• Nenhum resultado encontrado

Da infância à juventude: trajectórias de vida dos jovens

METODOLOGIA E CARACTERIZAÇÃO DOS SUJEITOS

PERCURSOS DE VIDA DE JOVENS UNIVERSITÁRIOS DE BENGUELA

1. Da infância à juventude: trajectórias de vida dos jovens

 Na urbe e no subúrbio: vivências cruzadas, múltiplas infâncias

Muitos dos sujeitos deste estudo nasceram e cresceram nos municípios de Benguela, Lobito, Balombo e Catumbela. Outros passaram a sua infância e adolescência noutras localidades do país, designadamente nas províncias de Huambo, Luanda, Uíge, Cabinda, Lunda-Norte e Namibe. A maioria nasceu em zonas suburbanas e continua a viver lá até hoje. As suas infâncias foram vividas das mais variadas formas, apesar de pertencerem a uma geração cujas datas de nascimento localizam-se entre os anos de 1980 e 1998. Um ambiente típico de bairro revive na memória de rapazes e raparigas, cujas brincadeiras de infância, invariavelmente, eram consoantes as condições do meio que os rodeiava e ao contexto socioeconómico das famílias.

Para a nossa análise, sintetizamos cinco categorias de localidades, designadamente Benguela, Catumbela, Lobito, Balombo e Outras. (Gráfico 3). A última categoria inclui os indivíduos cujas infâncias e adolescências tiveram lugar noutras localidades do país atrás apontadas.

109

Gráfico 3 – Sujeitos por localização territorial na infância e adolescência (%) Do gráfico acima exposto, observa-se que Benguela e Lobito acolheram dois terços dos sujeitos, na infância e adolescência, enquanto 16% passaram esta fase de vida noutros pontos do país. A maioria dos sujeitos viveu em zonas suburbanas, sendo que apenas perto de um terço viveu na urbe, maioritariamente do sexo feminino.

A localização territorial dos sujeitos, tanto na infância como na juventude, encerra um conjunto de valores entranhados na sua personalidade actual. Tanto a «cidade» como o «bairro» encerram factos eternizados na memória de cada indivíduo.

Para a maioria residente no subúrbio, este representa o simbolismo transcendental que legitima a sua existência na sociedade. Américo (23 anos), por exemplo, exprime com orgulho: "Eu vivo aqui desde que eu nasci, eu nunca mudei de residência". No mesmo diapasão, Anastácia, de 22 anos, refere que a sua zona "é um bairro calmo, estou já familiarizada por ter nascido e passar quase toda a minha vida lá". Estas declarações são uma espécie de «amor à pátria», uma identidade enraizada no íntimo do jovem para com a zona que o viu nascer e crescer.

Porém, não se trata apenas de amor a um espaço geográfico, a pré-disposição e a tonalidade com que se fazem tais declarações sugerem algo mais que um mero gosto pela geografia do meio físico. É também uma espécie de voto social de congratulação para com as gentes que, na simplicidade, partilham afectos ao longo do tempo, aconchegando os mais novos e contrariando a lógica da indiferença, do individualismo e do isolacionismo que envolve os centros urbanos. Esta perspectiva pode ser lida na

34% 7% 41% 2% 16% Benguela Catumbela Lobito Balombo Outras

110

afirmação de Tadeu (22 anos), que diz que vive num "bairro muito bom, é um bairro onde encontramos uma população muito acolhedora, pessoas humildes".

Para muitos casos, o acolhimento e a humildade enfatizados têm que ver com as relações sociais estabelecidas no seio da vizinhança, mais propriamente a responsabilidade com que os adultos encaravam e assumiam o papel de instruir os mais jovens a terem boas condutas, independentemente do grau de afinidade existente. Por exemplo, o facto de Marta (21 anos) valorizar que "é um bairro também muito conservador, as crianças têm se guiado bem", espelha bem o quanto na visão de jovens a salvaguarda da educação dos mais novos era uma incumbência da comunidade e não apenas uma responsabilidade da família. Aqui, o bairro é entendido não apenas na sua dimensão espacial, mas também na sua dimensão social, afigurando-se como depositário de valores que eram transmitidos às novas gerações.

