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1. A GÊNESE DO PROBLEMA DE HUME.

1.4 Das relações

No seu Ensaio sobre o entendimento humano, Locke nos explica que a formação do conhecimento humano é um processo de combinação e associação de dados da experiência. Com efeito, inicialmente por meio das sensações recebemos as impressões dos objetos externos, que seriam para ele as idéias simples. Por sua vez, essas idéias simples se associam por semelhanças e diferenças, formando as idéias complexas ou compostas. Por intermédio de novas combinações e associações, essas idéias [complexas] se tornarão mais complexas ainda na razão, formando as chamadas idéias abstratas ou gerais como, entre outras, as de substância, mundo, Deus, etc., bem como as idéias das relações entre essas idéias complexas,

51 É oportuno caracterizar bem a dinâmica que se dá nalguns conceitos sob diferentes pontos de vista. É o que

acontece com o conceito de necessidade sob as óticas do dogmatismo e do empirismo. No dogmatismo havia a concepção de que relações de causa e efeito implicavam não apenas a necessidade física, mas também a necessidade lógica, de modo que seria simplesmente uma contradição algo não esperado na vida comum como, por exemplo, nevar no verão... Não para o empirismo, pois “tudo o que é inteligível e pode ser distintamente concebido está isento de contradição, e não pode ser provado como falso por nenhum argumento demonstrativo ou raciocínio abstrato a priori” (E., IV, XVIII: 65). Na ótica do dogmatismo, a concepção dominante de necessidade lógica tinha por fundamento no mais das vezes a onipotência e onisciência divina como cimento do universo, cuja vontade absoluta isenta de inclinações psicológicas é absolutamente determinada, isto é, opera no campo puramente lógico, independente da experiência, o que por si só já implica essa necessidade lógica. Eis, portanto, a concepção de causalidade operada pelo dogmatismo. Neste sentido, os metafísicos poderiam deduzir [e não investigar] o mundo a partir de uma causa arbitrária e a priori - Deus, ou o princípio sintético da imaginação de necessidade física se transformaria automaticamente numa necessidade lógica ou, de indutivo passaria a dedutivo, inviabilizando qualquer contra-exemplo. É certo que Hume só falou do a priori para distinguir “os objetos da razão ou investigação humana” (E., IV, I: 53), e que quando raciocinamos a priori, na independência de qualquer dado da experiência, qualquer coisa pode parecer produzir qualquer coisa ou ser comparada a qualquer coisa, mas a descoberta do que é causa do que, só a experiência [e não a razão] possibilita efetivamente como probabilidade. Por isso, no caso do racionalismo dogmático, a conjunção sempre vai implicar conexão da mesma forma que possibilidade lógica sempre vai implicar possibilidade real. Estas considerações estão no capítulo final da primeira Investigação, particularmente em E., XII, XXIX: 221.

como as idéias de identidade, causalidade, finalidade, etc. Em acordo com Locke, Hume afirma que entre “os efeitos dessa união ou associação de idéias, nenhum é mais notável que as idéias complexas, que são os objetos comuns de nossos pensamentos e raciocínios” (T., I, I, 4: 37, 7), ou de nossos argumentos em geral como uma forma de obter uma conclusão52 ou um conhecimento a partir de idéias simples ou premissas. Das idéias complexas, divididas em relações, modos e substâncias, nos interessa tematizar apenas as primeiras.

No Tratado, Hume distingue dois sentidos possíveis para o termo “relação”. No primeiro, o termo pode ser usado para designar a qualidade ou qualidades “pela qual duas idéias são conectadas na imaginação, uma delas naturalmente introduzindo a outra” (T., I, I, 5: 37, 1), como já ficou claro na seção “Da conexão ou associação das idéias”. Essas qualidades são, portanto, a semelhança, a contigüidade no tempo ou no espaço e a causalidade, e Hume as denomina de “relações naturais”. Com efeito, no caso das relações naturais, as idéias se conectam entre si por uma força natural (ou tendência) de associação, de modo que uma propende naturalmente ou por costume a evocar a outra como que por um processo de inferência indutivo. Em segundo lugar, há o que Hume chama de “relações filosóficas”, no sentido de que tal relação serve “para designar a circunstância particular na qual, ainda que a união de duas idéias na fantasia seja meramente arbitrária podemos considerar apropriado compará-las” (Ibid) por um processo de inferência analógico (ver 3.2.2) e, em tal comparação, a mente não se encontra impelida por uma tendência de associação a passar de uma idéia a

