• Nenhum resultado encontrado

Da colocação do problema: os argumentos transcendentais

2. LEGALIDADE E CAUSALIDADE.

2.1 Da colocação do problema: os argumentos transcendentais

Sabe-se que Kant considerou o fracasso em refutar o ceticismo um escândalo para a filosofia e uma das funções da sua Crítica da Razão Pura foi justamente apresentada como

crenças que o ceticismo nos desafia a justificar. Tais crenças, como vimos, incluem, entre outras, a existência de um mundo externo, que relações causais se mantêm entre os eventos no mundo, que o raciocínio indutivo é confiável, etc. Nesse desiderato, Kant sistematizou uma teoria dos argumentos transcendentais na qual os conceitos e princípios que o cético nos solicita que justifiquemos são características constitutivas de nossa capacidade de ter toda e qualquer experiência, e tal é o conceito fulcral de experiência possível.

2 Em nossa dissertação, A resposta de Kant ao problema de Hume, desenvolvemos à exaustão a resposta

fundante de Kant ao problema da [primeira definição de] causalidade [em Hume], constante da Segunda Analogia da Experiência, e sua dependência teórica do conceito de experiência possível, exposto ao longo de toda a Analítica Transcendental da Crítica da Razão Pura. Ver esses dados em Sales Lima, 2003, p.157-202.

uma solução para esse problema. Sua tese principal é que nossa mente é constituída de tal modo que impõe um quadro de conceitos interpretativos sobre nossos dados sensíveis, entre os quais os da objetividade e da interconexão causal daquilo que percebemos. Neste sentido, a aplicação desses conceitos transforma a recepção passiva dos dados sensíveis em função do que Kant chama de “condições de possibilidade da experiência”. E aqui, reiteramos, está a origem dos chamados argumentos transcendentais que apresentamos em nossa “Introdução”: dado que nós somos capazes de ter experiência, pergunta-se quais são suas condições e, neste caso, proposições sobre certas crenças que estão sobre ataque cético são tomadas como verdadeiras em função do que é afirmado como ponto de partida ou, como diz Strawson (1959, p.40) em Individuals, “é apenas porque a solução é possível que o problema existe. O mesmo se aplica a todos os argumentos transcendentais” ou, dito de outro modo, é apenas porque fomos capazes de identificar objetos de tais e tais maneiras através de nosso esquema conceitual que é possível investigar as condições universais mediante as quais fazemos isso. Assim sendo, quando o cético nos pede que justifiquemos nossas pretensões de conhecimento, nós o fazemos traçando esses fatos sobre o modo como a experiência se constitui como possível, ou seja, analisando se argumentos transcendentais são condições de possibilidade de argumentos céticos [ou cético-naturalistas como veremos em pormenor na terceira parte].

Nessa perspectiva, podemos dizer que a pretensão fundamental de Kant em sua crítica da razão, é fundamentar juízos sintéticos a priori, e isto já está dito na introdução à Crítica da Razão Pura (C.R.P., B19, p.49): “o verdadeiro problema da razão pura está contido na seguinte pergunta: como são possíveis os juízos sintéticos a priori?”. Portanto, o que provém do confronto de Kant com o pensamento cético moderno pode ser considerado como uma amostra dessa questão, de modo que, não estaríamos exagerando se disséssemos que a descoberta dos “argumentos transcendentais” é fruto das reticências de Kant a esse ceticismo e, em particular, de sua resposta ao pensamento de Hume, o qual ele caracterizou como um filósofo que se notabilizou pela adoção de uma perspectiva eminentemente cética3. De fato, um importante fator para se rejeitar modelos teóricos céticos é que eles não detêm soluções fundacionistas para o conhecimento. Assim, juízos sintéticos a priori ou, genericamente, os argumentos transcendentais kantianos, são candidatos a defender uma postura fundacionista diante dos juízos sintéticos na forma dos argumentos cético-naturalistas humeanos. Com o

3 A respeito do ceticismo antigo e moderno, cf. Stough, Greeke Scepticism: A Study in Epistemology, Berkeley /

Los Angeles, 1969; R. Popkin, The history of skepticism from Erasmus to Spinoza, Berkeley / Los Angeles, 1979; M. Burnyeat (org.), The Skeptic tradition, Berkeley / Los Angeles, 1983; “The skeptic in his place and time”, in: R. Rorty / J.B. Schneewind / Q. Skinner (orgs.), Philosophy in history, Cambridge, 1984. Nesses autores, a importância do ceticismo está caracterizada no fato de que ele torna claro que todo o edifício de nossas suposições sobre o mundo se radica numa atitude prévia não mais justificável racionalmente.

fito de colocar o problema, a primeira providência a ser tomada é elaborar um esboço preliminar em que se possa cotejar a solução de Kant contida na Segunda Analogia da Experiência com o problema de Hume desenvolvido ao longo da nossa primeira parte.