Por outro lado, tinha-se uma imagem positiva das zonas urbanas, por serem urbanizadas e mais organizadas, aspectos de que careciam os subúrbios: “não havia assim organização das residências, as ruas eram assim todas esburacadas”, refere Domininiano (23 anos). Para os moradores suburbanos, a cidade diferenciava-se quer pela disponibilidade de equipamentos sociais quer pelo saneamento e ritmo de vida relativamente mais acelerado em relação aos subúrbios. Emergia uma espécie de conformismo com a situação existente na época e que, para algumas zonas suburbanas, continua a ser realidade até hoje:

"Uma zona suburbana não tem asfalto. Anteriormente havia mas hoje já não há. Então, durante a minha infância não pude ver esse asfalto, mas aguentamos. No tempo de chuva é uma zona crítica, em que se dificulta o acesso, a locomoção. Mas vamos aguentando" (Veríssimo, 28 anos)

Não se registou um discurso de exaltação ou expressão de orgulho da zona urbana, entre os poucos entrevistados que viveram sempre aí. Contudo, para quem um dia foi forçado a deixar a casa de renda com a família na zona urbana e se mudar para subúrbio, é clara a distinção entre a anterior e a posterior realidade de vida. É o caso de Cláudia (21 anos) que, ao comentar a assimetria entre as duas zonas, disse que o anterior local de residência era "mais movimentado e que a socialização era enorme comparado com o bairro da Graça e, concretamente aqui nas novas construções, é um ambiente muito calmo, não tem muita vizinhança, o movimento não é aquele."

111

Não é só por isso que, aos olhos dos jovens, ambas as realidades residenciais se mostraram distintas ao longo de sua infância. Viver a infância no centro ou na periferia da cidade representou também para os sujeitos uma partição nos modos com que uma mesma geração infantil se apresentava na sociedade. Para eles ser criança da cidade não era o mesmo que sê-lo no bairro. As clivagens existentes a este nível, potenciadas pelas condições que cada um dessas unidades sociodemográficas dispunha para a satisfação das necessidades dos pequenos, interferiram no modo como se organizava o entretenimento na zona urbana ou no subúrbio.

Uns reproduzem o discurso citadino de que se vivia numa zona que "reunia condições mínimas", com "parque" para levar a cabo diversões de vários tipos (Yanilsa, 30 anos). Outros referem a exiguidade ou mesmo a inexistência desses equipamentos na periferia. A isto acrescia-se outras limitações materiais pois não era igual a situação das famílias do meio urbano em relação às do subúrbio. Como referiu Sandra Roque (2011),

“Symbolically cidade is associated with the urbanised, order, the rationality of the urban plan – cidade is the „urbanised place‟. Cidade is also associated with access to „material development‟ (access to piped water, electricity, schools) and to evolução and avanço – that is, to what I call „ontological development‟. Bairro, by contrast, is associated with sub-urbanised, disorder, the absence of material development, poverty, atraso. Because of their symbolic power, these categories draw behind them other sets of associations that also have a classificatory function” (2011:346).

De facto, a imagem de cidade como um local materialmente rico e organizado e do bairro como um local empobrecido e caótico imperou e continua a imperar na memória das pessoas em muitos pontos do país, cujos efeitos se reflectem no seu auto- conceito. No seu trabalho etnográfico em bairros de Benguela, Sandra Roque destaca essa valorização do que é da cidade e a desvalorização do que é do subúrbio:

Objects, practices and people associated with cidade become valued as a result. The historically constructed symbolic power of cidade leads to perceptions that social life associated with cidade is superior, advanced, evoluído. It is as though there could be „ways of living‟ (what one does for a living, what one wears clothing, the food one eats, how one moves) that, because they are perceived as being the „ways of the cidade‟, are also perceived as being superior. The life of the cidade is held to be the proper life, the form of life that has value and is valued. And where cidade has positive symbolic power, bairro lays over the objects and practices with which it is associated a veil of lesser value (Roque, 2012:346).