52 Lato sensu, um argumento é uma conclusão que mantém certas relações com as provas que a confirmam e

evidenciem; mas stricto sensu, argumento é uma coleção de enunciados que se relacionam mutuamente. No primeiro caso, parece que se trata de uma lógica informal [psicológica]; no segundo de uma lógica formal [independente]. Do ponto de vista psicológico o raciocínio é o mesmo que a inferência do ponto de vista lógico. Mas, em qualquer caso, a lógica pode ser caracterizada como uma ciência que estuda princípios e métodos de inferência, tendo como objetivo principal determinar em que condições certas coisas são conseqüência, ou não, de outras, isto é, ela tematiza a relação de dependência entre premissas e conclusão. Uma das características da filosofia de Hume é identificar o raciocínio à inferência, ou seja, a razão teórica humana é reduzida à lógica, isto é, a meras relações de idéias. Para Hume, a “razão [prática] é, e deve ser, apenas a escrava das paixões, e não pode aspirar a outra função além de servir e obedecer a elas” (T., II, III, 3: 451, 4), o que vem a consolidar o que ele estabeleceu na introdução ao Tratado, que a lógica só tem uma finalidade que “é explicar os princípios e operações de nossa faculdade de raciocínio e a natureza de nossas idéias” (T., I, Int.: 21, 5), e isto não a credencia a inferir relações como a causal, já que seu principal argumento contra a explicação da inferência causal como raciocínio [lógico] era que esse tipo de inferência dependia da repetição, e que a faculdade chamada razão é deficiente naquilo que se entende por uma certa sensibilidade à repetição ou, o que é o mesmo, ela apresenta uma certa indiferença ante a experiência repetida. Isto é, a uma certa tendência natural que temos até por uma experiência por certo habitual ou costumeira de concluir com base em argumentos de características assimiláveis aos limites de nosso entendimento. Cadeias silogísticas muito longas ou que ultrapassem os limites de nosso entendimento, evidentemente que não são naturalmente assimiláveis pelos nossos hábitos, já que não são hauridas de experiências repetíveis. Entretanto, devemos ter em mente, acima de tudo, que a operação humeana de descaracterização dos poderes absolutos da razão não constitui um passo em direção ao irracionalismo, mas simplesmente uma identificação dos limites dessa faculdade e do lugar secundário que ela deve ocupar no que toca aos fundamentos de nossa cognição.

outra53, de modo que qualquer parecer conclusivo sobre a questão mencionada no final de 1.3 terá que aguardar o desenvolvimento de nossa terceira parte.

Na seqüência, Hume estabelece que as relações filosóficas podem “ser reduzidas a sete classes gerais” (T., I, I, 5: 38, 2): semelhança, identidade, espaço e tempo, quantidade, qualidade, contrariedade e causalidade, além de alertar que há uma superposição entre as três relações naturais [que são semelhança, espaço e tempo e causalidade] e as relações filosóficas. Vejamos inicialmente a superposição que ocorre no caso da semelhança: toda relação filosófica tem como pressuposto a semelhança, caso contrário não seria relação; isto, entretanto, não implica que esta relação “sempre produza uma conexão ou associação de idéias” (T., I, I, 5: 38, 3), caso em que migraria para a condição de relação natural. De fato, se uma qualidade é comum a um grande número ou mesmo a totalidade dos objetos, “ele não leva a mente diretamente a nenhum deles” (Ibid), impedindo, por conseguinte, que a faculdade da imaginação comece a atuar ao se fixar espontaneamente em algum deles54.

No que toca à superposição que ocorre no caso de contigüidade no tempo ou no espaço, podemos dizer que elas “estão na origem de um número infinito de comparações, tais como distante, contígua, acima, abaixo, antes, depois, etc” (T., I, I, 5: 38, 5) e, ao compararmos duas coisas quaisquer de acordo com essa relação filosófica, não se segue disso que a mente se encontre impulsionada a fazê-lo em virtude da faculdade da imaginação configurando uma qualidade associativa ou relação natural. Em alguns casos ocorre assim, quando, por exemplo, experimentemos duas coisas sempre como contíguas espacial e imediatamente ou como

