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5. CULTURA POLÍTICA E DEMOCRACIA

5.3. O PAPEL DA MAGISTRATURA

5.3.2 Novos movimentos sociais

Segundo Ludolfo Paramio (1988:218-229), os chamados novos movimentos sociais constituem novas variantes dos grupos de interesse, cujo auge, nos anos setenta, deve ser visto como mostra da crise do sistema político dual, baseado na democracia de partidos e em um pacto corporativo estabelecido entre os grupos de interesses dominantes até esse momento.

Nessa linha de pensamento, Paramio sustenta que os movimentos sociais não podem ver-se como uma superação do sistema de partidos, no sentido em que alguns autores os vêm interpretando, senão como fruto de uma crise do sistema dual. Evidentemente alinhado ao pensamento da esquerda clássica acerca da organização social e política, Paramio reforça a importância do partido como canal de participação política, consciente, todavia, do desenvolvimento de várias linhas de

análise, "resultando em polêmicas acerca da práxis partidária, em confronto com outras formas de organização e de luta vinculadas, por exemplo, aos sindicatos operários", como acentua Araújo (1997:130).

A partir de tais interpretações, apresentam-se duas vertentes básicas: 1) a crise das instituições inerentes à democracia representativa como elemento de constituição de novos canais de participação, do que seriam expressão os movimentos sociais, realizando

o objetivo de uma democracia de base que se contrapõe à representação política via instituições burocratizadas; 2) os movimentos sociais, em sua especificidade própria, cujas características internas e as formas de inserção na sociedade levam ao questionamento dos paradigmas clássicos (ARAÚJO, ibid., m.p).

Paramio, fiel à idéia da crise do sistema político dual, e na perspectiva de uma hipotética recuperação desse sistema, considera que, dependendo das características destes movimentos enquanto grupos de interesse, sua evolução previsível pode ser dupla. Por uma parte podem constituir-se em grupos de interesse em sentido estrito, e em conseqüência ser incorporados a um pacto corporativo de novo tipo. Por outra podem tender a transformar-se em correntes ideológicas capazes de modificar os programas e o pensamento político dos partidos antes existentes.

Do que se viu até aqui, pode-se afirmar que a concepção de movimentos sociais tem ocupado espaço de relevo no estudo da organização popular, não havendo, naturalmente, unidade conceitual, pois enquanto alguns os entendem como toda e qualquer mobilização popular, outros preferem restringi-los ao contexto das mobilizações que "apresentam algum nível organizativo, estruturado em torno de um projeto e sob uma direção constituída entre membros do grupo". Para uma terceira corrente, somente as mobilizações fundadas em estrutura

cristalizada e projeto específico de transformação da sociedade, constituiriam movimentos sociais (ARAÚJO, 1997).

Para Alain Touraine (1994:76-92), a crise da representação política provocou a independência crescente dos partidos políticos em relação às forças sociais e a sua transformação de representante de classes sociais em representantes de projetos de vida coletiva, por vezes, até mesmo, de movimentos sociais.

Touraine lembra a necessidade de dar às instituições livres uma base de representatividade que pressuponha que as demandas sociais pretendam ser em si mesmas representáveis, que aceitem as regras do jogo político e a decisão da maioria. Movimento social e democracia seriam, então, indissociáveis. Só haverá movimento social se a ação coletiva tiver objetivos sociais, isto é, reconhecer valores ou interesses gerais da sociedade. Em resumo, somente nas sociedades democráticas se formam movimentos sociais porque a livre escolha política obriga os atores sociais a procurarem o bem comum ao mesmo tempo que a defesa de interesses particulares.

Em obra mais recente, Touraine (1999:65-101) assumiu que paralelamente aos movimentos que se desenvolvem em contraposição à política liberal, à subordinação da vida social à lógica esmagadora de uma globalização que pesa sobre os salários, aumento de desemprego, enfraquecimento da capacidade de intervenção do Estado, constroem-se inúmeras mobilizações populares de outra natureza: elas visam fazer reconhecer direitos culturais. Para Tourraine, nas duas últimas décadas, os conflitos mais significativos, os que tocaram com mais força a opinião pública, por seu conteúdo, e não só por seu contexto, se deslocaram do terreno dos direitos sociais para o dos direitos culturais.

Sem negar a importância dos problemas de emprego e de salário, admite que

a formação de atores, e em conseqüência o renascer da vida pública, passa quase sempre pela reivindicação de direitos culturais, e que é este gênero de lutas, mais do que movimentos diretamente opostos à lógica liberal, que merece o nome de 'movimento social'. Tanto é verdade que não há movimento social sem que uma afirmação acompanhe uma recusa.

[...]

