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CAPÍTULO I. A APROPRIAÇÃO DO CONCEITO DE LUGAR NO PROCESSO DO

1.3. O currículo no ensino da Geografia

O currículo é lugar, espaço, território. O currículo é relação de poder.

O currículo é trajetória, viagem percurso.

O currículo é autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no currículo se forja a nossa identidade.

O currículo é texto, discurso, documento. O currículo é documento de identidade. (Tomaz Tadeu da Silva, 2004)

O conhecimento intrínseco ao currículo educacional não deve ser analisado fora da sua constituição histórica e social, pois é implicado na produção das relações de poder dentro da escola e da sociedade, porém reconhecer não significa ter identificado essas relações. “Grande parte da análise educacional crítica consiste precisamente em efetuar essa identificação.”. (SILVA, 2002, p.29).

Em meados da década de 1980, os estados e municípios elaboravam suas próprias propostas curriculares e de certa maneira determinavam os conteúdos a serem seguidos, nas aulas de todas as disciplinas da Educação Básica. Dessa maneira, os autores dos livros didáticos se baseavam nessas propostas.

No mesmo período, em São Paulo, a Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (CENP) constituiu uma equipe de autores, formada por pesquisadores de universidades públicas, para a realização de propostas curriculares para todos do Estado de São Paulo. Dessa maneira, elaborou-se um rol de conteúdos, mas, sobretudo, efetuou-se uma revisão metodológica com amadurecimento dos princípios fundadores da disciplina, iniciativa conhecida na época, como Geografia Crítica. (PONTUSCHKA, PAGANELLI E CACETE, 2007).

Foram realizadas reuniões com professores de Geografia, representantes das Delegacias (atualmente denominadas Diretorias) de Ensino da capital e do interior da rede estadual que relataram sobre a ineficácia do ensino de Geografia na Educação Básica devido: à padronização do ensino pelo livro didático, como única referência; ao interesse das editoras em manter conceitos incompatíveis com o momento em que se encontra a ciência geográfica; à desvinculação da Geografia

ensinada nas escolas e aquela ensinada nas universidades; à ‘descontextualização’ e fragmentação dos conteúdos ensinados.

As discussões pautaram temas como: conceitos de trabalho, modo de produção e questões relativas à natureza e ao processo de industrialização. Pontuschka, Paganelli e Cacete (2007, p.71) analisam:

A discussão da proposta, embora não tenha atingido a todos, promoveu uma ruptura no ensino tradicional da disciplina, apontando caminhos diferentes de um ensino apenas transmitido pelo professor, descolado dos movimentos sociais e da realidade social do país.

A proposta da extinta CENP tornou-se uma referência em cursos de licenciatura, principalmente, na disciplina de Prática de Ensino de várias universidades públicas e privadas do país, buscando metodologias com base na compreensão do espaço integrado às relações sociais existentes em cada momento histórico. A ideia era a desconstrução da visão da escola que seleciona os melhores e que padroniza o ensino e, então, criar condições para a produção individual e coletiva do conhecimento. Explicam Pontuschka, Paganelli e Cacete (2007, p.73): “Na época, os docentes de Geografia poderiam ter acesso a uma bibliografia sobre currículo e avaliação para tentar desmistificar quanto de ideológico existia no próprio trabalho pedagógico e no conjunto das atividades do cotidiano escolar”.

Essas discussões embasaram significativamente a promulgação da LDBN/965 e, ainda, na década de 1990, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). A partir desse documento, a política educacional tornou-se centralizadora, pois a Secretaria do Ensino Fundamental do Ministério da Educação (MEC) elaborou um documento curricular referencial para todo o país, com a intenção de melhorar a qualidade de ensino, apesar das diferenças de condições socioeconômicas do país. Nesse sentido, afirmou o respeito à diversidade cultural, com a possibilidade de adaptações na prática educacional.

O PCN (BRASIL, 1998), do terceiro e quarto ciclos (5ª a 8ª série e hoje 6º ao 9º ano) de Geografia

5 Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN (Nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996):

[...] tem um tratamento específico como área, uma vez que oferece instrumentos essenciais para a compreensão e intervenção na realidade social. Por meio dela podemos compreender como diferentes sociedades interagem com a natureza na construção de seu espaço, as singularidades do lugar em que vivemos, o que o diferencia e o aproxima de outros lugares e, assim, adquirir uma consciência maior dos vínculos afetivos e de identidade que estabelecemos com ele. Também podemos conhecer as múltiplas relações de um lugar com outros lugares, distantes no tempo e no espaço e perceber as relações do passado com o presente. (BRASIL, 1998, p. 15).

