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Em que solo pisamos? Ou sobre o qual flutuamos?

CAPÍTULO 1 POLÍTICAS DE EDUCAÇÃO E CURRÍCULO PARA O ENSINO

3.1. Em que solo pisamos? Ou sobre o qual flutuamos?

Nos últimos anos é recorrente a afirmação de que vivemos uma crise de valores. A conjuntura para a formação do caráter humano na contemporaneidade encontra-se atravessada por uma sociedade capitalista, historicamente dividida em classes e assentada na lógica tecnicista do capital e da identificação que subjuga, domina e exclui, gestando um quadro de valores que internaliza e legitima os interesses dominantes, como se inalteráveis fossem.

Nessa transmissão e apropriação de conceitos e experiências sociais, a educação desempenha importante papel. Assim, problematiza-se: em que sentido a educação atual, formal ou informal contribui para experiências formativas ao sujeito, isto é, favorece a capacidade de se apropriar subjetivamente de suas relações e dos conteúdos presentes na cultura? É possível a escola contribuir para a formação do caráter de seus alunos em perspectiva humanizada, frente à lógica das relações sociais capitalistas contemporâneas? Qual papel desempenha o currículo escolar nesse contexto?

Ao considerarmos que a educação deva ter como objetivo primordial impedir a regressão das pessoas ao patamar da produção e reprodução da barbárie social e visar à formação integral do indivíduo, isto é, sua construção como ser autoconsciente e consciente do mundo, o que implica a percepção de suas relações com a cultura e das mediações que sustentam essa relação, certamente seu protagonismo se fará essencial. Para tal, a concepção de educação concebida por Adorno (1995, p. 121) oferece elementos à reflexão, ao afirmar que “(...) a educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma autorreflexão crítica”.

Ou seja, que pela educação ao indivíduo sejam possibilitadas oportunidades de esclarecimento52, elemento essencial para a percepção de mecanismos ideológicos de controle e alienação, pela constituição de uma subjetividade suficientemente fortalecida e capaz de romper com a coisificação da consciência.

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Remetemo-nos ao sentido que o termo esclarecimento assume no contexto da Teoria Crítica, ou seja, a perspectiva kantiana do uso consciente da razão em superação dos limites impostos pelos mecanismos ideológicos e alienantes propagados pela indústria cultural.

Isto posto, cabem-nos análise sobre a constituição da sociedade contemporânea, sua associação com a formação da subjetividade dos indivíduos como possibilidade de enfrentamento às condições objetivas materiais que a constituem e o papel desempenhado pela educação (formal e informal), com problematizações sobre o contexto da escola e suas (im)possibilidades à oferta de formação humanizada, democrática e respeitosa às novas gerações.

Referindo-se ao avanço das forças produtivas do capitalismo, Adorno e Horkheimer (2009 p. 7), afirmaram que “A cultura contemporânea a tudo confere um ar de semelhança”. A afirmativa relaciona-se a instigante painel traçado pelos pensadores frankfurtianos da passagem da razão emancipatória representada pelo pensamento iluminista à razão instrumental do positivismo representado pela sociedade industrial massificada a que os autores intitularam de indústria cultural53. Segundo os autores, a dinâmica social que então se impõe é aquela obstrutora de subjetividades e do livre pensar, não propícia ao desenvolvimento de consciências críticas às contradições sociais vigentes. Ficam-nos, pois, as questões: que tempo é esse em que vivemos? Quais são as necessidades desse tempo?

Remetemo-nos a ensaio datado de 1783, porém de grande atualidade, em que à pergunta “Vivemos atualmente uma época esclarecida”? Kant respondeu: “Não, mas certamente em uma época de esclarecimento”. Embora sutil, a diferença entre os termos “esclarecida” e “esclarecimento” não pode ser ignorada. Em pleno apogeu do Iluminismo, Kant observou que ainda faltava muito para que os homens fossem considerados indivíduos emancipados, ou seja, capazes de romper com o que classificou como “menoridade auto inculpável”54

Porém, apontou para a possibilidade de, através do esclarecimento, ou seja, do emancipado e livre pensar o homem libertar-se de tal condição.

Valendo-nos dessas considerações, e em resposta às questões anteriormente apresentadas, ousamos afirmar que o tempo em que vivemos é aquele em que urge o esclarecimento. As necessidades desse tempo assentam-se na premência do rompimento do homem com a menoridade auto inculpável no desenvolvimento de identidades autocríticas, sensíveis e transgressoras, aptas ao enfrentamento das condições objetivas vigentes. Temos urgência de identidades ousadamente humanas.