112

Assim, para os sujeitos, a vivência na cidade era sinónimo de avanço, superioridade, boa apresentação, riqueza, ordem, urbanidade, etc., enquanto a vida nos subúrbios simbolizava o contrário. Em certa medida, isto condizia (e ainda condiz) com as reais condições urbanísticas e de vida da maioria das populações residentes. As cidades colocavam-se ao nível da razoabilidade material e os subúrbios ao nível da precariedade. Como referem Fernandes e Mata (2015), “a categoria «cidade» está associada ao que é urbano, à ordem, e as categorias «bairro», «musseque», «favela», «cite», «ghetto», estão associadas ao suburbano, à desordem, à exclusão, mesmo ao criminogéneo – como que se a urbe projectasse para os seus limiares as zonas onde se gerariam e concentrariam os problemas” (p. 6).

Tudo isto se reflecte nos modos como as populações suburbanas viviam e na forma como encravam as suas vivências. Grande parte das famílias nos subúrbios não dispunha de meios suficientes para satisfazer as necessidades dos filhos: "O meu pai não tinha assim muita capacidade financeira, a maioria das crianças que encontrei no bairro naquela altura tinha brinquedos, nós chamávamos brinquedos caros e luxuosos. E eu não tive esse previlegio" (Dominiano, 23 anos).

Como se pode ver nas palavras de Dominiano, a privação de meios para levar-se a cabo uma infância normal marca psicologicamente quem se sentia excluído das dinâmicas sociais inerentes à sua idade. Agravado pelo contexto de guerra que se vivia no país, a situação depauperante existente na altura levou mesmo a que muitos considerassem um «luxo» ter, por exemplo, um conjunto de bens ou serviços sociais básicos, como a água na torneira, uma lâmpada acesa em casa, comer macarrão, calçar um ténis, beber um refrigerante ou dar um brinquedo de plástico ao filho para brincar. Presume-se que haja ainda centenas ou milhares de famílias em Angola que considerem estes bens como raros e caros, tendo presente o recente Censo no país (INE, 2016).

Embora os subúrbios vivessem as maiores carências, na época de infância dos sujeitos as dificuldades eram praticamente extensivas à toda sociedade angolana, incluindo as zonas urbanas. O depoimento de Tchingue é esclarecedor quanto à sofrível realidade de muitos jovens enquanto crianças e adolescentes:

"Pessoalmente tive uma infância dura partindo do pressuposto de que dificilmente tínhamos água canalizada, dificilmente tínhamos energia eléctrica, e, é engraçado porque, apesar dessas dificuldades, pessoas com índice elevado de inteligência saiam ainda das periferias. E isto é para ver até que ponto eram

113

difíceis os nossos estudos. Estudávamos à luz de candeeiro, e hoje vendo admiramos como é que não adoecemos. Pronto, por estarmos na altura inocentes dessa realidade, dizemos que tivemos uma infância boa, mas agora que estamos conscientes, olhamos para atrás, só Deus! (Tchingue, 30 anos)

Entretanto, podemos igualmente identificar no depoimento uma atitude de resiliência dessas crianças e adolescentes que não desvaneceram perante as adversidades com que se depararam nos seus quotidianos. Diante desta realidade, esses informantes tiveram de recriar maneiras com vista a satisfazer um dos bens mais preciosos para uma criança: as brincadeiras. Kutala, de 24 anos, recorda: "na zona em que vivi não tínhamos parque de divertimento, criávamos as nossas próprias brincadeiras, tais como «leitinho», «jardineiro». Tínhamos várias brincadeiras".

O testemunho é corroborado por outros jovens:

"Parque de diversão não tínhamos. As brincadeiras eram feitas de nossas invenções, fazíamos carros de lata, brincávamos com barro, construíamos casas de barro, yeah, feito de argilas, e é mais brincadeiras de invenções. Tem a ver com fazer os nossos próprios brinquedos. Não tínhamos nada disso de parque, não tinha nada disso" (Dumbo, 23 anos);

"Espaços adequados para diversão não havia. Aquilo era desenrascar, criávamos espaços para brincar, muitas vezes era perto de lixo. Era recolher coisas no lixo para as nossas próprias brincadeiras, o que não era saudável" (Cambovo, 24 anos);

"Íamos à cerâmica, a gente ia buscar barro, com carros aquelas latas, então entrávamos quase nas valas todas, miúdos sem noção dos riscos que corríamos na altura" (Amarildo, 22 anos).

