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Currículo e Poder: a serviço de quê (ou de quem) está o currículo escolar?

CAPÍTULO 1 POLÍTICAS DE EDUCAÇÃO E CURRÍCULO PARA O ENSINO

2.4 Currículo e Poder: a serviço de quê (ou de quem) está o currículo escolar?

Às considerações sobre ideologia e cultura, trazemos o terceiro componente da trilogia para um entendimento crítico de elementos que contribuem para a legitimação da cultura escolar dominante expressa nos currículos, falamos do poder.

Ao discutirmos os conceitos de cultura e ideologia, fácil se torna o entendimento de que os conhecimentos estruturantes do currículo constituem e resultam de relações de poder. A escolha do conhecimento escolar, os norteadores metodológicos para sua realização e a projeção de contornos escolares aptos a desenvolverem a contento a ação, implicam em noções de controle social, suposições ideológicas e noções de poder (APPLE, 1995).

Atrelada às forças desenvolvimentistas do capital, a moderna escola burguesa surgiu pela necessidade de formação de mão-de-obra especializada para operar máquinas, o que passou a exigir dos trabalhadores pelo menos uma instrução básica. No período da Revolução Industrial (anos de 1750), época áurea do capitalismo, a ascendente burguesia percebeu que a educação serviria a esse propósito, o que fez da escola contexto ímpar para a difusão de valores e normas da classe dominante.

No capitalismo tardio49, o progresso social impulsionado pelo desenvolvimento técnico, embora tenha revolucionado instâncias cotidianas várias, não contribuiu para desenvolvimento da experiência capazes de desvincular o indivíduo dos interesses estruturais da classe dominante, sobre o que Adorno e Horkheimer consideram (1985, p. 37):

O processo técnico, no qual o sujeito se coisificou após a sua eliminação da consciência, está livre da plurivocidade do pensamento mítico bem como de toda significação geral, porque a própria razão se tornou um mero adminículo da aparelhagem econômica que a tudo engloba.

A eliminação da consciência representa uma involução do indivíduo a estágio social acrítico. Isso contribui para o controle da subjetividade e do potencial reflexivo sobre o objeto, percebido por meio de fragmentos concebidos e ditados externamente. Assim, a educação social que se faz é reflexo de toda uma conjuntura estrutural da sociedade cujos conteúdos, podemos inferir, também se encontram corporificados em propostas curriculares nas escolas. Quanto a isso, Adorno (1985, p. 101), adverte: “O que não se diz é que o terreno

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Termo utilizado, principalmente, pelos pensadores da Escola de Frankfurt na década de 1960, que teria como elementos distintivos a expansão das grandes corporações multinacionais, a globalização dos mercados e do trabalho, o consumo de massa e a intensificação dos fluxos internacionais do capital. Seria mais propriamente uma crise de reprodução do capital do que um estágio de desenvolvimento, uma vez que o crescimento do consumo (e, portanto da produção) tornar-se-ia insustentável pela exaustão dos recursos naturais.

no qual a técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação”, uma vez a pseudoformação a que estamos expostos.

Por sua natureza social as escolas são espaços instituídos, regulamentados e presos a uma lógica estrutural. Entretanto, tal fato não impede que em seu cotidiano se constitua identificação entre os indivíduos por intermédio das interações sociais. Logo, ao problematizarmos o currículo como elemento essencial às políticas e práticas democráticas na escola pública, face aos limites sociais e históricos contemporâneos julgamos que, por ser o currículo importante componente da organização escolar, a espinha dorsal da qual emanam as diversas ações que perpassam a escola, há que se reconhecerem suas intencionalidades subjacentes, em se considerando que se fazem impregnadas de concepções acerca da sociedade, do homem, do conhecimento e do mundo. A esse respeito, Silva (2010, p. 55) afirma:

O currículo não está simplesmente envolvido com a transmissão de “fatos” e conhecimentos “objetivos”. O currículo é um local onde, ativamente, se produzem e criam significados sociais. Esses significados, entretanto, não são simplesmente significados que se situam no nível da consciência pessoal ou individual. Eles estão estritamente ligados a relações sociais de poder e desigualdade.50

Nesse sentido e, apoiando-nos no pensamento do autor, o currículo é produtor e reprodutor de ideias e práticas, uma complexa rede de relações de poder-saber, com subjetividades e intencionalidades subjacentes, o que nos leva a tensionar sobre como as contradições sociais encontram lugar nas políticas de currículo escolar, uma vez que na contemporaneidade incorporamos as influências de uma sociedade que se encontra sob a égide do capitalismo globalizante, historicamente dividida em classes, de caráter massificador e alienante pela oferta de conteúdos/produtos estandardizados e identitários, daí questionarmos o papel do currículo como elemento de alienação e uniformização do pensamento, condição inerente à cultura contemporânea sobre a qual Adorno e Horkheimer (1985, p. 127) avaliam:

A vida no capitalismo tardio é um rito permanente de iniciação. Todos devem mostrar que se identificam sem a mínima resistência com os poderes aos quais estão submetidos. [...] A sociedade reconhece sua própria força na debilidade deles e lhes cede uma parte. A passividade do indivíduo o qualifica como elemento seguro.