Com efeito, vimos que Hume mostrou que a causalidade não está presente entre os conteúdos da percepção dos sentidos, e este resultado é irrefutável conquanto com ele consideramos a percepção como mera receptividade que registra os dados fornecidos pelos sentidos. Adiantamos que assim também o entendeu Kant, na sua tentativa de responder a Hume. Desse modo, quando se sustenta, tal como o fizeram esses pensadores, que essa percepção passiva é considerada a única maneira pela qual o mundo exterior nos é dado, então a causalidade de fato se constitui em um acréscimo mental ao material que primariamente se nos apresenta; e a diferença entre o problema humeano e esta suposta solução kantiana parece referir-se apenas à fonte e à natureza deste acréscimo4. Enquanto vimos que Hume formulou a hipótese do hábito com base na associação entre percepções para explicar esse acréscimo, Kant, por sua vez, afirmou que ele era parte da própria estrutura categorial do entendimento exposta na Analítica dos Conceitos da Crítica da Razão Pura.

Em princípio, portanto, não parece muito diferente a alternativa de Kant de substituir a origem psicológica humeana da causalidade por uma dita de origem transcendental. De fato, com base numa análise mais minuciosa, verifica-se que há um nítido fundo comum entre elas: Hume e Kant consideram-na como uma exclusiva determinação da mente que produz uma qualidade de conexão entre os objetos dados à nossa percepção, acréscimo a que damos o nome de “necessidade”. Contudo, parece que na versão kantiana, o entendimento produz algo inteiramente diferente, a saber, o conceito formal de uma regra necessária, onde o processo associativo humeano produzia unicamente um sentimento concreto e persuasivo de uma necessidade da imaginação. Mas uma regra de ligação necessária e geral já pressupõe aquilo de que ela deve ser a regra, ou seja, a própria ligação, que ela própria não pode disponibilizar, mas que precisa encontrar exemplificada originariamente nos casos particulares de ligação determinativa, onde o que força a passagem de uma causa A para um efeito B, ou vice-versa, é experimentado na prática5. Esta é a proposta legalista defendida por Kant na Segunda

4 A causalidade, segundo Hume, não está nos fenômenos da natureza, mas é algo que, subjetivamente atribuímos

aos fenômenos. Com base no que vimos em 1.9, tudo o que pode ser dito sobre a causalidade é que ela é uma forma nossa de perceber o real, uma idéia derivada da reflexão sobre as operações de nossa própria mente que tem como origem a ação do hábito sobre a imaginação por ocasião de experiências repetidas e não uma conexão necessária entre causa e efeito, uma característica do mundo natural.

5 Quanto à origem dos juízos causais particulares Kant não é menos empirista que Hume. A discordância se dá à

nível conceitual, fato que origina a resposta de Kant a Hume, inicialmente em seu momento fundante. No que toca a determinação das causas particulares, sua descoberta é, para os dois, uma operação de natureza empírica. Veja as palavras de Kant em C.R.P., B252, p.229: “Não podemos a priori ter o mínimo conceito acerca de como

Analogia da Experiência que afirma que, entre as condições de possibilidade da experiência de objetos, deve haver uma lei da causalidade que torna “possível a própria experiência, ou seja, o conhecimento empírico dos fenômenos (...)” (C.R.P., B234, p.218), cujo enunciado diz que “Todas as mudanças acontecem de acordo com o princípio da ligação de causa e efeito” (C.R.P., B232, p.217).