Há várias críticas aos PCN e, no caso do de Geografia, questiona-se o ecletismo que eles sinalizam, as várias correntes do pensamento geográfico em que foram embasados e o predomínio de uma visão sociocultural e, assim, minimizada a perspectiva socioeconômica. Os professores sentiram que os PCN, chegaram de maneira impositiva e sem diálogo entre os órgãos do Estado, a escola e grupos organizados da sociedade civil. Na Proposta da CENP eles estavam tendo alguma participação e, na elaboração dos PCN, eles ficaram à margem.

Com as orientações dos PCN, esperava-se que os órgãos tomassem, de fato, medidas para melhoria da educação “[...] valorizando o trabalho do professor, respeitando o profissional e o cidadão, oferecendo boas condições de trabalho e um currículo aberto e em construção, com a participação efetiva da gestão da escola”. (PONTUSCHKA, PAGANELLI E CACETE, 2007, p.76). Porém, isso efetivamente não aconteceu. Ainda, para que as orientações dos PCN fossem de fato integradas ao currículo seria necessário o desenvolvimento profissional/formação dos professores, principalmente centrado na escola e integrado ao projeto político- pedagógico.

A linguagem e o discurso dos documentos têm consequências profundas, mas também a forma como são organizados. Segundo Silva (2002, p. 35): “São essas consequências que ainda não têm sido suficientemente exploradas [...]”. Não se considerou a participação, efetiva e contínua após a publicação dos PCN, dos professores, ou seja, as condições necessárias para servirem de orientação curricular escolar, que pudessem trazer melhorias substanciais na qualidade de ensino da educação básica brasileira.

O grande desafio da escola, ao construir sua autonomia, é transformar a visão de “programas de treinamento”, para ousar assumir o papel fundamental no trabalho coletivo, para permitir ao professor e gestores a compreensão e a apropriação das mudanças nas abordagens de conteúdos e das metodologias de ensino e aprendizagem. A gestão em trabalho compartilhado e participativo é o ponto de partida para atuações mais humanizadas no espaço escolar, na criação do Projeto Político Pedagógico e no desenvolvimento do currículo presente, de forma múltipla e dinâmica. Porém, observa-se, em geral, entre outros problemas, que esse processo vem acontecendo insuficientemente, nas escolas públicas.

Atualmente, discute-se a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), um documento de caráter normativo que definiu o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica. Aplica-se à educação escolar, tal como a define no capítulo 2, artigo 22 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/1996): “A educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores”. Orientada pelos princípios éticos, políticos e estéticos traçados pelas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (DCNEB), a “BNCC soma-se aos propósitos que direcionam a educação brasileira para a formação humana integral e para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva”. (MEC, 2017, p.7).

Na continuidade do capitalismo, a educação desempenha um importante papel, que pode ser caracterizado por dois aspectos: o primeiro, de que se toma necessária a “preparação de um trabalhador mais adequado aos novos padrões de exploração”; o segundo, de que o discurso sobre a educação ocupa um lugar cada vez maior no plano ideológico. (DUARTE, 2001).

Silva (2002) explica que: “A história da educação institucionalizada mostra que o objetivo de produzir (novos) cidadãos acabou implicado em novas e, talvez, mais sutis formas de regulação e padrões de controle e governo”. (p.34). Na visão tradicional o currículo como um local de transmissão de uma cultura incontestada e unitária, mas na concepção crítica, é visto como um processo de reprodução cultural

e social das divisões dessa sociedade, como um terreno em que ativamente há a possibilidade de se criar e produzir cultura. Para Silva (2002, p. 28), “o currículo é assim um terreno de produção e de política cultural, no qual os materiais existentes funcionam como matéria-prima de criação, recriação e, sobretudo, de contestação e de transgressão”.

