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2. DIREITO À EDUCAÇÃO

2.5 Declaração Mundial sobre Educação para Todos

Um conceito amplo de educação foi explicitado no âmbito internacional pela Declaração Mundial sobre Educação para Todos, em Jomtien, Tailândia, na Conferência Mundial de mesmo nome, em 1990. A declaração inovou ao propor compromissos para promover uma educação em termos

completamente diferentes dos habituais. Ghanem (2004b) ressalta que há pelo menos três “contribuições particularmente incisivas para a revisão das concepções mais difundidas que vêm informando as decisões e as práticas em matéria de educação” (GHANEM, 2004b, p. 20).

Uma primeira contribuição que ele destaca é que a Declaração trouxe para o cenário internacional um conceito amplo de educação básica, que, por muito tempo, esteve confinada à educação “de crianças, escolar e primária”. Especialmente a amplitude do conceito de educação básica adotada em Jomtien consagra a ideia de uma educação que “começa com o nascimento e dura por toda a vida”, além de incluir tanto a educação escolar quanto a não escolar.

Aquele autor observa que uma das consequências práticas que se pode extrair da concepção de educação expressa na Declaração é a de que serviços de diferentes setores “assumam deliberadamente suas funções educativas, sejam os da saúde, os do turismo ou os de transporte”. Essa visão, além de superar a vulgar e enganosa valorização de diplomas e certificados, “conduz à orientação de que o trabalho educativo deve ser também a articulação entre agentes educativos, escolares e não escolares” (GHANEM, 2004b, p. 20).

A segunda contribuição que Ghanem identifica foi o deslocamento que a Declaração Mundial fez do lugar central tradicionalmente ocupado pelo ensino. Em seu lugar, propôs-se a centralidade da aprendizagem. A consequência disso é que:

(...) os sistemas escolares são convencionalmente chamados de sistemas de ensino e estas duas expressões são utilizadas como sinônimas. Talvez não seja sem motivo o fato de não se falar sistema de aprendizagem. Essa centralidade do ensino esteve relacionada à equivocada visão de que ensino e aprendizagem ligam-se linearmente, ou seja, de que a aprendizagem é decorrência do ensino. Embora largamente assimilada, essa ideia não resiste à constatação de que os aprendizados provocados pelo ensino frequentemente não são aqueles esperados por quem ensina. Assim como muitos aprendizados decorrem de situações ou reflexões que não foram provocadas pelo ensino. A implicação mais direta da mudança conceitual é a de que a educação centrada no ensino praticamente só dá importância à aprendizagem que foi intencionalmente estabelecida como meta de quem ensina. Por esse motivo, a educação centrada na aprendizagem precisaria atentar para outros tipos de aprendizagem que possam ser gerados, ainda que não fixados como efeito do ensino. Sistemas de avaliação como o Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica), do Ministério da Educação, não estão direcionados para captar toda a variedade de aprendizagens. Mas, antes que ele seja reorientado, cada docente ou corpo docente pode fazer isso. (GHANEM, 2004b, p. 21).

A terceira contribuição foi a ideia de necessidades básicas de aprendizagem.

(...) esse objetivo se especifica com a afirmação de que “cada pessoa – criança, jovem ou adulto – deve estar em condições de aproveitar as oportunidades educativas voltadas para satisfazer suas necessidades básicas de aprendizagem”. Isso significa que é possível haver práticas educativas nas quais as pessoas não estão em condições de aproveitá-las, assim como se abre a possibilidade de tais práticas não estarem voltadas à satisfação de

necessidades de aprendizagem. Admite-se, portanto, que haja aprendizagem desnecessária. O formato com que foi redigida a Declaração Mundial é um tanto circular: uma educação centrada na aprendizagem, voltada à satisfação de necessidades básicas de aprendizagem. No entanto estabelecer um objetivo com essa perspectiva coloca em questão o que até então se considerava uma meta suficiente: abranger todos os indivíduos com a educação escolar, dando por suposto que isso sempre responderá a necessidades desses indivíduos. (GHANEM, 2004b, p. 21).