53 Destacamos nas duas definições de relações, que a relações filosóficas dependem inteiramente da razão; nas

relações naturais há uma contribuição da mente: ela efetua de modo irrefletido, habitual e associativo uma transição de uma idéia a outra. Como vimos, Hume aqui contrapõe claramente as duas funções constitutivas da faculdade da imaginação: no caso das relações naturais, as qualidades constitutivas da imaginação operam de modo ordenado, articulado e espontâneo como um “cimento do universo” que se manifestam nos juízos causais como autêntico entendimento e estão invariavelmente na base da formulação de modelos científicos ditos nomológicos; no caso das relações filosóficas, não operam de modo ordenado as qualidades constitutivas da imaginação, mas são fruto de uma comparação intencional e meramente arbitrária entre dois objetos, que resultam de qualidades triviais da imaginação nominadas de fantasia. Podemos assim reiterar que, as relações naturais são produto das qualidades mais elaboradas e estabelecidas da faculdade de imaginação (ver T., I, IV, 7: 300, 7), que Hume chama de entendimento e que, as relações filosóficas decorrem das qualidades menos elaboradas e estabelecidas da faculdade da imaginação, a fantasia como vimos atrás. Hume ainda acrescenta que comumente a palavra relação é entendida como relação natural e “apenas na filosofia estendemos esse sentido, fazendo-o significar qualquer objeto de comparação que prescinde de um princípio de conexão” (T., I, I, 5: 38, 1).

54 Alguns exemplos clássicos da dubiedade da relação de semelhança, operando ora como relação filosófica, ora

como relação natural facilitam nossa compreensão: a cor vermelha é comum a uma grande variedade de coisas. E podemos comparar arbitrariamente ou agrupar duas ou mais coisas vermelhas. Mas se convidarmos a imaginação a atuar [como relação], ela nem sempre será capaz de associar, isto é, de ir da idéia de uma coisa vermelha A a idéia de uma coisa vermelha B. Por outro lado, todas as coisas líquidas são semelhantes entre si por serem líquidas e podemos comparar uma coisa líquida com outra. Mas a idéia de uma coisa líquida como tal não leva a mente por força da associação a qualquer outra coisa líquida particular, isto é, não é suficiente para disparar a faculdade da imaginação moldando uma relação natural ou migrando de uma analogia a uma indução.

sucedendo sempre imediatamente uma a outra, configurando uma relação natural; em outros casos, isto não acontece e a contigüidade no tempo ou no espaço se apresenta apenas como uma relação filosófica55.

No que diz respeito à superposição que ocorre no caso da relação de causa e efeito, devido a sua importância, Hume esclarece que ela será motivo de tratamento num capítulo à parte: “A relação de causa e efeito é, portanto, a sétima espécie de relação filosófica, além de ser também uma relação natural. A semelhança implicada nessa relação será explicada mais tarde” (T., I, I, 5: 39, 9), o que ocorrerá precisamente na Parte III do Livro I do Tratado, intitulada “Do conhecimento e da probabilidade”. Adiantamos apenas que a causalidade, considerada como relação filosófica, é equivalente a relações de apreensão e reprodução da experiência do tipo das de contigüidade, sucessão temporal e conjunção constante, onde não há nenhuma conexão necessária entre idéias, mas tão somente relações espácio-temporais, sem qualquer contribuição da mente ou das propriedades mais gerais e estabelecidas da imaginação (ver T., I, IV, 7: 300, 7), numa palavra, do segundo princípio da natureza humana. Neste sentido, como relação filosófica, a causalidade a rigor se reduz ao princípio empirista da cópia não proporcionando nenhum fundamento para ir mais além da experiência, isto é, inferindo causas transcendentes dos efeitos observados. Como relação natural, não obstante, ela transcende em certo sentido a observação na medida apenas em que vai além dos casos já observados, embora não além dos eventos observáveis; e isto reitera a possibilidade de uma conexão inseparável entre idéias cujas qualidades associativas “são para nós o cimento do universo” (T., Sinopse: 699, 35). Doravante, ao considerar a causalidade como uma relação, simplificaremos a nomenclatura mencionando apenas causa filosófica [como um raciocínio de finalidade] e causa natural [como um raciocínio de legalidade]56.

Os elementos pesquisados até aqui seguiram basicamente o que foi estabelecido por Hume a partir das Introdução e Parte I do Livro I do Tratado, bem como dos conteúdos

55 Com relação a contigüidade no tempo ou no espaço, repito o exemplo de Hume em T. Sinopse: 699, 35 onde

“quando se menciona St. Denis, a idéia de Paris nos ocorre naturalmente” que configura uma qualidade associativa, portanto uma relação natural. É mais fácil propor uma relação de contigüidade filosófica: a idéia de Bariloche não me faz recordar naturalmente a idéia de Atenas, ainda que eu possa comparar essas duas cidades de um ponto de vista de contigüidade espacial, afirmando, por exemplo, que, em relação a Natal, uma está mais distante que a outra e, evidentemente, o termo “distante”, por si só, configura uma relação filosófica.