As proposições da BNCC que foram lançadas e homologadas em 2017 são referências e base para organização do ensino, mas, novamente, como ocorreu no caso dos PCN, o que se coloca é que, para isso, os professores e o conjunto da escola deveriam ter tido oportunidade suficiente de deliberar e decidir e, assim, implicar-se no processo. Embora esteja preconizado no documento “[...] manter processos contínuos de aprendizagem sobre gestão pedagógica e curricular para os demais educadores, no âmbito das escolas e sistemas de ensino” (MEC, 2017, p.13). A questão é: As escolas promoverão discussão, estudo, diálogo e participação efetiva dos professores? Conforme a qualidade de ensino nas escolas, elas poderão ser agravadas devido às precárias condições de trabalho (salário), à formação inicial (graduação), ao desenvolvimento profissional / formação dos professores e gestores, aos recursos didáticos, entre outros. Mesmo sendo indicação de que se trata tão somente de uma base comum, existe uma proposição teórica, orientação metodológica e visão de realidade que conduzem ao estabelecimento dessas orientações, mas que são de difícil implantação e que, por isso, têm intenção ideológica a ser reconhecida.

A BNCC, na fase final do Ensino Fundamental, em Geografia, pretende garantir a continuidade e a progressão das aprendizagens do Ensino Fundamental - Anos Iniciais - em níveis crescentes de complexidade da compreensão conceitual a respeito da produção do espaço. Afirma ser preciso que os alunos ampliem seus conhecimentos sobre o uso do espaço, em diferentes situações geográficas, regidas por normas e leis historicamente instituídas. Segundo o documento, dá-se, assim, um passo importante para a responsabilização do cidadão para com o mundo em que vive.

Segue, abaixo, alguns trechos significativos de proposições do documento que serão analisados. Apesar da parcialidade do conteúdo, eles expressam algumas concepções de Geografia da BNCC.

No 6º ano, (p.379) “[...] propõe-se a retomada da identidade sociocultural, do reconhecimento dos lugares de vivência e da necessidade do estudo sobre os diferentes e desiguais usos do espaço, para uma tomada de consciência sobre a escala da interferência humana no planeta”. (BNCC, 2017, p. 387). Porém, deve-se problematizar que a construção do espaço geográfico é perpassada por valores e relações de poder que transformam e dão sentido aos usos dos espaços e aos lugares de vivência. Segundo Carlos (2007), o lugar revela a especificidade da produção espacial global, tem um conteúdo social e só pode ser entendido nessa globalidade que se justifica pela divisão espacial do trabalho, na interdependência com o todo.

No 7º ano, “[...] espera-se que os alunos compreendam e relacionem as possíveis conexões existentes entre os componentes físico-naturais e as múltiplas escalas de análise, como também entendam o processo sócio espacial da formação territorial do Brasil [...]”. (BNCC, 2017, p.378). Deve-se orientar para a compreensão de que o processo de exploração dos recursos naturais e a ocupação sócio espacial é decorrente das forças produtivas e que, dessa maneira, as questões ideológicas sejam problematizadas. As concepções de dominação e de apropriação devem caminhar juntas, ou seja, discutir que a dinâmica de acumulação capitalista fez com que a dominação prevalecesse, sufocando as possibilidades de uma efetiva “reapropriação” dos espaços, dominados pelo aparato estatal-empresarial e/ou completamente transformados em mercadoria.

No 8º ano, “[...] considera-se que os estudantes precisam conhecer as diferentes concepções dos usos dos territórios, tendo como referência diferentes contextos sociais, geopolíticos e ambientais, por meio de conceitos como classe social, modo de vida, paisagem e elementos físicos naturais, que contribuem para uma aprendizagem mais significativa, estimulando o entendimento das abordagens complexas da realidade, incluindo a leitura de representações cartográficas e a elaboração de mapas e croquis”. (BNCC, 2017, p.378). Os documentos da BNCC devem servir de base para contemplar questões e contradições cruciais que envolvem as classes sociais, o uso dos territórios, na perspectiva da transformação dessa sociedade que tem por base mecanismos de exploração humana e de mais valia.

Métodos dinâmicos utilizados, voltados para uma aprendizagem significativa, têm base em conhecimentos que relacionam a realidade próxima dos alunos com os contextos sociais, geopolíticos e ambientais mais amplos. Carlos (2007) afirma que o processo de reprodução das relações sociais que vem se realizando, hoje, “não invalida o fato de que o lugar aparece como um fragmento do espaço onde se pode apreender o mundo moderno, uma vez que o mundial não suprime o local”. (p.21). Dessa maneira, o reconhecimento do lugar e a sua especificidade histórica do particular, se apresenta como o ponto de articulação entre a mundialidade em constituição e o “local” enquanto especificidade concreta.

