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Niklas Luhmannn foi o criador da teoria de sistemas mais consistente já elaborada para o estudo das sociedades complexas. O objeto de estudo de Luhmann são os sistemas complexos e o processo de passagem de sistemas simples a complexos. A este processo Luhmann denomina autorreferencialidade dos sistemas, pelo qual estes conseguem definir o seu modo de operação básico e se comunicar com o sistema sociedade.

No intuito de criar uma teoria geral da sociedade, Luhmann explicou os sistemas parciais que a constituem: política, economia, direito, ciência, religião, etc, utilizando como fundamento principal de sua teoria a comunicação. Para Luhmannn, o modus operandi dos sistemas sociais é a comunicação. Mas para que um sistema social se comunique, deve ser um sistema complexo, ou seja, autorreferencial e autopoiético, entendendo-se a autopoiese como a capacidade que têm os sistemas de produzir, por si mesmos, seus próprios elementos operativos (autocriação, autoconstrução). São, portanto, sistemas que promovem um fechamento. Fecham-se para realizar suas operações internas e, só assim, conseguem se comunicar com os demais sistemas.

Luhmann sustenta que o sistema sociedade só funciona em virtude da diferença existente entre um sistema e outro. Cada sistema possui um código binário (código-diferença) que o distingue dos demais. O sistema jurídico tem por código lícito/ilícito, o político poder/não-poder, o econômico ter/não-ter, e assim por diante.

Os sistemas simples são abertos e, assim, não conseguem se comunicar, não produzem seus próprios conhecimentos e não desenvolvem códigos que os distingam dos demais. Já os

sistemas complexos, em virtude do fechamento que logram obter, podem delimitar o seu entorno e com ele se relacionar, para a reprodução autopoiética do sistema137.

Não custa reafirmar que a ambição de Luhmann foi a de criar uma teoria geral da sociedade, daí porque a maior parte de sua obra foi destinada à explicação da operação da sociedade em geral e, nesse contexto, à explicação dos sistemas parciais que a compõem: política, economia, direito, ciência, religião, etc. (CANSINO, 2008:67).

Para os propósitos deste trabalho, o sistema judiciário brasileiro será considerado como um subsistema do sistema social, também formado por subsistemas parciais (político, administrativo, jurídico), ao qual se aplicam, guardadas as proporções, as proposições da teoria que ora se explicita.

De acordo com Cansino (2008:70-71), Luhmann nunca conferiu centralidade decisional aos sistemas políticos, na relação com os outros sistemas “e muito menos os concebeu como o monopólio da atenção pública. A política, pelo contrário, é confinada à função que desempenha nos limites de sua competência em relação com os outros sistemas”138. Na verdade, para Luhmann, a política, como subsistema, tem a função de permitir ao sistema social e aos indivíduos a absorção e elaboração das informações disponíveis, no processo de comunicação.

É que a integração social, na visão de Luhmann, é consensual e se baseia em normas compartidas (CANSINO, 2008:71). Ou, como afirma Arruda Júnior (1991: passim), é uma “generalização congruente de expectativas normativas”. Isso impõe uma

concepção do poder ancorada nos sujeitos físicos e humanos: o poder funciona, quando muito, como filtro de operação seletiva [...] do qual podem apropriar-se sujeitos diversos em circunstâncias diversas. O poder é exercido tanto pelos subordinados como pelos

137 Para as considerações expostas neste capítulo, até aqui, considerem-se

os seguintes trabalhos: Neves (1992a e 2006) e Cansino (2008)

‘sobreordinados’ [139], pois é somente a soma das

intervenções seletivas praticáveis (CANSINO, 2008:71)140.

Por isso, a legitimação procedimental só ocorre com a participação nos procedimentos, por exemplo nas eleições

políticas, de modo que o próprio sistema produza sua

legitimação em lugar de adquiri-la no exterior. Este é o modo em que o sistema político, em uma situação de alta contingência, procura sua legitimação de maneira aberta e estruturalmente indeterminada, posto que a positivação do direito lhe subtraiu as antigas fontes de sustento metafísico (CANSINO, 2008:71-72, grifos do autor)141.

Com efeito, segundo Neves (1992a:280-281)142,

a diferenciação do Direito na sociedade moderna pode ser interpretada...como controle do código-diferença ‘lícito/ilícito’ por um sistema funcional para isso especializado. De acordo com o modelo luhmanniano, essa nova posição do Direito pressupõe a superação da sociedade pré-moderna, diferenciada verticalmente, ou seja conforme o princípio da estratificação. Na medida em que o princípio da diferenciação baseava-se numa distinção entre ‘acima’ e ‘abaixo’, praticamente apenas o sistema supremo, a ordem política da camada social

mais alta, constituía-se auto-referencialmente. O direito permanecia sobredeterminado pela política e as representações morais estáticas, político-legitimadoras, não dispondo exclusivamente de um código-diferença específico entre um sim e um não. A positivação do Direito na sociedade moderna implica o controle de código-diferença ‘lícito/ilícito’ exclusivamente pelo sistema jurídico, que adquire dessa maneira seu fechamento operativo.