Entretanto, o comportamento estrutural da sociedade contemporânea nos revela um quadro pouco receptivo à constituição do caráter em perspectiva íntima e duradoura. As

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Indústria cultural: termo explicitado à página 25 deste estudo. 54

Para Kant, menoridade auto inculpável não é a falta de entendimento, mas a falta de decisão e de coragem de servir-se do entendimento sem orientação de outrem.

transformações ocorridas no universo das relações sociais, ancoradas no imediatismo da comunicação de massa, nos encontros frágeis em diálogos e trocas pessoais e as consequências advindas desse delinear repercutem na estrutura social e trazem novos contornos para o posicionamento do indivíduo em seu contexto.

Assim, tem-se que a formação possível sob a lógica do capital não propicia aos indivíduos a possibilidade do desenvolvimento de caracteres resistentes e capazes de se contraporem à ordem vigente, neste sentido, contribuindo para a disseminação e continuidade dos ideais totalitários do capitalismo. A esse respeito, Adorno e Horkheimer (2009, p. 54), afirmam:

A vida no capitalismo tardio é um rito permanente de iniciação. Todos devem mostrar que se identificam sem a mínima resistência com os poderes aos quais estão submetidos. [...] A sociedade reconhece sua própria força na debilidade deles e lhes cede uma parte. A passividade do indivíduo o qualifica como elemento seguro.

Os autores avaliam que a formação possível de um discípulo do capitalismo tardio/flexível é aquela atrelada à volatilidade nas relações, na perspectiva de rito de iniciação constante e, a reboque de constantes apelos da indústria cultural não é oportunizado ao indivíduo o estreitamento de laços, a manutenção de vínculos, o tempo para o cultivo inter e intrapessoal o que é passivamente aceito, porém internamente corruptível.

Essa flexibilidade de tempo e espaço alimenta a flexibilização do caráter, demonstrada pela ausência de apego temporal em longo prazo e pela tolerância com a fragmentação. Dissolve-se, assim, a expectativa da fixidez, de possibilidades de constituição de estruturas subjetivas sólidas, uma vez os caminhos percorridos apontarem para a transitoriedade. A nova ordem mundial que se vai constituindo ante a estrutura social que se apresenta, capitaneado pela supremacia do capital, impele o indivíduo à maleabilidade do caráter.

Como acima exposto, o capitalismo subverte a relevância do tempo. As relações que se roteirizam no valor de trocas, comprometem a experiência: vale o curto prazo. A ideologia difundida é aquela de um eterno recomeçar, tal qual experimentar um novo produto recém- lançado pela indústria cultural. O ato de experienciar é subvertido, não é concebido como desafio ao crescimento interior, possibilidades, mas como experimentação, necessidade diária, vulnerabilidade constante.

Desse modo, a experiência construída nas relações e observações do dia a dia, fértil em aquisições e conteúdos válidos para a formação humana, ou seja, aquela em que ao ser não compete somente o aprendizado do sobreviver, mas em transcender esse ato, percebendo-se

como corpo detentor da subjetividade que lhe traz o potencial de discernimento e escolhas, perece frente às condições de produção e reprodução da vida impostas pela ordem do capital.

A percepção do sensível, a possibilidade de ampliação de experiências, de narrativas comunicadas e transmitidas, do tempo coletivamente tecido não encontram eco nos “labirintos do capital”55 A lacuna deixada pela escassez da experiência, imposta por um tempo externamente administrado, carente de sentido e sensibilidade são marcas indeléveis na contemporaneidade. A esse respeito, Matos (2009) expressa56:

Etimologicamente a palavra latina para experiência tem como radical “per” (experiência): sair de um perímetro, sair da condição do já conhecido, do já vivido, para ampliar vivências, acontecimentos e repercussões desses acontecimentos novos nas nossas vidas. E, de “per”, também a palavra periculum: atravessar uma região, durante uma viagem, onde perigos podem nos assaltar. E, para esses perigos, há a palavra que se associa a periculum, que é oportunus – originada de portus, que quer dizer saída. Então, as experiências que nos acontecem durante uma travessia no desconhecido, numa viagem, são experiências que alargam nossa identidade, nosso conhecimento, nossa sensibilidade, nossa condição no mundo Ora, no presente, com a contração do tempo, a experiência foi abolida. A experiência era algo que se transmitia de geração em geração, no sentido de que: narrativas comunicáveis se faziam como modelos exemplares de ensinamentos para gerações vindouras.57

Conforme a citação, o mundo social que se apresenta é aquele referendado na ordem produtiva, que visa tão somente à supremacia do capital. Assim, esvazia-se a experiência e a atualidade faz-se à semelhança da ordem da produção administrada: tempo contraído pela necessidade de nele caberem o máximo de coisas possíveis, plasmado no presente, na urgência do fazer, na supremacia do ter, na transitoriedade e indiferença das relações.