Como necessidades básicas de aprendizagem, a Declaração determina que compreendem:

(...) tanto os instrumentos essenciais para a aprendizagem (como a leitura e a escrita, a expressão oral, o cálculo, a solução de problemas), quanto os conteúdos básicos da aprendizagem (como conhecimentos, habilidades, valores e atitudes) necessários para que os seres humanos possam sobreviver, desenvolver plenamente suas potencialidades, viver e trabalhar com dignidade, participar plenamente do desenvolvimento, melhorar a qualidade de vida, tomar decisões fundamentadas e continuar aprendendo. (DECLARAÇÃO, 1991).

Ghanem (2004b) observa ainda que a Declaração faz uma ressalva sobre a amplitude e a maneira de satisfazer as necessidades. E atenta que estas variam segundo o país e a cultura, assim como ao longo do tempo.

Entretanto, embora as proposições de Jomtien apresentem características inovadoras, conforme observa Ghanem (2004b, p. 22), o peso da tradição e a conveniência de interesses podem favorecer uma interpretação mesquinha daquelas contribuições. Ghanem (2004b, p. 22) infere que, com tal tipo de interpretação, a política educacional, compreendida por concepções e práticas educacionais predominantes, é pensada tão somente como política escolar. O funcionamento rotineiro dos sistemas educacionais, assim, é mantido meramente como sistemas escolares, “em persistente isolamento em relação aos demais agentes educativos (visivelmente em relação à família e aos meios de comunicação de massa)” (GHANEM, 2004b, p. 22).

Quanto aos profissionais de educação, Ghanem assinala que “seguem sendo formados prioritariamente para ensinar e não para aprender”. Com este foco em ensinar, que lhes é exigido cotidianamente, “deixam de se constituir como exemplos vivos do que pode significar aprendizagem, educar-se e aproveitar as inúmeras possibilidades de aprendizagem colocadas pelo convívio entre iguais e entre diferentes” (GHANEM, 2004b, p. 22).

Aqueles profissionais, com isso, mantêm-se alheios às necessidades das pessoas, que deveriam ser as referências fundamentais para a elaboração de qualquer atividade com pretensão de educar. Esse fenômeno ocorre em conjunto com as práticas educativas que “continuam partindo principalmente de um conjunto de saberes que se pretende transmitir” (GHANEM, 2004b, p. 22).

Esse autor nota ainda que há uma confusão estabelecida em torno de um “programa oficial” a seguir ou “um currículo” que precisa ser cumprido, crença comum à maioria dos docentes. Ele lembra que os Parâmetros Curriculares Nacionais “foram lançados com a liberdade de cada docente ou corpo docente de um estabelecimento utilizá-los conforme seu arbítrio, inclusive não utilizá-los”. Porém, as orientações facultativas contidas nos parâmetros foram interpretadas como “conteúdos curriculares mínimos” presumivelmente sob o efeito da persistência da tradição e mesmo o Plano Nacional de Educação (Lei nº 10.172-2001), continua o autor, “estabelece um prazo para os projetos pedagógicos das escolas serem formulados segundo esses parâmetros” (GHANEM, 2004b, p. 22).

O raciocínio é conduzido a um problema fundamental: “Se responder às necessidades das pessoas implicadas nas práticas educativas deve ser a orientação seguida por estas mesmas práticas, como definir tais necessidades?” (GHANEM, 2004b, p. 22). Ele alerta, num primeiro momento, que o modo de identificação daquelas necessidades depende de quem as explicita. Observa que, no modelo tradicional de escolarização, “essas necessidades são presumidas e os professores que implementam diariamente a educação nem sequer decidem como responder a elas”. Os conteúdos a transmitir, considerados essenciais, são elaborados por especialistas. Com o tempo, perde-se de vista “quem foram os especialistas que fizeram parte daquele grupo e que critérios orientaram suas escolhas e decisões” (GHANEM, 2004b, p. 22).

