• Nenhum resultado encontrado

4. QUILOMBOS DO VALE DO RIBEIRA

4.3 Da constituição dos bairros negros ao

As pesquisas para compor os relatórios técnicos científicos (RTCs) elaboradas por antropólogas(os) para identificar as comunidades do Vale do Ribeira como remanescentes de

quilombos, encomendadas pelo Itesp, apontam que os diversos bairros rurais negros existentes naquela região se formaram pela libertação ou pelo abandono de pessoas que estavam na condição de escravizadas após a decadência da atividade mineradora, ou pela fixação daquelas pessoas em situação de fuga.

Com o decréscimo das quantidades de ouro de aluvião nos rios da região, em meados do século XVIII, pessoas escravizadas foram alforriadas e entregues à própria sorte. Aconteceu a gradativa saída da população branca da região, ampliando-se cada vez mais as áreas ocupadas pela população negra (AMORIM, 1998, p. 12). Pessoas negras de várias procedências, oriundas das grandes fazendas locais, assentaram-se como camponesas livres em suas terras, dando origem a grande parte dos atuais bairros rurais.

Tanto Ivaporunduva como São Pedro foram focos irradiadores de ocupantes negros(as) transformados(as) em pequenos(as) produtores(as) rurais que, desbravando novos territórios por meio do trabalho, repovoaram a região após o declínio da mineração. As pessoas escravizadas do Vale do Ribeira conseguiram constituir mecanismos capazes de alterar sua condição, inclusive oficialmente, para livres ou libertos(as), o que poderia facilitar suas relações – principalmente comerciais – com a sociedade branca dominante da região (CARVALHO, 2000a, p. 44).

É importante ressaltar que as populações negras nunca estiveram isoladas, encontravam-se inseridas tanto na economia regional quanto no mercado mais amplo, com sua produção agrícola destinada a outras províncias. Pequenos(as) produtores(as) negros(as) que cultivavam gêneros variados para a subsistência e para o mercado regional também estiveram inseridos(as) no ciclo rizicultor, cuja produção estava destinada ao mercado mais amplo. O reconhecimento formal dessas pessoas negras se baseia em sua posição na estrutura social, que as definia como “pequenos produtores” fornecedores de produtos de consumo para as fazendas e participantes da economia local. Como observa Arruda (2003):

Aí foi gestado um genuíno campo negro. Essa rede complexa de relações sociais adquiriu lógica própria, na qual se entrecruzavam interesses, solidariedades, tensões e conflitos. O que denominamos campo negro é essa complexa rede social. Uma rede que podia envolver em determinadas regiões escravistas brasileiras inúmeros movimentos sociais e práticas sócio-econômicas em torno de interesses diversos. (...) O campo negro, construído lentamente, acabou por se tornar palco de luta e solidariedade entre os diversos personagens que vivenciavam o mundo da escravidão. (ARRUDA, 2003, p. 35). Assim, por descendência, com alianças por casamento entre as famílias fundadoras, estabeleceu- se uma sociabilidade formadora e mantenedora dos vários bairros negros do Vale do Ribeira,

cada um com uma identidade específica, mas que apresentam no conjunto uma continuidade histórica e sociocultural (AMORIM, 1998, p. 31).

Ivaporunduva é considerada a comunidade mais antiga, fruto da época da mineração, surgiu como povoado no século XVII, mesmo antes de Xiririca22, com dois irmãos mineradores: Domingos Rodrigues Cunha e Antonio Rodrigues Cunha e um grupo de 10 pessoas escravizadas (AMORIM, 1998b, p. 12). Contam seus moradores que há muito tempo chegou ao lugar uma senhora, Joanna Maria, proprietária de minas e de pessoas na condição de escravizadas. No final da vida, esta senhora doou as terras à igreja e alforriou aquelas pessoas. Com o tempo, Ivaporunduva foi se transformando numa área para onde era atraído “grande contingente de negros livres, libertos e fugidos” (AMORIM, 1998b, p. 16).

Os bairros de São Pedro e Galvão têm como fundador mítico Bernardo Furquim, que teria formado as comunidades de Barra do São Pedro e Lavrinha, atuais Galvão e São Pedro, tendo-se incorporado à malha de relações sociais e de parentesco que já existia entre grupos de famílias negras estabelecidas na área (CARVALHO, 2000b, p. 26).

