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4. DÉFICIT DEMOCRÁTIO NA ADMINISTRAÇÃO DOS TRIBUNAIS

4.3. O EXERCÍCIO DA JURISDIÇÃO DE FORMA LIVRE E ISENTA COMO CONDIÇÃO FAVO-

Assumindo-se, como pressuposto, que a democracia é a melhor maneira de governar um Estado, por assegurar direitos essenciais, liberdades e igualdade política, valorizar a paz, a autodeterminação, o desenvolvimento humano104, impõe-se a constatação de que para que a democracia exista é necessário um Poder Judiciário independente interna e externamente.

A independência judicial, antes de ser um privilégio do juiz, constitui-se em valor de extrema importância para a

103 Aliás, o TST, em algumas situações, decidiu contrariamente à

jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Por exemplo, no que concerne à competência da Justiça do Trabalho para as ações de habeas corpus, antes da EC 45/04 (v.g, ROHC 709140/2000, DJ 27.9.02). Faça o que eu digo...

democracia. Em qualquer lugar em que se assegure a total independência do Poder Judiciário é maior a probabilidade de um regular desenvolvimento do jogo democrático, com a efetiva proteção dos direitos fundamentais e o regular controle de todos os poderes públicos. Quanto menor a subordinação do Poder Judiciário ao Poder Político, maior é o equilíbrio institucional e democrático (GOMES, 1997:39).

Formalmente, o reconhecimento da independência judicial como requisito para a democracia e a paz, segundo informa Dallari (1996:44), foi feito pela Organização das Nações Unidas, por decisão de 1994. A recomendação da Comissão de Direitos Humanos da ONU, feita pela Resolução 1994/41, foi no sentido da criação do cargo de Relator Especial sobre independência do Poder Judiciário, para que se ensejasse

um mecanismo de controle encarregado de acompanhar a questão da independência e imparcialidade do Poder Judiciário, especialmente no que respeita aos juízes e advogados e ao pessoal e auxiliares da justiça, assim como à natureza dos problemas que podem menoscabar essa independência e imparcialidade” (DALLARI, ibid., m.p). Tal recomendação foi acolhida pelo Conselho Econômico e Social da ONU, que terminou por criar o cargo sugerido.

O Relatório de Desenvolvimento Humano 2002 alertou para a necessidade de se prevenir retrocessos nas regiões que se encaminharam para regimes democráticos e defende o aprofundamento dessas democracias. Sustenta que esses objetivos políticos somente serão alcançados se forem adotadas providências que vão além do fortalecimento das instituições democráticas como eleições livres e justas. Propõe, entre outras medidas igualmente imprescindíveis - como partidos políticos amplos e representativos, meios de comunicação éticos e sem controle governamental ou corporativo -, a defesa da independência do Poder Judiciário.105

105 Relatório sobre desenvolvimento humano 2002. Cf. http://www.unpd.org.br.

Percebe-se que a discussão sobre a independência judicial surge, recorrentemente, associada às questões de liberdade, democracia e justiça social. Porque o jogo democrático depende da existência de regras pré-estabelecidas e de um poder efetivamente autônomo para exigir o seu cumprimento.

Jerome Cohen (1969:972, apud PRILLAMAN, 2000:17), afirma que a independência judicial não é algo que existe ou não existe e que em todos os países o Poder Judiciário, em termos de independência, ao menos na teoria, se encontra situado entre uma posição de completa liberdade e outra de absoluta subserviência.106

Ainda que se tome uma definição minimalista de democracia - poliarquia ou democracia política, termos que O'Donnell (1999:589), na esteira do pensamento de Dahl, apresenta como equivalentes – esta não pode ser considerada configurada quando inexistente a indispensável independência judicial. Qualquer que seja a definição minimalista adotada, restará evidenciada a dificuldade de adequação ao Estado que não a ostente em alto grau.

Mainwaring et alii (2001:645-687) advertem para os riscos de uma definição submínima de democracia, como são as clássicas definições de Dahl, Przeworski, Shumpeter e outros. Afirmam que “uma definição de democracia deve ser mínima, mas não submínima; deve incluir todos os aspectos essenciais da democracia, mas não propriedades que não sejam necessariamente características da democracia” (p. 648).

Segundo os autores mencionados, a democracia representativa moderna tem quatro propriedades definidoras, sendo que as duas primeiras “abrangem as dimensões clássicas analisadas por Dahl em Polyarchy (1971) e em muitos outros estudos”.

A primeira é que o chefe do Executivo e o Legislativo devem ser escolhidos em eleições competitivas livres e

limpas1; [...] a segunda propriedade é que o direito de voto deve ser extensivo à grande maioria da população adulta. Isto significa um nível de inclusão próximo do sufrágio universal [...].