Se a produção deve estar em alta velocidade, também o correspondente dessa cadeia deve seguir o mesmo ritmo, ou seja, o consumo deve seguir a mesma cadência. Esse ritmo conduz à cultura do descarte, do curto espaço de tempo em que se consome ou utiliza algum objeto, rapidamente substituído por outro que apresente novo apelo largamente alardeado como imprescindível ao moderno viver.

Em consequência, o ser humano é instigado a reproduzir o mesmo processo em suas relações e não conseguir conviver de outra forma com o mundo a sua volta, incluindo seus semelhantes, pois: “Pessoas que se enquadram cegamente em coletivos convertem a si

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Termo inspirado no título da obra Teoria e Educação no Labirinto do Capital de FRIGOTTO G. e CIAVATTA, M. (orgs). Petrópolis: Vozes, 2001.

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MATTOS, Olgária. Tempo sem experiência. Disponível em: htpp://www.cpflcultura.com.br/integra-tempo- sem-experiencia-olgaria-mattos. Acesso em 5 de janeiro de 2016. Vídeo.

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próprios em algo como um material, dissolvendo-se como autodeterminados. Isto combina com a disposição de tratar outros como sendo massa amorfa”, avalia Adorno (2011, p. 129).

Se as pessoas não são instigadas a experienciar relações sociais fecundas e encontrarem possibilidades de elaborar essa experiência em sua consciência, dificilmente constituirão a internalização de conceitos que lhes propiciem a problematização reflexiva de situações práticas da convivência humana. Instala-se, então, o embaçamento na percepção dos contornos da sociedade. E ao olhar embaçado restam distorções.

O atual comportamento humano, refratário à incorporação da experiência e consequente fortalecimento da subjetividade, tende a reverter-se em uma crise na própria percepção do ser, como afirmado por Sennet (2010, p. 171): “(...) laços entre as pessoas significam enfrentar com o tempo diferenças (...)”. E quem as quer enfrentar na conjuntura que se apresenta? Perceber e/ou perceber-se diferente é assumir estar em posição oposta ao estruturalmente determinado pelas condições materiais objetivas que engendram a sociedade contemporânea. Entre o equilibrar-se sobre o fio da navalha é mais confortável seguir a correnteza a contrapor-se a ela.

Em um sistema em que o indivíduo é cooptado, mesmo sem perceber, a ser objeto passivo, consumidor voraz e compulsivo de bens culturais mediados pelo capital, sentimentos de receptividade e empatia não se constituem a contento. Justifica-se: em meio ao bombardeio de possibilidades e necessidades hodiernamente propaladas, como discernir entre o essencial e o acidental?

A externalidade produzida pelos apelos da sociedade de consumo induz a que bens extrinsecamente manipulados acabem por se internalizar na consciência individual. Assim, se os bens ofertados e consumidos são voláteis, substituíveis e descartáveis, por aproximação, na mesma proporção se fazem as relações. “(...) quem na sociedade precisa de mim? A falta de responsividade é uma reação lógica ao sentimento de que não somos necessários”, (Op. Cit., p. 174). Instala-se o mecanismo da indiferença. Precarizam-se as possibilidades de experiências humanizantes.

Atentos à configuração da sociedade contemporânea acima exposta, retomamos as questões iniciais sobre as possibilidades de, pela educação, tendo o currículo escolar como potencial desencadeador de reflexões, contribuir-se para a constituição de subjetividades resistentes ao contexto de alienação imposto pelas condições materiais da atualidade e as possíveis contribuições da escola sobre a formação do caráter das novas gerações. Porém, parodiando Adorno (1995) ousamos redefinir a questão: “Para onde a educação deve conduzir”?

3.2 Currículo, Educação e Formação Docente: as (im)possibilidades à formação com