Bernardo Furquim teria trabalhado na condição de escravo dos doze aos dezoito anos, fugindo em seguida com um pequeno grupo (dois homens e duas mulheres). Teria chegado ao bairro rural de São Pedro, onde já estariam estabelecidos outros moradores. Foi fundamental para a instalação dos fugidos, as informações, ferramentas, mudas, sementes e, mais tarde, mulheres ofertadas pelos grupos já instalados em comunidades próximas (como o quilombo Pedro Cubas). Tais trocas, mais tarde, solidificariam as relações entre os diversos grupos existentes estabelecidos na região. Bernardo Furquim ligou-se a mulheres de diversos lugares e teve 24 filhos com elas. Ele aparece nos relatos como grande empreendedor: montou fábricas de pilar arroz e café, e de aguardente de cana nos locais onde estão situados os dois bairros (CARVALHO, 2000b, p. 24). Nhunguara e André Lopes têm por formação o tronco dos Vieira, o tronco dos Furquim e a história da fuga da Guerra do Paraguai. Vários descendentes dos Vieira referem-se a esses antepassados como os “Paraguaia”. As fugas dos recrutamentos para a composição dos batalhões de combate para a Guerra do Paraguai estão presentes em uma profusão de relatos. Entre as zonas

22 Inicialmente, a povoação que se formou no fim século XVI onde hoje é Eldorado era denominada Xiririca. A

freguesia de Xiririca foi criada em 19 de janeiro de 1763, subordinado ao município de Iguape. Foi elevada à categoria de vila, com a mesma denominação, pela lei nº 28, em 10 de março de 1842, desmembrando-a de Iguape. A lei nº 10, de 24 maio de 1895, elevou-a à condição de cidade. Foi a lei estadual nº 233, de 24 dezembro 1948, que marcou a mudança de nome para Eldorado (BRASIL, 2015e).

de refúgio que acolheram inúmeras fugas está a Caverna do Diabo e vários bairros da região (CARVALHO, 2000a, p. 25). Carvalho informa ainda que:

(...) descendentes de Bernardo Furquim contribuíram de modo importante para a extensão dessa malha. Vemos que uma de suas filhas, Ana Maria Furquim, casou-se com João Faustino Vieira, procedente do Nhunguara e que teria ficado escondido na Caverna do Diabo durante a guerra do Paraguai. Maria Adelaide Pedrosa, uma das moradoras mais velhas de André Lopes, é bisneta de Bernardo; sua mãe, Donária Arcângela Furquim, era filha de Ana Maria Furquim e João Vieira. Domingos Dias Vieira, irmão de João Faustino Vieira, teria sido o descobridor da “gruta”, hoje chamada de Caverna do Diabo. (CARVALHO,2000a, p. 26).

Nhunguara tem como origem a expansão dos núcleos familiares dos bairros negros. A busca de novas terras por parte de famílias estabelecidas em outras comunidades negras seguiu a lógica da expansão territorial na busca de terras férteis para o plantio. À medida em que a região do Vale do Ribeira consolidava-se como centro produtor e exportador de cereais, após o declínio da mineração, os(as) negros(as), transformados(as) em pequenos(as) produtores(as) rurais, desbravaram novos lugares tomados através do trabalho, promovendo um repovoamento da região (TURATTI, 2000, p. 30). Turatti observa ainda que o bairro Sapatu teve sua origem de maneira semelhante, com as alianças de casamento que relacionam os outros bairros: “Um outro filho de João Vieira (André Lopes) e Ana Faustina Furquim (São Pedro), chamado Zeferino Furquim, ter-se-ia fixado antes do final do século XIX, em Sapatu, tendo unido-se a duas mulheres, Paula e Maria”. (TURATTI, 2000, p. 30).

Todos esses ancestrais fundadores dos bairros negros (Bernardo Furquim – São Pedro e Galvão; Faustino Vieira – Nhunguara e André Lopes) foram contemporâneos entre si. Eles desempenharam papel fundamental na constituição e na configuração da economia política desses bairros, pois lideravam a produção e o comércio de consideráveis quantias de produtos da roça, como farinhas de milho, mandioca e aguardente de cana (CARVALHO, 2000a, p. 28).

Além do passado em comum, essas comunidades formadas pelos bairros rurais negros do Vale do rio Ribeira formam uma comunidade num sentido mais amplo, pois além de guardarem um vínculo histórico com os antigos quilombos, mantêm um campo de relações sociais que se constituiu em conjunto com a ocupação territorial no Vale, o que possibilitou sua continuidade:

As comunidades quilombolas sempre se guiaram por um conjunto de regras de herança e de parentesco que proibiam a fragmentação do território comunitário garantiam o seu meio de trabalho, a descendência das famílias e, assim, manter a entidade maior à qual elas pertencem e que lhes confere identidade. (CARVALHO; SCHMITT, 2000, p. 41).