[...]

Nesse contexto, o sistema jurídico pode assimilar, de acordo com os seus próprios critérios, os fatores do meio ambiente [143], não sendo diretamente influenciado

139 Ou subintegrados e sobreintegrados (Neves, 1992b). 140 Tradução livre do autor.

141 Tradução livre do autor.

142 As mesmas considerações se encontram, com alterações, em Neves (2006:80). 143 Fenômeno a que se denomina ‘abertura cognitiva’. “O Direito é visto como

‘um sistema normativamente fechado, mas cognitivamente aberto” (Neves, 1992b:83).

por esses fatores. A vigência jurídica das expectativas normativas não é determinada imediatamente por interesses econômicos, critérios políticos, representações éticas, nem mesmo por proposições científicas, ela depende de processos seletivos de filtragem conceitual no interior do sistema jurídico. Ainda de acordo com Neves (ibidem:283), não apenas “a supressão da determinação imediata do Direito pelos interesses, vontades e critérios políticos dos ‘donos do poder’, mas também a neutralização moral do sistema jurídico” é inerente à positividade do Direito. Assim,

só quando há uma assimetrização externa ao nível da orientação normativa é que surge o problema da alopoiese [144] como negação da auto-referência operacional do

Direito [...]. O respectivo sistema é determinado, então, por injunções diretas do mundo exterior, perdendo em significado a própria diferença entre sistema e meio ambiente. (NEVES, 1992a: 287),

Como conseqüência, haverá

a sobreposição de outros códigos de comunicação, especialmente do econômico (ter/não-ter) e do político (poder/não poder), sobre o código lícito/ilícito, em detrimento da eficiência, funcionalidade e mesmo racionalidade do Direito (NEVES, ibidem:290).

Ocorre que é exatamente

na capacidade de ‘releitura’ própria das determinantes meio-ambientais que o sistema afirma-se como autopoiético. Na medida em que, ao contrário, os agentes do sistema jurídico estatal põem de lado o código- diferença ‘lícito/ilícito’ e os respectivos programas e critérios, conduzindo-se ou orientando-se primária e frequentemente com base em injunções diretas da

economia, do poder, das relações familiares, etc, cabe,

sem dúvida, sustentar a existência da alopoiese do Direito” [problema que] “implica o comprometimento

144 “Derivado etimologicamente do grego alo (‘um outro’, ‘diferente’) +

poiesis (produção, ‘criação’), a palavra designa a (re)produção do sistema por critérios, programas e códigos do seu meio ambiente” Cf. Neves (1992a:287).

generalizado da autonomia operacional do Direito. Diluem-se mesmo as próprias fronteiras entre o sistema jurídico e o meio-ambiente, inclusive no que se refere a um pretenso Direito extra-estatal socialmente difuso (NEVES, ibidem: 291, grifos do autor).

Perceba-se que em um sistema alopoiético todos os agentes estão incluídos, porém de forma distinta: haverá sobreincluídos e subincluídos. A diferença está em que estes últimos, embora se submetam às prescrições impositivas do ordenamento posto, não têm acesso aos benefícios que o mesmo ordenamento possa oferecer (NEVES, 1992b:87). “Na verdade, restarão privados do exercício de certos direitos, mas não estarão liberados dos deveres e responsabilidades impostas pelo aparelho coercitivo” (ibidem:m.p.).

É natural que, dada a alopoiese jurídica, pelas interferências políticas e econômicas, os subintegrados, que dela resultam, situando-se em posição inferiorizada na ordem jurídica, tendam a criar um ordenamento paralelo ao direito posto pelo Estado, “que tem por finalidade regulamentar as condutas daquela realidade de onde ele surgiu” (ASSIS MELO, [s.d.]), portanto um direito alopoiético. Ou melhor, os subincluídos criarão “todo um complexo de normas a serem seguidas dentro de cada grupo social”, transfigurando “a titularidade exclusivamente estatal do jus legem” (Rosa) e dando origem a instituições informais. Exemplo marcante de tal fenômeno é o caso do ‘sistema jurídico paralelo’ existente nas favelas do Rio de Janeiro e as instituições informais engendradas naquele ambiente.

Pois bem. Como visto nos capítulos precedentes (especialmente Capítulo 4), o subsistema judicial no Brasil se caracteriza pela inexistência de normas compartidas ou generalização congruente de expectativas normativas. O poder é exercido exclusivamente pelos sobreincluídos. Não há participação de todos na eleição dos dirigentes e escolha dos integrantes das estruturas de controle, razão pela qual não se

pode falar em legitimação procedimental. Existe diferenciação vertical, impondo-se a ordem política da camada mais alta, os membros dos tribunais. As normas internas permanecem sobredeterminadas pela política, de modo que não existe um código-diferença específico entre um sim e um não, especialmente do tipo lícito/ilícito. A vigência das expectativas normativas é determinada por critérios políticos, pelos interesses, vontades, relações familiares e critérios políticos dos ‘donos do poder’, operando-se a sobreposição de outros códigos de comunicação sobre o código lícito/ilícito, cabendo sustentar, sem dúvida, a existência de alopoiese.

