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3. Tópicos Selecionados em Justiça Distributiva

3.1 Da Lei Mosaica ao Iluminismo

“Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia?” Santo Agostinho A religião judaico-cristã e o pensamento grego-romano formam as bases da civilização ocidental, e para entendermos as questões contemporâneas sobre justiça distributiva precisamos estudar como este conceito se desenvolveu do mundo antigo até hoje.

No antigo Oriente Médio, governantes sumérios, babilônios, assírios e persas, entre outros, compilavam e publicavam códigos legais preocupados com a justiça e valores religiosos. A lei de talião, “olho por olho, dente por dente”, tinha entre seus objetivos proteger o homem livre pobre do nobre, ao proibir que se tomasse uma vida por um olho, ou que o nobre pagasse em dinheiro por crimes cometidos. O código da bíblia israelita, principalmente o Livro das Alianças, se baseia nos códigos legais existentes na época, adaptado às características peculiares da religião israelita5, tendo, especialmente a legislação social deuteronômica, um forte caráter humanitário. A lei bíblica, embasada no princípio da santidade da pessoa, não permite que crimes contra a propriedade sejam punidos com a pena capital. Mesmo os escravos hebreus deveriam ser libertados após sete anos, e ainda deveriam receber recursos para seu sustento. No entanto, não há evidências históricas que estes preceitos humanitários fossem sempre seguidos na prática. Outra preocupação da lei do Torah é proteger o pobre, a viúva, o órfão e o estrangeiro. O pobre poderia comer o que brotasse espontaneamente da terra no ano em que o solo deve descansar: “Durante seis anos, semearás a terra, mas no sétimo a deixarás repousar, e os pobres de seu povo comerão o seu produto. Farás o mesmo com tua vinha e o teu olival” (Ex. 23:10a, 11b). Os pobres deveriam ser cuidados e suas dívidas perdoadas a cada sete anos (Dt. 15:1-11). A sobra das colheitas deveria ficar para os pobres: “Quando segares a messe no teu campo e deixares por

esquecimento algum feixe, não voltarás para levá-lo. Deixa-lo-ás para o estrangeiro, o órfão e a viúva” (Dt. 24: 19).

Após o Pentateuco, na segunda parte da bíblia israelita os profetas também protegem os destituídos. Amós condena duramente os que oprimem os fracos e maltratam os pobres, e dá um valor inédito à justiça social na determinação do destino da nação israelita (Am. 4: 1; 2: 6-7; 3: 10). Igualmente Isaias busca justiça para com o pobre ao afirmar: “julgará os fracos com equidade, fará justiça aos pobres da terra” (Is. 11: 4a) ou ao prescrever “romper as cadeias injustas, desatar as cordas do jugo, repartir seu alimento com o esfaimado, dar abrigo aos infelizes sem asilo” (Is. 58: 6a, 7a). No entanto, esta preocupação com o pobre demonstra o cuidado para com sua subsistência e para que ele receba justiça, que na sinonímia poder político e riqueza, era controlada pelos ricos. Não se propõe a erradicação da pobreza, nem se entende que isto seja possível: “nunca faltarão pobres na terra” (Dt 15: 11a).

O Novo Testamento cristão segue a mesma preocupação humanitária da bíblia israelita. Jesus convive com os pobres, e seus apóstolos criam comunidades em que tudo era colocado em comum, eliminando a propriedade privada, e desenvolvendo, com outros grupos judeus da época, uma experiência pioneira comunista, no sentido primeiro da palavra: “ninguém dizia que eram suas as coisas que possuía, mas tudo entre eles era comum. Repartia-se então a cada um deles conforme a sua necessidade” (At. 4: 32b, 35b). No cristianismo a preocupação existe para com o pobre, que deve ser cuidado, e para com o rico, que deve ser salvo. A problemática desta salvação, algo mais difícil que um camelo passar pelo buraco de uma agulha6, está na colocação, por pare do rico, de sua atenção nos bens materiais, substituindo o verdadeiro Deus pela riqueza: “não podeis servir a Deus e à riqueza” (Mt. 6: 24b). Também não está nos planos expostos na bíblia cristã a eliminação da pobreza: “pobres vós tereis sempre convosco” (Mt. 26: 11a). Os bens materiais, tanto no cristianismo primitivo, como no catolicismo hoje, são meios para a salvação da alma, e não fins em si próprios. As comunidades monásticas que se seguiram não buscavam eliminar a pobreza, ou repartir os bens materiais, e sim viverem na pobreza para terem melhor condição de adorar a Deus, com menos preocupações materiais. Outras ordens que surgiram mais tardes, desde os franciscanos no século XII, até os padres operários no século XX, oferecem grande solidariedade para com os pobres, mas não planos para eliminação da pobreza.

6 Há uma discussão entre os exegetas do significado desta afirmação. Para alguns, agulha é o nome de uma porta estreita na muralha de Jerusalém, para outros, é que a palavra camelo deveria ter sido traduzida por um fio grosso. De toda forma, esta asserção é vital na formação da consciência ocidental quanto à injusta distribuição de bens. O importante é que o evangelho cristão não exclui o rico da salvação, mas alerta fortemente a todos contra o perigo da excessiva preocupação com os bens materiais: “pois que aproveitará ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a sua alma?” (Mc. 8: 36).