No 9º ano, é dada atenção para “a constituição da nova (des)ordem mundial e a emergência da globalização/mundialização, assim como suas consequências”. “Anseia-se, também, que entendam o papel do Estado-nação em um período histórico cuja inovação tecnológica é responsável por grandes transformações socioespaciais, acentuando ainda mais a necessidade de que possam conjecturar as alternativas de uso do território e as possibilidades de seus próprios projetos para o futuro”. (BNCC, 2017, p.379). Segundo Freire (2002), o discurso da globalização que fala da ética esconde, porém, a ética do mercado e não a ética universal do ser humano a qual deveria aparecer nos documentos, ao visar a um mundo mais humanizado. Alerta-se que o discurso da globalização astutamente oculta, busca-se penumbrar a reedição intensificada ao máximo, mesmo que modificada, da medonha malvadez com que o capitalismo aparece na História.

Sobre a inovação tecnológica, a teoria educacional crítica deve procurar compreender e “encontrar formas de utilizar de uma forma que seja compatível com nossos objetivos de democracia, igualdade e justiça social”. (SILVA, 2002, p.33).

Segundo a BNCC, nessa fase final do Ensino Fundamental, pretende-se garantir a continuidade e a progressão das aprendizagens dos anos iniciais, em níveis crescentes de complexidade da compreensão conceitual a respeito da produção do espaço.

Para tanto, é preciso que os alunos ampliem seus conhecimentos sobre o uso do espaço em diferentes situações geográficas regidas por normas e leis historicamente instituídas, compreendendo a transformação do espaço em território usado – espaço da ação concreta e das relações desiguais de poder, considerando também o espaço virtual proporcionado pela rede mundial de computadores e das geotecnologias. (MEC, 2017, p.333).

Conforme a BNCC, para que haja a ampliação de conhecimento geográfico, visando um entendimento da realidade socioeconômica, são necessárias condições propícias em que a discussão desses temas seja mantida perenemente nos trabalhos coletivos nas escolas. Porém, se considerarmos a realidade, essas temáticas carecem de reflexões porque, na maioria dos casos, a escola pública e mesmo, geralmente a privada, não disponibilizam o tempo e o espaço adequados e suficientes para a transformação da práxis. As discussões conceituais deveriam embasar o Projeto Político Pedagógico, um currículo contextualizado na realidade do lugar, considerando o nível social e as subjetividades dos estudantes, professores, gestores e funcionários da escola.

Segundo Saviani (1999), é preciso considerar que toda prática educativa possui uma dimensão politica, assim como, toda prática política possui, em si mesma, uma dimensão educativa. “A existência histórica nas condições atuais, educação e política devem ser entendidas como manifestações da prática social própria da sociedade de classes. Trata-se, pois, de uma sociedade cindida, dividida em interesses antagônicos”. (1999, p.95). A mídia tem papel fundamental em propagar o caráter “redentor” da BNCC, sustentando que haverá a melhoria da qualidade do ensino, deixando de discutir as questões que estão no âmago dos problemas.

Ainda, Saviani (1999) afirma que o sistema social existente é decorrente de uma subordinação histórica e, como tal, não somente pode como deve ser superada. A plenitude da educação como, no limite, a plenitude humana, está condicionada à superação dos antagonismos sociais. (1999, p.96). Porém, nas sociedades de classes, a subordinação real da educação reduz sua margem de autonomia, mas não a exclui.

O currículo, enquanto “definição” oficial, expressa os interesses dos grupos e classes colocados em vantagem em relações de poder, ou seja, é a expressão dessa relação de poder, fazendo com que os grupos subjugados continuem nessa condição. “Seu aspecto contestado não é demonstração de que o poder não existe, mas apenas de que o poder não se realiza exatamente conforme suas intenções”. (SILVA, 2002, p. 29). Cabe, então, aos educadores identificar e analisar as forças que vão desde o poder dos grupos dominantes, quanto aos atos cotidianos, nas escolas e salas de aula, que são manifestações sutis e complexas que reforçam a dominação e contribuem para a reprodução ideológica vigente. Segundo o autor, existe um ‘currículo oculto’ que se refere ao processo de aprendizagem processual socializador e colateral ao currículo escolar formal, que permeia as normas de comportamento social (valores, mensagens de natureza afetiva, condutas, visões de mundo, entre outros). Desta maneira, podemos questionar sobre o preparo que os educadores escolares têm para o entendimento do papel do Estado-Nação, a condição de problematizar o conhecimento geográfico dos lugares e as possibilidades de seus próprios projetos para o futuro, em um período histórico cuja inovação tecnológica é atrelada ao mercado de capital e responsável por grandes transformações socioespaciais.