De maneira diferente, tomadas como base aquelas novas proposições, estudantes e docentes explicitariam as necessidades e priorizariam as que seriam enfrentadas. Essa tarefa se constitui como parte das atividades educativas e como referência para criá-las. Sobre isso, aquele autor assevera: “sim, criação, não aplicação de procedimentos estabelecidos”. Ghanem faz uma ressalva no sentido de que aquele procedimento não deveria ser protagonizado apenas por estudantes, “porque a tendência é a de que o fizessem sem o distanciamento que os levasse a estranhar aquilo que já se sedimentou como natural” (GHANEM, 2004b, p. 22). Igualmente, a definição das necessidades não pode ficar sob responsabilidade de docentes isoladamente. O autor acredita que sozinhos docentes tendem a realizar aquela definição “segundo suas preferências e sua ignorância quanto às condições em que vivem os educandos e, principalmente, sua ignorância a respeito da percepção destes sobre suas próprias vidas” (GHANEM, 2004b, p. 22).

Ele propõe ainda que, para a expressão “necessidade básicas”, deve-se conferir um significado bastante amplo, “abarcando nestas tanto as necessidades locais, referidas a comunidades muito circunscritas, quanto as globais, que remetem ao conjunto da humanidade”. Isso para evitar confusões a que a palavra “básicas” pode induzir, numa educação suscitada como “atuação em resposta às necessidades das populações às quais se dirige”. O autor segue especificando essa ideia de necessidades básicas:

(...) estariam incluídas necessidades individuais tanto quanto coletivas. E necessidades materiais, tanto quanto as não materiais. Trata-se de habitação saudável para moradores de favelas, ou de um mercado internacional regulado e equilibrado. Cabem os problemas da afetividade entre uma criança e sua mãe, assim como os de eficiência do transporte urbano. Dizem respeito à alimentação assim como à produção científica ou artística. (GHANEM, 2004b, p. 23).

O autor aponta o que considera outra consequência inovadora decorrente daquelas proposições. Essa seria a orientação de que a prática educativa seja prática no sentido de se constituir numa ação conjunta de docentes e estudantes, “uma intervenção pactuada em certos aspectos da realidade de que ambos fazem parte”. Assim, isso implicaria uma “abordagem coletiva, racional e negociada sobre o que será enfrentado e as formas pelas quais isso será feito” (GHANEM, 2004b, p. 23).

Dessa maneira, a aprendizagem não será exatamente a finalidade da prática educativa. Será, antes, um produto da intervenção. Assim, o autor aduz a uma concepção de educação realizada como ato político, “conforme sempre insistiu Paulo Freire”. “Um ato político porque não se bastaria a viabilizar o conhecimento sobre este ou aquele fato, mas porque, sendo uma intervenção que visa responder a necessidades, deparar-se-á com as relações de dominação que geram ou acentuam muitas dessas necessidades” (GHANEM, 2004b, p. 23).

Dentre as muitas necessidades a ser consideradas e priorizadas com esse enfoque, o autor observa também que terão de ser modificadas as relações e condições de trabalho docente. Esse desafio é colocado para educadores profissionais na configuração de esforços com os outros educadores, não profissionais, no sentido de redefinirem os papéis e modos de atuar de docentes.

Essas relações e condições de trabalho não serão alteradas se esse não for o objetivo de uma ampla movimentação, levada adiante por uma aliança sólida entre educadores, educandos e pelos familiares destes. O primeiro passo para isso é querer escutar os colegas, animar os possíveis aliados e sinceramente querer escutar a todos, levando em conta seus pontos de vista e sugestões. Sem isso, as necessidades, que seriam o ponto de partida das práticas educacionais, continuarão sendo sempre imaginadas pelos educadores e nunca definidas em conjunto, a cada momento. (GHANEM, 2004b, p. 23).