Constata-se que a formação possível sob a lógica do capital não propicia aos

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indivíduos o desenvolvimento da consciência livre-pensante capaz de se contrapor à ordem social estabelecida; nesse sentido, contribuindo para a disseminação e continuidade dos ideais que concorrem para a reprodução dessa sociedade.

Assim sendo, não se deve perder de vista que a escola é espaço social e, como tal, inserida na história da sociedade. Pela educação, devem-se propiciar condições necessárias para que o indivíduo se constitua, formando-se sob perspectiva autônoma e emancipada para a identificação e reflexão sobre a histórica sociedade de classes que o constitui.

Certo é que currículo escolar assume amplo papel social ao tensionar a escola como território institucional expressivo da cultura em que se insere e, como tal, lócus privilegiado para problematizações sobre o fato de políticas educacionais se voltarem para a formação de sujeitos aptos a reflexões e questionamentos, seja no espaço da escola ou em outras estruturas sociais, conforme observado por Costa (2011, p. 68) ao afirmar que “(...) a educação contribui para a formação de indivíduos autônomos, capazes de refletir e, por sua vez, superar o que possa ser identificado na nossa cultura, na sociedade, como forma de manipulação e estimulação à violência, sem reproduzi-la”.

Tem-se que, nos moldes até então aqui apresentados, apenas atingindo as estruturas básicas profundas organizadoras do conhecimento normativo formal, relacionadas a contexto mais amplo das instituições sociais e econômicas circundantes, transformações serão possíveis. Problematizamos, pois, o potencial do currículo escolar como expressão de uma educação que contemple tanto as demandas sociais, quanto as demandas humanas dos alunos com ou sem deficiência(s), em um contexto social ávido por autoconservação e reprodução da sociedade pela lógica do capital e não voltada, também, às demandas humanas por conhecimento e liberdade.

Como exemplo do compromisso que recai sobre a educação como até então analisado, remetendo-se ao massacre de judeus ocorrido em Auschwitz durante a 2ª Guerra Mundial, Adorno afirma o perigo de uma regressão do homem à barbárie por adesão cega ao modelo de produção capitalista sobre a formação dos indivíduos nas modernas sociedades de consumo. Para o autor (1995, p. 119), um dos fundamentais desafios postos à educação contemporânea constitui em que: “A exigência de que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. (...) Qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita”.

Isto posto, Adorno conduz à reflexão sobre quão limitada é a possibilidade de se mudar pressupostos de cunho objetivo (sociais e políticos), afirmando a necessidade de constituição de subjetividades esclarecidas, que se contraponham à corrente da formação

massificada de seres heterônomos e idênticos no pensar, em prol de consciências capazes de falar “com a própria boca”. A esse respeito Adorno (Op. cit, p. 121) enfatiza:

É preciso reconhecer os mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer tais atos, é preciso revelar tais mecanismos a eles próprios, procurando impedir que se tornem novamente capazes de tais atos, na medida em que se desperta uma consciência geral acerca desses mecanismos. É necessário contrapor-se a uma tal ausência de consciência, é preciso evitar que as pessoas golpeiem para os lados sem refletir a respeito de si próprias.

Ou seja, ao reforçar a necessidade do desvelamento de mecanismos de opressão para que, pelo despertar da consciência não mais se reproduzam, Adorno instiga à reflexão sobre o tempo social como espaço de formação humana, o que nos permite refletir sobre o tempo- espaço da escola como lócus privilegiado para o tensionamento e problematização das questões sociais e sobre as possibilidades de que sejam criadas e desenvolvidas condições propícias, por meio do currículo ofertado, ao desenvolvimento de consciências críticas à estrutura social vigente e à redução da cultura a condições inerentes a esta estrutura.