A Revolução Industrial causou uma profunda alteração nas estruturas sociais, e uma nova relação entre capital e trabalho, que causou o surgimento de imensas massas operárias depauperadas. A atividade caritativa da igreja começa a ser questionada, e logo se conclui que, mais do que caridade é necessário justiça na distribuição de bens. Este questionamento, iniciado pelo pensamento marxista, acaba sendo encampado pela própria doutrina social da Igreja Católica a partir da encíclica Rerum Novarum de Leão XIII, em 1891. Desta forma, estas duas doutrinas opostas, marxismo e cristianismo, concordam que a caridade não pode mais ser aceita como uma forma de se subtrair à justiça, permitindo aos ricos apaziguarem sua consciência enquanto espoliam os pobres. No entanto, este período histórico assiste não só ao surgimento de uma nova ordem social, como também a um novo ordenamento político, com a separação entre Estado e Igreja. Esta continua atuando na formação ética dos cidadãos, buscando influenciar os que exercem cargos públicos por meio da promoção dos valores morais na consciência dos que servem na política. No entanto, a justiça social passa a ser uma função do Estado, e a atividade caritativa da Igreja atende somente a casos particulares. Em sua primeira encíclica, Deus Caritas Est, o papa Bento XVI afirma: “A justa ordem da sociedade e do Estado é dever central da política. Um Estado que não se regesse segunda a justiça reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrões, como disse Santo Agostinho uma vez: “Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia?”. ( ) A justiça é o objetivo e, conseqüentemente, também a medida intrínseca de toda política. ( ) Isto significa que a construção de um ordenamento social e estatal justo, pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete, é um dever fundamental que deve enfrentar de novo cada geração. Tratando-se de uma tarefa política, não pode ser encargo imediato da Igreja” (p. 46s, 49).

Voltando ao mundo antigo, e ao berço da formação do pensar contemporâneo, mais preocupado com a harmonia social do que com a vida espiritual está Platão. Na República, Platão idealiza uma comunidade na qual os governantes não possuem propriedade privada, que causa dissenso entre as pessoas, e as impede de trabalhar para o bem comum. Como a propriedade privada é um importante incentivo para as pessoas, ela é aceita na classe dos trabalhadores e nas classes mais baixas. Para o bem-estar social, e para manter a estrutura social coesa, ele prega que não exista grande desigualdade entre as classes que compõe a república. Para Platão, a desigualdade gera violência e diminui o sentimento de integração entre os membros de uma comunidade.

Os dois principais pilares que formam o pensamento do mundo moderno ocidental começam a se fundir durante a Idade Média. Tomás de Aquino propõe que o direito à propriedade privada deva estar sujeito a obrigações quanto à subsistência dos pobres. Na

Suma Teológica, afirma que uma pessoa com a vida em risco não é obrigada a respeitar a propriedade de outro. Alguém desfalecendo devido à fome pode comer as frutas de um pomar privado sem que isso constitua furto. No entanto o autor defende a propriedade privada e afirma ser o furto um pecado mortal. Aquino, usando argumentos originados de Aristóteles e da bíblia, afirma que todas as coisas materiais pertencem a Deus, que nos concede um natural domínio sobre todos estes bens, e com isso o direito à propriedade. Somente a extrema necessidade se contrapõe a este direito, permanecendo o enfoque de proteção ao pobre originado na bíblia judaico-cristã. Ao mesmo tempo em que defende a propriedade privada, admoesta o rico a ajudar os necessitados, repartindo seus bens. Assim, Tomás de Aquino também segue o Novo Testamento (“Exorto aos ricos deste mundo a que não sejam orgulhosos nem ponham suas esperanças nas riquezas. Que pratiquem o bem, se enriqueçam de boas obras, sejam generosos e comunicativos” 1Tm 6: 17a, 18).

A fusão do pensamento grego-romano e judaico-cristão influenciou o agir da sociedade ocidental moderna. Das leis de pobreza da Inglaterra no século XVII, quando a igreja administrava os recursos do Estado para socorrer os pobres, às Santa Casas de Misericórdia que se proliferaram por todo Brasil, e até hoje prestam assistência aos necessitados, se encontram inúmeras instituições de caridade católicas, protestantes e judaicas buscando aliviar a situação dos pobres. No entanto, esta cultura assistencialista tem uma outra face na qual a pobreza não pode ser eliminada por tratar-se de um mal natural, e até benéfica, pois mantém o pobre trabalhando, o preserva de grandes ambições materiais e desenvolve a humildade, purificando-o espiritualmente. Assim, não há necessidade de políticas para eliminar a pobreza, pois estas políticas seriam inúteis (pois pobres sempre os teremos conosco), prejudicariam a salvação dos pobres pela humildade e sofrimento e dos ricos pela benemerência, além de afetar a produção econômica, pois a pobreza força o pobre a trabalhar e o possibilita ficar longe da bebida e de outros vícios, nesta visão.

Outros autores deste período pré-iluminismo propuseram sistemas onde a propriedade era posta em comum. Thomas More volta à idéia de Platão de eliminar a propriedade privada, mas para toda a sociedade e não apenas para seus dirigentes. Para o autor, a desigualdade entre ricos e pobres gera violência e corrupção, esgarça o tecido social e, portanto deve ser eliminada em uma comunidade utópica. Abolindo a propriedade privada, elimina-se a causa da ambição e dos conflitos políticos. Segundo Parijs (1995, p. 45s), a primeira proposta de uma renda mínima na literatura foi feita na Utopia de Thomas More, para reduzir a pobreza e

a criminalidade7. No entanto, nesta, como em outras utopias, não há escassez de bens a serem repartidos, e, portanto não há necessidade de justiça distributiva.

Neste momento da história surge o Estado Nacional, e começa-se então a discutir o seu papel junto à sociedade. Se os autores antigos recomendavam o cuidado com pobres e já alertavam contra os perigos de uma grande desigualdade econômica nas comunidades, pouco se falava de uma ação por parte dos governantes para minorar este problema. Com o surgimento do Estado, passa-se a ser discutido qual seu papel em relação às desigualdades criadas por outra instituição, não menos importante, que também passou a ser debatida no mesmo período, o mercado.