56 As duas definições de causa, tanto no Tratado quanto na primeira Investigação, tem sua origem nesta questão.

Utilizaremos causa filosófica no lugar de relações filosóficas de causa e efeito; idem, causa natural para relações naturais de causa e efeito. Esta é a terminologia que Hume vai usar em todas as seções de “Do conhecimento e da probabilidade”, onde ela apresenta o mais detalhadamente possível a doutrina das relações de causa e efeito, e mesmo antecipa a questão em T., I, I, 4: 36, 4 ao colocar que dois “objetos podem ser considerados como estando inseridos nessa relação, seja quando um deles é a causa de qualquer ação ou movimento do outro, seja quando o primeiro é a causa da existência do segundo”. Veremos que a relação causal é a única que permite ir além dos dados imediatos dos sentidos e dos registros da memória, fazendo inferir a existência de algo que não nos é dado “aqui” e “agora”, ou seja, permitindo sua reidentificação.

correlatos contidos na primeira Investigação. A ordem que seguimos procurou evidenciar que partindo de definições e princípios, ele elaborou uma concepção cético-naturalista para a justificação da chamada ciência da natureza humana e, na formação desta, a singularidade decisiva e complementar dos seus princípios organizadores de sua acepção de experiência: o da cópia e o associacionista. Ao destacar a importância contida nessa estrutura adversativa entre ceticismo e naturalismo, mas que atua de modo sincrônico emblematizada pelo termo “relação”, a doutrina humeana parece engajada em tomar o conhecimento em seu significado empírico como equivalente a juízo, ou seja, mantendo o seu sentido lockeano: algo como um aparato proposicional para a percepção de uma relação entre átomos mentais que nos permite ir além dos limites da nossa experiência privada. Os princípios da natureza humana são dessa ordem: afirmá-los pela necessidade de uma intuição racional seria exprimir fatos empíricos como se fossem verdades lógicas; por outro lado, inferi-los na forma de uma prova dedutiva seria incorrer nos riscos do raciocínio abstruso, já apontado como uma desvantagem da metafísica da tradição em relação à vida comum. Disso se segue que os princípios do entendimento humano são de ordem natural, e devem ser investigados como fatos empíricos.

Com efeito, Hume vai defender um ideal de racionalidade indutiva que se definirá dentro dos parâmetros estabelecidos pela ciência da natureza humana. Para ele não há preconceito algum em postular esse novo nicho de atuação da razão, à diferença daquele caracterizado pelo dogmático como uma faculdade de apreender essências: os princípios da natureza humana não são apresentados como uma descrição de mecanismos fundamentais do entendimento e antes, insistimos, são desenvolvidos “ao cultivo da verdadeira metafísica a fim de destruir aquela que é falsa e adulterada” (E., I, XII: 27). O conhecimento e a probabilidade se constituem, em última análise, a partir da idéia complexa de relação e, como veremos, da relação de causa e efeito, que já tivemos oportunidade de introduzir como a mais vivaz dentre as qualidades do princípio de associação de idéias da faculdade da imaginação. Sendo assim, ao tematizar o problema filosófico do conhecimento e da probabilidade, estaremos concomitantemente reproduzindo a mesma trilha teórica explorada pioneiramente por Hume acerca das relações de causa e efeito57. E isto tanto no livro primeiro do Tratado quanto na primeira Investigação.

57 Em várias passagens de Tratado e da primeira Investigação, Hume é testemunha da importância da

causalidade. De fato, “se há alguma relação entre objetos que nos seja importante conhecer perfeitamente, trata- se com certeza da relação de causa e efeito (...) É só por seu intermédio que podemos alcançar alguma garantia relativa a objetos que estão fora do testemunho presente de nossa memória e nossos sentidos. A única utilidade imediata de todas as ciências é ensinar-nos como controlar e regular acontecimentos futuros pelas suas causas; nossos pensamentos e investigações estão, portanto, ocupados a todo instante com essa relação” (E., VII, XXIX: 115). Tal é a gênese do problema de Hume: a reidentificação de particulares num ideal de racionalidade indutivo.