Assim, a carência de meios levou os jovens a criarem os seus próprios cenários e instrumentos de entretenimento, muitas vezes nocivos à sua saúde, como ficou expresso nas citações anteriores. O génio inventivo infantil teve de emergir em algum momento e estender-se do subúrbio ao meio urbano, num processo de produção e reprodução de brincadeiras e brinquedos rústicos que se transmitia na convivência entre pares ou ainda em forma de legado dos mais crescidos aos mais novos.

Evangelista, 23 anos, relembra com nostalgia a sua infância: "tenho boas memórias porque foi um sítio de lazer. Tinha um campo para jogar, tinha um sítio para escorregar, tinha um sitio, conforme dizemos na gíria, para fazer «capacaio» [papagaio], íamos nos capins, naquela zona das salinas tinha capim, as vezes montar «pino», brincar de «troti»". Apesar das limitações descritas, uma parte considerável de

114

jovens considera ter tido uma trajectória infantil digna de realce, com a multiplicidade de escolhas próprias dessa fase em que os mais jovens tentavam fazer quase tudo:

"Eu tenho memórias bem lúcidas, brinquei muito ao lado dos meus pais, brinquei muito. Brincar de «esconde-esconde», «garrafinha» e «zera»"

(Cláudia, 21 anos);

"O tempo que eu vivi a minha infância até a adolescência foi bué fixe, porque

havia possibilidade de tentar quase tudo. (…). Íamos à igreja enquanto mais novos. Depois dei uma pausa de ir à igreja começo a frequentar festas, tipo inserir-se nos grupos, praticar desporto, ou seja, futebol, basquetebol, e também dança. E aquela vaidade de querer namorar, mas és adolescente né” (Amândio, 26 anos).

Entretanto, como apontam os estudos contemporâneos sobre as transições juvenis bem como as diferenciações de cursos de vida já enfatizadas, reforça-se a ideia de uma permanente relativização da pretensa homogeneidade deste grupo etário. A heterogeneidade é cada vez mais um aspecto a ter em conta na interpretação desta fase de vida, como veremos com alguns testemunhos de uma infância perturbada.

 Infâncias em contextos de guerra e de paz: marcas e resiliência

Se para alguns jovens a infância e a adolescência representaram alguma felicidade, para outros foram vividas de uma forma dramática, cujas marcas remanescem nas suas memórias. Várias razões concorreram para o drama de alguns jovens na infância. O contexto de guerra que assolou o país constituiu um dos principais motivos para que muitos vissem a sua infância adiada e, em alguns casos, antecipassem a vida adulta. À memória de alguns jovens ainda vêm à tona episódios dramáticos vivenciados durante a guerra:

"Não foi tão fácil porque de princípio é que depois dos seis ou sete anos, aquela coisa toda, eu tinha que se familiarizar com aquele ambiente de conflito. (…). As pessoas tinham que se mudar daqui para lá. Ainda bem me lembro nós tínhamos que sair do Balombo por via aérea, tínhamos de andar de helicóptero. Transportavam pessoas de lá para aqui. A minha infância não foi assim tão agradável, tão agradável que eu poderia me desfrutar tendo em conta os meus direitos de criança. Não foi assim porque o conflito influenciou" (Abelardo, 24 anos);

“Nasci no Kwanza Sul, cresci no Uíge e estou a viver aqui desde 2003. Lá fiquei seis anos sem estudar. Estudei apenas a primeira e a segunda. Depois tive que cortar os estudos por causa da guerra. Nos levaram para as matas, epa, por aí fora. Yeah, isso é algo que marcou muito porque quando eu

115

cheguei aqui crianças que tinham doze, treze anos já estavam a fazer a 7ª (classe), enquanto eu estava a fazer ainda a quinta. Isso marcou-me um pouquinho, mas consegui ultrapassar” (Catarina, 29 anos).