Para que um movimento se forme, não basta que se oponha a uma dominação; é preciso que reivindique em nome de um atributo positivo [...]. É preciso, enfim, que a luta não seja levada só contra a ordem dominante, mas em nome dos valores considerados como centrais por toda a sociedade. [...] o mais importante é reconhecer, ao contrário, em ações que parecem baseadas na simples privação, a presença de uma reivindicação positiva, e portanto de um conflito importante, que as colocam no âmago da sociedade e da cultura [...]. (TOURAINE, 1999). E exemplifica com o movimento dos beurs (segunda geração de imigrantes árabes, na França), o dos homossexuais na luta contra a AIDS, o dos "sem", etc.

A opinião de Touraine tangencia a idéia de que a pluralidade de determinações desenvolvidas pelas práticas políticas expande a compreensão de sua natureza, extrapolando os limites das relações eminentemente econômicas.

A preocupação com a diversidade dos paradigmas das práticas políticas vem à baila nas mais recentes análises acerca da natureza dos chamados novos movimentos sociais.

O surgimento de novos canais de expressão de interesses, não necessariamente aqueles de uma classe específica, conduz os cientistas sociais à busca de explicações teóricas capazes de abranger a diversidade observável nos movimentos sociais (Araújo, 1997:134).

Ludolfo Paramio (1988:219), analisando o que reconhece como novos movimentos sociais - como já visto, na sua concepção, novas variantes dos grupos de interesses -, o feminismo, o ecologismo e o pacifismo, afirma que os mesmos decorrem das mudanças experimentadas pelas sociedades centrais

do sistema capitalista sob o impacto do prolongado crescimento dos anos cinqüenta e sessenta e da tensão internacional provocada pelo neoconservadorismo, negando que os mesmos sejam manifestação da crise do sistema de partidos.

Desenvolve sua argumentação a partir do pressuposto de que o caráter antissistêmico dos movimentos sociais os diferencia radicalmente do que tradicionalmente vinha descrevendo a sociologia acadêmica norte-americana como grupos de interesse: coletividades organizadas para pressionar ao governo em função de um fim comum. Afirma Paramio (1988:219):

se se pretende pressionar o governo, cabe induzir que se reconhece a legitimidade não apenas deste governo, senão do próprio sistema regulado de forma institucional por ele. Assim, para utilizar uma terminologia clássica, por definição os grupos de interesses são grupos integrados no sistema.

Sobreleva o aspecto ideológico que marca a construção de Paramio. Para ele, só cabe falar em movimentos sociais quando estes são (pelo menos parcialmente) antissistêmicos. Grupos integrados ao sistema serão, automaticamente, meros grupos de interesses.

Portanto, a partir de uma definição mais ampla de movimento social - que inclua tanto grupos integrados com organização como movimentos antissistêmicos - como um coletivo que persegue objetivos comuns, que conta com uma organização mais ou menos flexível e com um grupo dirigente organizado de forma regular (explícita ou implicitamente), pode-se chegar, segundo Paramio, à primeira distinção dentre os movimentos sociais: os integrados e os (potencialmente) antissistêmicos.

Uma segunda distinção já clássica atenderia ao tipo de fins perseguidos. Um movimento será reativo quando tratar de evitar o que se vê como agressão aos interesses comuns dos membros do coletivo, entendidos como direitos legítimos. Um movimento será proativo quanto se propuser uma ampliação de tais direitos (estender a esfera de direitos adquiridos pelo coletivo

em correspondência com seus interesses comuns. Convém sublinhar que um mesmo movimento pode passar por fases reativas e proativas (e não necessariamente segundo uma seqüência predeterminada), assim como é possível que um movimento combine em uma mesma atuação demandas reativas e proativas (...). Uma hipótese possível seria que um movimento social integrado não volta facilmente à etapa antissistêmica inicial, mas ao contrário são possíveis combinações e oscilações entre as demandas reativas e proativas em um mesmo movimento social. (Paramio, 1988:221).

Prossegue Paramio em seu raciocínio, que merece integral transcrição (ibidem:m.p.):

Em terceiro lugar, para um movimento social dado é preciso distinguir entre seu público potencial (quem pode chegar a simpatizar com suas demandas), sua clientela potencial (quem compartilha os interesses representados pelo movimento), sua militância em sentido amplo (quem pode mobilizar-se em um momento dado em nome de suas demandas), sua militância em sentido mais estrito (militantes organizados e ativos dentro do movimento), e, por último, seu núcleo dirigente mais ou menos estável e hierarquizado (o aparato). É fácil ver que o público potencial, uma vez excluída a clientela do movimento, pode estar composta por dois tipos de pessoas: 1, as que por sua adesão a algum princípio moral de ordem geral consideram que as demandas do movimento são legítimos; 2, as que esperam obter alguma forma de vantagem lateral da postura em prática de ditas demandas. O primeiro grupo é sensível ao discurso do movimento; o segundo grupo, por seu turno, só é sensível às conseqüências materiais do progresso do movimento. A partir das categorias eleitas por Paramio, pode se enquadrar o associativismo da magistratura, no Brasil, sem perder de vista os critérios enfocados pelos outros autores trazidos à colação.