Sobre a questão do sufrágio, afirmam que “se grandes parcelas da população são excluídas do direito de sufrágio, o regime pode ser uma oligarquia competitiva, mas nas últimas décadas não seria uma democracia” (pp. 648-649).

As demais propriedades são acrescidas pelos autores. A terceira é que as democracias devem dar proteção a direitos políticos e liberdades civis como a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão. A quarta propriedade das democracias contemporâneas é que as autoridades eleitas devem deter o genuíno poder de governar, “em oposição às situações em que os governantes eleitos são ofuscados pelos militares ou por alguma figura não eleita que domina nos bastidores” (p. 650)

Mainwaring et alii sustentam que as quatro dimensões da definição proposta “são necessárias e devem ser incluídas mesmo que isto exija fazer julgamentos subjetivos sobre os regimes”. Entendem que a definição por eles apresentada

atende ao duplo requisito de ser mínima e completa, quando: a) todos os quatro critérios são componentes necessários da democracia, sem os quais um regime não pode ser considerado democrático; b) nenhum outro aspecto, além desses, é indispensável para caracterizar uma democracia (ibidem:651).

Os autores entendem que as definições de Schumpeter e Przeworski, por exemplo, equiparam a democracia à simples realização de eleições limpas e à alternância do poder e apontam como o grande diferencial de sua definição a ênfase ao respeito às liberdades civis fundamentais e à inexistência de “domínios reservados” na política pública sob o controle de pessoas não eleitas (ibidem:652).

Mainwaring et alii (ibidem:653) alertam para os riscos do subminimalismo, afirmando que “focalizar exclusivamente a

competição política leva a uma definição submínima e a erros na classificação dos regimes” porque

o ‘eleitoralismo’ — a equiparação de eleições competitivas com democracia — ignora dimensões fundamentais da democracia. Eleições competitivas sem amplo sufrágio adulto podem existir em um regime oligárquico pré-democrático [...].

Os autores propõem uma escala tricotômica de democracia, argumentando que “as classificações dicotômicas não são suficientemente sensíveis às variações de regimes, porque muitas caem em uma zona semidemocrática intermediária”107. Por outro lado, dizem, “uma classificação tricotômica ordinal — democracia, semidemocracia[108] e não democracia ou autoritarismo — capta melhor importantes variações dos regimes109. (ibidem:646)

Zaverucha (2000:14), apontando curiosa lacuna nos requisitos dahlsianos110 para a existência de uma poliarquia, menciona a necessidade "de haver uma justiça que trate imparcialmente civis e militares". Atribui a omissão à possibilidade de isso constituir aspecto óbvio para os padrões norte-americanos. Talvez seja necessário ir além. É imprescindível que tal imparcialidade permeie a atuação

107 Por exemplo, indicam que “Przeworski et alii consideram que o Brasil dos

últimos anos do regime militar (1979-84) era uma democracia, embora o chefe de governo fosse escolhido pelos militares e ratificado por um colégio eleitoral concebido para assegurar o acatamento servil à escolha oficial, embora os governadores não fossem eleitos democraticamente até 1982 e a oposição de esquerda e os movimentos sociais rurais ainda fossem submetidos à constante repressão” (MAINWARING et al, 2001:674- 675).

108 A semidemocracia “inclui uma variedade de regimes que patrocinam

eleições competitivas mas que, apesar disso, não podem ser codificados como democracias” (ibidem:662)

109 Ainda assim, reconhecem os autores: “É claro que, mesmo trabalhando com

regras explícitas de codificação,é difícil classificar certos países que podem estar numa ou noutra categoria. Por exemplo, dever-se-ia classificar o Brasil, no período entre 1946-1963, como uma semidemocracia, por causa das restrições à participação e à competição, ou como uma democracia, visto que a competição no plano nacional era bastante vigorosa e a participação ampla? (ibidem:664-665).

110 Para Dahl (2001:99), uma democracia poliárquica é um sistema político

dotado das seguintes instituições: 1) funcionários eleitos; 2) eleições livres justas e freqüentes; 3) liberdade de expressão; 4) fontes de informação diversificadas; 5) autonomia para as associações; 6) cidadania inclusiva.

jurisdicional para que, por ela, se encontre a justa solução para os conflitos de interesses que lhes são submetidos, sobretudo os que nascem do antagonismo entre o Estado e o cidadão. E o pressuposto da imparcialidade é a independência judicial.

A irrestrita independência e a imparcialidade em relação às partes e aos demais poderes estão na base da divisão dos poderes. Se a função do Judiciário é controlar os demais poderes e assegurar o exercício dos direitos fundamentais dos cidadãos, enquanto o Poder Político mantiver qualquer tipo de ingerência na elaboração ou execução da política judicial, como na seleção e nomeação de juízes, não se pode qualificar o Estado como democrático de Direito (GOMES, 1997:38).