Diante do exposto, resumamos o que diz em linhas gerais o “Princípio da sucessão no tempo segundo a lei da causalidade” (Ibid): a) que um nexo de necessidade de alguma espécie atua em cada mudança, mesmo quando não é por nós experimentado agindo nem percebendo; b) que se observa a vigência de uma medida uniforme para o nexo de necessidade de todas as mudanças, ou que todas as necessidades particulares são partes de uma necessidade mais geral; e c) que esta, por sua vez, é ela própria necessária, mas necessária do ponto de vista a priori (e não a posteriori ou não-categorial, como em Hume). Neste caso, Kant vai falar sempre de uma composição de necessidade da necessidade - de uma necessidade a priori [de segunda ordem] de necessidades [indutivas ou comparativas] a posteriori, isto é, da necessidade que temos de perceber conteúdos mentais isolados [a posteriori], e que todos esses conteúdos juntos, constituam um sistema homogêneo esquematizado e igualmente necessário [a priori]. Tais são os argumentos transcendentais de Kant, das quais a própria Segunda Analogia da Experiência é uma espécime que trata exclusivamente da lei da causalidade a priori, que determina as condições de possibilidades das próprias leis empíricas da natureza; como são leis de segunda ordem, elas nada tem a ver com nossa experiência real das relações de causa e efeito. Aqui, a intenção de Kant não tem em vista justificar o caráter efetivo da causalidade, nem sua experiência isolada e contingente, mas sim a própria validade de uma lei universal: as relações de causa e efeito como condições de possibilidade da experiência. Assim, à diferença de Hume, em Kant o princípio causal universal deve ser nitidamente separado da idéia de leis causais particulares e, nesse desiderato, nem a necessidade destas, nem mesmo sua existência dependem do esquema da Segunda Analogia da Experiência6, de sorte que elas parecem estar completamente dentro do domínio reservado ao juízo reflexivo [ou do uso regulativo da razão como veremos na terceira parte].

pode alguma coisa em geral mudar de estado, como é possível que um estado, em certo momento, seja seguido por um estado oposto noutro momento. Para tal se requer o conhecimento de forças reais, que só pode ser dado empiricamente, de forças motrizes, por exemplo, ou, o que é o mesmo, de certos fenômenos sucessivos (enquanto movimentos) que manifestam essas forças”.

6 A Segunda Analogia da Experiência embute na verdade uma certa ambigüidade: em linhas gerais ela parece ser

uma operação mental de concluir do particular para o geral, ou seja, ela generaliza uma relação de causalidade entre dois fenômenos, mas em termos de racionalismo, o mais correto seria dizer “universalizar” ao invés de “generalizar”. A distinção que Kant estabelece em toda trilogia crítica é entre o “geral” em sentido comparativo, relativo e empírico, próprio do conhecimento a posteriori, e o “universal” em sentido estrito ou a priori, próprio

O fato é que, o que se deveria provar é se esse argumento consegue demonstrar isto de forma válida, mas o que se verá é que uma lei que faz referência à experiência possível parece que jamais pode falar pela própria experiência primária. O que se pode provisoriamente conceder, em vista das posições de Hume e da resposta de Kant na Segunda Analogia da Experiência, é que esta é insuficiente para justificar racionalmente o problema da causalidade; quer se trate de uma regra psicológica ou racional, parece que Kant - no caso de juízos determinantes - não fez muito mais do que fizera Hume, ainda que sua tentativa de solução tenha arregimentado o desenvolvimento de toda uma metodologia [transcendental] peculiar, centrada em argumentos transcendentais, com o fito de caracterizar um apriorismo racional subjetivo como condições de possibilidade de juízos objetivos. Antes de passarmos as posições interpretativas a respeito da Segunda Analogia da Experiência em Strawson e