Mas, diferentemente do que costuma acontecer na ocorrência de alopoiese (criação de um ordenamento paralelo ao direito posto pelo Estado, pelos subincluídos), no caso do governo da magistratura e da administração dos tribunais, outro fenômeno, também decorrente da alopoiese jurídica, pode ser claramente observado. Refiro-me à produção de normatização paralela, no âmbito dos Tribunais, e, como corolário, o surgimento de instituições informais no Judiciário, pelo grupo dominante, os sobreincluídos.

O fenômeno se explica a partir da constatação inevitável de que a subintegração da maioria - os juízes que não têm direito de participar da escolha dos dirigentes e dos controladores, da produção das regras internas e da administração dos Tribunais - é “inseparável da sobreintegração dos grupos privilegiados [– dirigentes, integrantes das Cortes e das estruturas de controle -], que principalmente com o apoio da burocracia estatal desenvolvem as suas ações bloqueantes da reprodução do direito” (NEVES, 1992b:88). É verdade que os grupos privilegiados fazem uso da ordem jurídica estatal, “em princípio, desde que isso seja favorável aos seus interesses” (NEVES, 1992b:88), que será posta de lado, ou contornada, sempre que impuser limites à sua esfera de ação política (NEVES, ibid.). A ordem jurídica

estatal, então, não atua “como horizonte do agir e vivenciar jurídico-político dos ‘donos do poder’, mas sim como uma oferta que, conforme a eventual constelação de interesses, será usada, desusada ou abusada por eles” (NEVES, ibid.).

De modo que no ambiente aqui delineado, no fenômeno da alopoiese jurídica serão os sobreintegrados que criarão instituições informais, a partir de normatização paralela.

Zaverucha e Oliveira (2007), abordando o surgimento de milícias no Rio de Janeiro, explicam que “duas categorias de instituições informais (procedimentos criados e sancionados fora do aparelho de Estado) tendem a surgir onde existem instituições formais ineficientes: as substitutivas e as competitivas.”

Não se pode afirmar que os integrantes das milícias sejam subintegrados, como são, por exemplo, as facções de traficantes. Ao contrário, são formadas

por agentes estatais (policiais, bombeiros e agentes penitenciários). Eles se vêem como membros de uma força de autodefesa contra a bandidagem. As milícias se assemelham, nesse aspecto, às rondas campesinas peruanas. Mas estas eram formadas por agricultores locais, não por agentes do Estado (ZEVERUCHA; OLVEIRA, 2007).

Na situação retratada, é fácil constatar que membros das forças coercitivas formais do Estado, sobreintegrados, portanto, criaram instituição informal. No caso específico,

torna-se cada vez mais difícil distinguir o policial- miliciano do miliciano-policial. A transversalidade entre poderes gerou o casamento entre uma instituição informal com uma formal. Uma não existe sem a outra [...]. As duas instituições se reforçam e se complementam. O Estado, em vez de fazer prevalecer o seu monopólio sobre o uso legal da violência, permite que uma nova instituição informal substitua os comandos existentes (ibidem).

De modo semelhante, a forma oligárquica de administração dos tribunais (déficit democrático), marcada pela

verticalização e, consequentemente, pela presença de sobreincluídos e subincluídos, termina por promover, num processo jurígeno alopoiético, o surgimento de instituições informais no seio do Poder Judiciário, em regra de caráter concorrente.

Não se pode perder de vista, ainda, que entre déficit democrático e instituições informais não há, apenas, uma relação de causa e efeito de único sentido (déficit democrático => informalidade). Existe, a rigor, uma transversalidade (entrecruzamento horizontal) entre os dois fenômenos, que envolve uma processo de alimentação recíproca, ou uma retro-alimentação (feedback), mais propriamente uma circulação (déficit democrático => informalidade => déficit democrático), ou uma acentuada interpenetração: o déficit democrático favorece o surgimento de instituições informais e estas ampliam o déficit democrático145.

Tome-se o exemplo do nepotismo no Poder Judiciário, que será examinado, a seguir (subitem 8.4.3.9). O fato de um pequeno grupo decidir acerca do provimento de cargos comissionados estimula a utilização de tais espaços para a satisfação de expectativas pessoais, movidas por relações familiares. Caso a decisão coubesse ao conjunto dos magistrados, dificilmente a estratégia seria posta em prática, até mesmo pela reduzida quantidade de cargos dessa natureza a serem providos. Por outro lado, o fato de parentes dos membros do grupo dominante ocuparem os melhores espaços da burocracia, portanto a apropriação privada de bens e serviços públicos escassos, sem observância das regras de acesso, estimula a concentração do poder decisório nas mãos de poucos, um vez que a difusão do poder de decisão levaria, em última análise, à pulverização do capital político146 entre todos os juízes,

145 As idéias de transversalidade, circulação e interpenetração foram

retiradas de Neves (2001b, 2006 e 2009).

eliminando, por via de conseqüência, a possibilidade de “patrimonialização de recursos coletivos147”.