Estes relatos espelham o drama de milhares de jovens, cujas infâncias foram directamente afectadas pela guerra. Mas também revelam a resiliência dos mesmos face às adversidades que, em algum período da história do país, subtraiu-os o desejável para uma infância feliz. Mesmo em zonas do país, em que a incidência directa da guerra foi mínima, como as localidades do litoral, os reflexos do conflito inscreveram-se no quotidiano das populações, incluindo crianças. Na sua inocência e criatividade, estas muitas vezes chegavam a reproduzir cenas do ambiente bélico então prevalecente.

As brincadeiras e brinquedos eram diferentes, mas também eram práticas comuns aos distintos grupos infantis que na diversidade procuravam trilhar o caminho da infância para a juventude, quer na zona urbana quer na zona suburbana. Assim, dispunham de diferentes modos de ser criança e adolescente, num contexto de carências e necessidades de um país confrontado com o conflito armado que só viria terminar definitivamente, em 2002.

A partir de 2002, abre-se um novo período na vida dos sujeitos. Nesta data, a idade dos mais velhos do intervalo etário fixado neste estudo rondaria aos 22 anos, enquanto os mais novos preparavam-se para ingressar no pré-escolar. Isto significa que, estes últimos com quatro ou cinco anos de idade na altura, acabariam por passar grande parte de suas trajectórias até à juventude em ambiente de paz vigente no país.

O facto de uma parte dos jovens ter passado a infância num contexto de guerra, e a outra parte, em contexto de paz, é um dos aspectos fundamentais para se pensar na heterogeneidade do grupo, mesmo que pertençam numa única classe etária. Se os efeitos do conflito armado estão, de certo modo, ainda presentes no tecido social e económico angolano, em nada se parece com o anterior contexto do trovar de canhões, privação de livre circulação pelo país, vivência diária com o terror do medo e da insegurança, mortes, mutilações e destruições, o drama do êxodo massivo de populações de uma localidade para outra em busca de abrigo seguro ou uma oportunidade de vida.

A paz instaurada no país em 2002 coincide com o início da etapa juvenil, para os sujeitos mais velhos do grupo, e o decurso da infância, para os mais novos. Em ambas as situações, este período seria vivido com alguma tranquilidade, melhoria das condições

116

socioeconómicas das famílias, (re)construção de importantes infra-estruturas sociais e normalização da vida das populações no país.

Assim, a infância dos jovens em Angola foi marcada por várias vivências e experiências. Enquanto crianças e adolescentes, as suas trajectórias de vida foram construídas num contexto de guerra e, a partir de 2002, numa fase de restauração das esperanças em virtude de o país ter alcançado a paz. Foi nestes contextos em que a sociedade e a família criaram as possíveis condições sociais para o desenvolvimento pessoal da nova geração.

Aspectos comuns e singulares marcaram os trajectos de vida dos sujeitos. Das suas narrativas emerge uma diversidade de infâncias, embora confinadas numa única geração etária nascida entre 1980 e 1998. A conjuntura vigente ao longo de sua trajectória foi determinante quanto à oferta ou à privação de condições sociais para que os indivíduos pudessem se desenvolver no seio das famílias e da sociedade. O curso do tempo, a partir do calar das armas no país, permitiu o suprimento gradual de necessidades indispensáveis ao normal desenvolvimento da infância.

A posição social e a localização territorial das famílias ditaram em grande medida o que os indivíduos tiveram de favorável ou de desfavorável enquanto mais novos. Como vimos, uma infância razoável, que incluía uma minoria de crianças e adolescentes, esteve ligada ao facto de residir no litoral, mais evoluído e seguro, ou em zonas urbanas com o mínimo de ordenamento, saneamento básico e equipamentos sociais (Raposo & Salvador, 2013). Além disso, esteve associado à pertença a famílias com algumas regalias, ligadas a funcionários ou responsáveis do aparelho administrativo do Estado ou de uma instituição/empresa de importância estratégica.

Contrariamente, uma infância remediada ou „desenrascada‟, onde se incluem a maioria de sujeitos, esteve associada à vivência no interior, em meio rural, em muitos casos tidos como locais pouco evoluídos e inseguros, ou em zonas suburbanas, muitas vezes desordenadas, com défice de saneamento básico e de equipamentos sociais (Tufte, 1998:16; Roque, 2011). O facto de se ser filho de um funcionário comum, de um operário, de um camponês, de um desempregado ou de um trabalhador informal foi