do conhecimento de princípios e leis. Através da indução, parte-se de fatos observados ou experimentos para concluir-se a respeito da relação causal que os rege, buscando-lhes a lei, isto é, a relação regular [universal] e necessária entre os fatos, válida [arquitetonicamente] para todos os tempos e lugares. Assim, em conformidade ao que vimos em 1.5, a necessidade do princípio das leis indutivas decorre imediatamente do Princípio da Razão Suficiente. Se acontece algo, sabemos a priori, por força da exigência da própria razão, que deve haver uma causa, embora não possamos saber especificamente esta causa, a qual vai depender de uma verificação empírica. Naturalmente, o Princípio da Razão Suficiente é uma máxima da filosofia do racionalismo, e vimos que Hume o desconsiderou veementemente como mostramos na primeira parte; o que ele fez foi degenerar a causalidade [ou razão suficiente] na indução. De fato, Hume foi categórico ao afirmar que jamais teremos segurança e certeza absoluta de que, a partir de casos observados, a relação induzida seja necessária e universal, visto que não podemos garantir que, em qualquer momento do futuro, não seja possível aparecer alguma ocorrência que contrarie a aludida relação, que será, no máximo, provável. Ora, a Segunda Analogia da Experiência, sequer faz alusão ao termo “provável”! A interposição do provável, ou de causas, com vimos em 1.8, promove um deslocamento no interior da dupla definição de causa habilitando a mente a tomar o partido habitual de indução, e o faz baseado na experiência acumulada da vida comum, e não na razão como sugere a solução kantiana com o seu apriorismo. Face ao exposto, se queremos fazer uma análise crítica a respeito da solução de Kant ao problema de Hume proposto na Segunda Analogia da Experiência, é imperioso expor ao debate a questão que nos acompanha desde a Introdução: a segunda analogia implica a existência e/ou a necessidade das leis causais empíricas? Uma solução para a questão - que colocará Strawson e Allison em pólos metodológicos opostos -, passa pela análise dos argumentos transcendentais no todo da trilogia crítica. M. Niquet, 1991, p.98-100, é da opinião de que, para Kant, conhecimento transcendental é o conhecimento das condições de possibilidade do conhecimento a priori dos objetos, que envolve o próprio argumento transcendental como um procedimento dedutivo, por meio do qual se demonstra a validade objetiva de conceitos e sentenças fundamentais, que por sua vez são condição de possibilidade de conhecimentos empíricos. Margutti Pinto, P.R., 2000, p.24, não vai concordar com isso, uma vez que “não há nada que nos autorize a dizer que uma ligação de impressões sucessivas, quando realizada por funções de síntese localizadas no nível transcendental, é mais eficiente do que uma ligação dessas impressões ao nível do sujeito empírico (...) Deslocando o problema para o nível transcendental, o máximo que Kant consegue é transformar a falácia envolvida pela crítica de Hume (o grifo é nosso) numa falácia transcendental: a aplicação da categoria de causalidade a intuições sucessivas não tem qualquer fundamento no conteúdo das intuições mesmas, e constitui uma imposição das categorias a priori do entendimento a tal conteúdo”. Estes são apenas dois exemplos que mostram o nível controverso da questão: vimos que Hume demonstrara através de juízos de percepção, que uma fundamentação empírica para a ciência [, de Newton, por exemplo,] é impossível, não obstante, contornou a situação pela via da naturalização desses juízos; a crítica transcendental, com a introdução do conceito de objeto e de juízos da experiência, apresenta - como provam os juízos causais da Segunda Analogia da Experiência - uma fundamentação a priori para a ciência, centrando-se na sua possibilidade e não na sua probabilidade. Mas o problema aqui é que Kant identificou a demonstração transcendental com uma demonstração hipotético-dedutiva, não circular, mas que inevitavelmente conduz a um regresso ao infinito, a menos que se considere como ponto essencial o tratamento do “eu penso” como uma entidade estritamente lógica que de forma alguma possa ser confundida com o “eu” do sentido interno e menos ainda com o “eu” substancial como ficará claro em “Do objeto e da referência”.

Allison, supomos ser de bom alvitre, ao menos a título instrumental, desenvolver um pouco essa metodologia, apresentando a temática “Do objeto e da referência” em Kant, como uma decorrência primordial da noção de argumentos transcendentais, de tal maneira que a relação de determinação do universal sobre o particular deve ser considerada como já dada a priori nos fenômenos na medida em que os consideramos objetos no marco de uma experiência possível, isto é, necessária e universal e não contingente e, nesse desiderato, a dimensão determinante desses argumentos não concede nenhum espaço para a reflexão no sentido que será desenvolvido na terceira parte - “Finalidade e Indução” -, onde a inclusão de uma função regulativa à razão parece ser uma prova cabal de que Kant ainda considerava os conteúdos que serão desenvolvidos nesta segunda parte - “Legalidade e Causalidade” -, como um momento não acabado de sua fundamentação do conhecimento teórico. Nestes limites, esta noção ubíqua tem sua origem ao longo do tema da Analítica dos Conceitos e, adquirindo maior expressão na Dedução Transcendental das Categorias, prolonga-se Analítica dos Princípios adentro. A seguir, ao expandir a temática “Do objeto e da referência”, nosso objetivo é insistir na importância dos argumentos transcendentais na filosofia crítica, bem como de requisito prévio à compreensão da análise de Strawson e da réplica de Allison que terão o seu lugar respectivamente em 2.3 e 2.4.