Ao se considerar a escola como instância social implicada nos múltiplos movimentos inerentes às contradições que constituem e alimentam a sociedade de classes e, em se constatando a demanda contemporânea de uma escola democrática, temos que conceber a dinâmica escolar como espaço onde não só se reproduzem interesses, valores, políticas, culturas e ideologias, mas onde também se pode exercer influência sobre os mesmos é questão essencial. Disso resulta contundente desafio à educação contemporânea, pois supõe rompimento com a perspectiva homogeneizadora e padronizadora que historicamente impregna suas práticas. A esse respeito, em seus estudos realizados sobre currículo e multiculturalidade afirmam Moreira e Candau (2003, p. 161)51:

A escola sempre teve dificuldade em lidar com a pluralidade e a diferença. Tende silenciá-las e neutralizá-las. Sente-se mais confortável com a homogeneidade e a padronização. No entanto, abrir espaços para a diversidade, a diferença e para o cruzamento das culturas constitui o grande desafio que está chamada a enfrentar.

Analisando-se a citação acima, percebe-se que os autores reconhecem o caráter massificante da educação escolar e o desafio posto ao enfrentamento de tensões que se instalam quando da abertura da escola para aqueles que não se ajustem a modelos institucionalizados, dentre os quais o aluno com necessidades especiais.

Vale, pois, questionar o quanto o currículo – tanto em sua concepção, quanto em sua

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Para aprofundamentos indicamos a obra: Multiculturalismo Diferenças Culturais e Práticas Pedagógicas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

implementação – tem contribuído mais para a autoconservação da sociedade de classes em atenção à educação que mais segrega que inclui ou emancipa os alunos com e sem deficiência(s).

Assim, concluímos que reconhecer o currículo como reprodutor da cultura dominante, espaço em que ideologia e poder atuam de forma simultânea ou consecutiva, não significa termos desvelado os mecanismos que sustentam essa dinâmica, é preciso que situemos o conhecimento, a escola e os professores nas condições sociais reais que determinam esses elementos, posto que o enfrentamento dos limites e contradições presentes nas políticas de currículo escolar, que se voltam mais à dominação, à autoconservação da sociedade do que para a emancipação dos indivíduos e para que se suplante a violência e exclusão reinantes nas escolas e nas demais instâncias sociais é potencial condição à superação das condições observadas.

CAPÍTULO 3

FORMAÇÃO, INCLUSÃO E EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS: A QUE (QUEM) SERVE O CURRÍCULO ESCOLAR?

Neste capítulo buscamos refletir sobre as possibilidades à educação na formação humana crítica e emancipatória em contexto social guiado pela lógica instrumental e mercantilista que impregna a sociedade de classes, cujo discurso atravessa as políticas para o currículo escolar. No cenário de uma sociedade marcadamente desigual, Crochick (2015, p. 45) afirma:

Nesta sociedade, o desigual tende a se tornar diverso e o diverso, desigual: aos pobres, por vezes, é associada uma cultura distinta, ainda que a pobreza seja expressão da hierarquia social, produzida pelo capital na sua relação com o trabalho. Já as pessoas de outras etnias ou com deficiência têm suas diferenças reduzidas, muitas vezes, à inferioridade.

Em vista do exposto pelo autor é essencial refletir sobre o potencial de as políticas para o currículo escolar repercutirem e reproduzirem a desigualdade travestida de diversidade. Logo, não se trata unicamente de reformar currículos, mas de considerações sobre as questões sociais estruturantes que perpetuam as condições vigentes.

Com apoio na Teoria Crítica da Sociedade, ao longo do capítulo buscamos dialogar com autores que contribuíram para o subsídio a questões deste estudo, destacando-se Sennet (2010), nas considerações sobre a formação do caráter humano na sociedade atual, Álvaro Vieira Pinto (2010) e Saviani (2013, 2012) em observações sobre o caráter histórico- antropológico da educação; Costa (2015, 2011) e Crochick (2016, 2015) em sustentação a problematizações sobre a formação de professores e o importante papel da educação orientada para a defesa dos direitos humanos. Assim, valendo-nos de reflexões orquestradas pelos pensadores da Escola de Frankfurt, com especial atenção para de Adorno e Horkheimer (1985, 1973) e Marcuse (1982, 1968) em cujos estudos se fundamentaram as questões aqui apresentadas, problematizamos a elaboração do conhecimento sob as perspectivas do currículo ofertado, o potencial emancipador da educação inclusiva por seu caráter humano e diverso e a formação do professor frente aos desafios da educação pública em perspectiva humanizada no tempo presente.

Optamos por apresentar considerações alusivas à Base Nacional Comum Curricular no capítulo que se apresenta. Não é objetivo deste estudo um aprofundamento em questões

relativas à distribuição de conteúdos ou pormenores metodológicos, mas sim problematizar elementos que perpassam a linguagem do documento introdutório da BNCC e sob quais aspectos contribuem para afirmar, ignorar ou negar o potencial da educação em potencial inclusivo e humanizante.