Ao que parece, e é o que se pretende evidenciar, excluída a importante questão do controle civil sobre os militares, obviamente esquecida por Dahl111 - e mesmo por Mainwaring et alii, na crítica às definições subminimalistas de Przeworki e Schumpeter - as características poliárquicas por ele indicadas pressupõem a independência judicial. Como se podem asseguram eleições livres e limpas, isentas e pacíficas; liberdade de expressão e autonomia de associação – ou mesmo o respeito às liberdades civis fundamentais e ao “genuíno poder de governar”, reivindicados por Mainwaring et alii -, sem que o Judiciário esteja, independentemente, a garantir, na prática, que assim se dê?

Ressalte-se que a garantia do exercício dos direitos individuais e o controle da constitucionalidade das leis (inclusive e principalmente as leis eleitorais) são funções precípuas do Judiciário.

Não seria desmedido dizer-se, então, que a explicitação de mais um pressuposto, "o exercício da jurisdição de forma

111 Na verdade, muitos anos depois da indicação das instituições essenciais

à poliarquia, Dahl indicará, entre as “condições que favorecem as instituições democráticas”, o controle dos militares e da polícia por funcionários eleitos (2001:163).

livre e isenta", não faria qualquer mal ao conceito de Dahl, de reverso, completá-lo-ia - inclusive abarcando o aspecto que ensejou a observação de Zaverucha acima referida.

Tomemos, entretanto, definição ainda mais restritiva de poliarquia, aquela adotada por Wanderley G. dos Santos (1998):

[poliarquia é] um sistema político que satisfaça completamente às seguintes condições: 1. exista competição eleitoral pelos lugares do poder, a intervalos regulares, com regras explícitas, e cujos resultados sejam formalmente reconhecidos pelos competidores; 2. a participação da coletividade na competição se dê sob sufrágio universal, tendo por única barreira o requisito da idade limítrofe.

Ora, de nada valeria a existência de "regras explícitas" se não houvesse "um árbitro imparcial, com auctoritas [...] aplicando o Direito, isto é, o ordenamento jurídico global, não só a lei, sem esquecer a prioridade evidente das normas, princípios e valores constitucionais" (GOMES, 1997:36).

Sendo assim, ou se assume a independência judicial como pressuposto implícito, já que não foi elencado como requisito nas diversas definições minimalistas de democracia, ou restarão sem sustentação tais formulações, ao menos como pressupostos mesmo de uma democracia procedural.

Considerando-se formulação mais recente do próprio Dahl, "o exercício da jurisdição de forma livre e isenta" deveria estar elencado, quando menos, no rol de “condições que favorecem as instituições democráticas”. Nesse rol, foram incluídas, como condições essenciais: o controle dos militares e da polícia por funcionários eleitos; cultura política e convicções democráticas; nenhum controle estrangeiro hostil à democracia. E como condições favoráveis: sociedade de mercado e economia modernas; fraco pluralismo subcultural (DAHL, 2001:163).

Ainda que não tenha sido indicada por Dahl, a absoluta independência judicial – por todas as razões expostas - se constitui em condição que favorece as instituições

democráticas. E a sua ausência, ou sua limitação, sua restringência, configura fenômeno negativo para a democracia. Ocorrência desfavorável à estabilidade democrática.

Nessa linha, Prillaman (2000:171-173) desenvolve interessante raciocínio. Sustenta que nos países em processo de consolidação democrática de nada valerão os progressos nos variados planos institucionais, como regularização de eleições, por exemplo, se fracassar a tentativa de redução do espaço entre o papel que o judiciário deve desempenhar e o que ele efetivamente desempenha. O autor citado critica os estudiosos que sugerem a possibilidade de consolidação democrática pela simples regularização de algumas instituições e afirma que o exercício da função jurisdicional não tem sido por eles admitido como uma instituição formal, ao menos em um sentido positivo. Para ele, em vários casos estudados, a deficiente atuação das cortes e o conseqüente desgaste do estado de direito, têm produzido uma cidadania incompleta.112

Guillermo O’Donnell (1996a:45) admite que em algumas poliarquias indivíduos só são cidadãos em relação a uma instituição que funciona de maneira próxima ao que as regras formais prescrevem: eleições. A cidadania estaria restrita à condição de eleitor. Quanto à total cidadania, apenas os membros de uma minoria privilegiada a usufruem. Exatamente pela falta de acesso a julgamento justo pelas cortes, quando suas liberdades básicas são negadas.113

Com efeito, onde houver relativização da independência judicial - da liberdade e da isenção no exercício da jurisdição -, assim como ocorre com as condições subjacentes apontadas por Robert Dahl, a democracia será precária, ou, no limite, possivelmente deixará de existir.

112 Tradução livre do autor. 113 Tradução livre do autor.