas produções de O Capital, de Marx, que traziam uma discussão essencial sobre a constituição da produção e reprodução na sociedade capitalista, centrando-se no que se convencionou chamar na Teoria do Valor Trabalho trazido por essa perspectiva. Nesse momento de uma apropriação pretensamente mais madura do paradigma crítico, houve um tensionamento entre dois grandes autores marxistas, Gramsci e Lukács, o que culminou na consolidação de dois grandes grupos de profissionais fundamentados no paradigma crítico: o grupo do Maranhão, fundado na perspectiva gramsciana de instituição como espaço contraditório e da prática profissional como uma prática pedagógica, e o grupo de São Paulo, talhado nas discussões acerca da ontologia do ser social de George Lukács, perspectiva hoje considerada hegemônica na profissão.

12 Essa foi uma iniciativa realizada no V Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, realizado em São Paulo,

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Na década de 1980, a disputa entre os dois pensamentos de cunho marxiano traz à luz uma polêmica acerca do Serviço Social, questionando se este possuía ou não teoria própria e uma metodologia especifica. Na década de 1990, essa polêmica arrefece, colocando no centro a discussão sobre a natureza do Serviço Social se ele é trabalho ou se não é trabalho. Essa discussão foi tensionada pelo posicionamento de alguns intelectuais brasileiros e, por fim, a posição hegemônica é que o Serviço Social é trabalho, pois, embora não tenha um produto material e sim imaterial da sua intervenção, ele contribui de forma indireta para produção e reprodução das relações sociais e do trabalho socialmente produzido no âmbito da sociedade capitalista contemporânea.

Atualmente, um dos eixos do debate profissional do Serviço Social é a relação entre a afirmação dos direitos sociais e as competências profissionais, elegendo-se claramente a competência crítica como forma de combater o conservantismo e a tecnocracia presentes ainda no exercício profissional. Para Iamamoto (2009), tal competência crítica supõe, dentre outros fatores, um diálogo crítico com a herança intelectual incorporada pelo Serviço Social e suas autorepresentações profissionais, a fim de estabelecer um diálogo entre teoria e história. Supõe, ainda, uma competência estratégica e técnica (ou técnico-politica) que não reifica o saber fazer, mas o conhecimento aprofundado e multidimensional da realidade que permite uma atuação qualificada nas questões sociais expressos no cotidiano da prática do assistente social.

Consoante anota Iamamoto (2009, p. 5):

[...] O Serviço Social brasileiro construiu um projeto profissional radicalmente inovador e crítico, com fundamentos históricos e teórico-metodológicos hauridos na tradição marxista, apoiado em valores e princípios éticos radicalmente humanistas e nas particularidades da formação histórica do país. Ele adquire materialidade no conjunto das regulamentações profissionais: o Código de ética do Assistente Social (1993), a Lei de Regulamentação da Profissão (1993) e as Diretrizes Curriculares norteadoras da formação acadêmica [...].

São esses os marcos legais que envolveram a elaboração de um projeto nacional de formação profissional dos assistentes sociais no Brasil e que marcam, ainda, o chamado projeto ético-politico do Serviço Social, feito como um projeto profissional que se articula a um projeto societário de defesa intransigente dos direitos sociais e, em ultima instância, defende um modelo de sociedade contrário ao estabelecido pela ordem do capital. É sobre a elaboração desse projeto nacional de formação profissional do assistente social que nos deteremos no item que se segue.

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3.3 O Projeto Nacional de Formação Profissional e as Revisões Curriculares do Serviço