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1. BASES PARA UMA COMPREENSÃO DA NATUREZA E DA DEGRADAÇÃO DO

1.1. Da natureza essencial ao desafio da “habitação poética” do planeta

Diante da emergência e da relevância do debate sobre os impactos das atividades humanas sobre o planeta, atualmente a palavra natureza é recorrente nos mais variados discursos e contextos. A disputa pela legitimação do seu uso configurou uma polissemia no termo “natureza” e muitos dos seus significados passaram a se manifestar em relação a diversas outras palavras do vocabulário ambiental ou ecológico. Mas, apesar da hegemonia da noção de natureza correspondente a uma realidade material externa ao espaço social e que constitui uma (in)esgotável fonte de recursos para suprir as necessidades humanas, trata-se, conforme revelam Ginn e Demeritt (2008), de um conceito contestado, sobretudo pelos movimentos ambientalistas. Entre os principais significados envolvidos nessa contestação, é a

1 Ao longo desta tese distinguimos as noções de natureza e de meio ambiente. Adotamos natureza como sinônimo de mundo natural, considerando sua autonomia e suas mais diversas entidades e relações, já o meio ambiente ganha sentido em um contexto político, transitando nos diferentes discursos relacionados à apropriação e/ou defesa do mundo natural, ou seja, na disputa pela representação da própria natureza. Contudo, sempre que possível, fazemos uso indistinto dos termos, deixando a cargo do contexto evidenciar o sentido adotado.

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noção de uma natureza essencial, simultaneamente reconhecida em sua existência objetiva e autônoma e também como caráter normativo capaz de harmonizar a integração do homem às demais espécies, que reivindica legitimidade frente a uma natureza compreendida como mundo exterior ao homem e que pode ser apreendida e controlada a partir da racionalidade científica.

A seguir, recorremos ao pensamento filosófico para compreender acerca das transformações na ideia de natureza e também nas relações com ela estabelecida. A rigor, não se trata de buscar abrigo na filosofia da natureza, mas de contemplar contribuições da filosofia, em diferentes escolas e filiações históricas, de forma a compreender aspectos norteadores da transformação das significações de natureza. Conforme Gonçalves (2006), foi o obscurecimento do pensamento filosófico que resultou no afastamento de outras formas de pensar a natureza, sobretudo daquelas marcadas por um maior envolvimento e harmonia entre o homem e o mundo natural. Assim, apoiamo-nos em Rousseau (2012) e sua percepção de uma natureza essencial bondosa capaz de assegurar a harmonia entre os homens e entre estes e as demais espécies, em Foucault (2006) e a natureza como tecnologia de subjetivação, uma forma de permanência da natureza essencial nas sociedades antigas, em Descartes (2001) e a consagração da natureza universal, acessível através do conhecimento científico e que encontra no homem o seu legítimo mandatário e, finalmente, na metafisica da natureza de Martin Heidegger, que observa a degradação ambiental como consequência da apreensão da natureza sob a ótica da ciência e da técnica contemporâneas, e que reivindica um novo envolvimento com a natureza a partir da noção de habitação.

No Discurso sobre a origem e os fundamentos das desigualdades entre os homens, Rousseau (2012) manifesta seu pessimismo diante das sociedades industriais emergentes, recorrendo a uma noção de natureza que nos remete a um estado essencial da existência humana que fora marcada pela bondade, sensibilidade, harmonia e igualdade entre os homens e os demais seres vivos. Nesse contexto, a desnaturação do homem (abandono de sua bondade funcional e da compaixão) é um processo intensificado pela sociedade industrial emergente e que viola a liberdade, a integridade e a harmonia entre os homens, resultando no primado das desigualdades sociais. Mas, é importante observar que, de forma precursora, o autor também alertou acerca das consequências ambientais decorrentes do afastamento do homem civil de sua natureza essencial: as desigualdades sociais não somente resultaram na tirania dos homens entre si, mas destes sobre o mundo natural.

Em Rousseau (2012), a natureza essência manifesta uma espécie de direito natural que assegura compromisso e respeito dos homens perante os demais seres vivos. Integrado à

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natureza, ele reconhece as demais espécies como seus semelhantes, evitando que fossem inutilmente maltratadas. Apesar dessa integração, o homem natural é diferenciado por sua capacidade de raciocínio e de aperfeiçoamento. Mais organizado, encontrava maior vantagem de sobrevivência no mundo natural, muito embora não constituísse um estado de conflito com as demais espécies. Assim, observamos que a natureza rousseauneana é marcada pela integração e identificação entre homem e demais seres. Na ausência de separação homem/mundo natural, este não era temido, nem despontava como espetacular ou utilitário.

A constatação da incompatibilidade entre a sociedade e a manutenção da harmonia do homem com o mundo natural é um dos pilares que sustenta o pessimismo de Rousseau (2012). Conforme o autor, os vícios e as paixões sociais corrompem nossa relação com a natureza, privilegiando o sentimento de amor, comprometendo o sentimento de piedade natural com as demais espécies. O fim da natureza essencial é o fim da própria harmonia, do respeito aos demais seres, e do senso de identificação com um todo. A natureza rousseauneana, em oposição aos dogmas e à racionalidade social, é, antes de tudo, um estado que orienta a virtude humana.

Observamos que no desenvolvimento da noção de natureza essencial, Rousseau (2012) vai situá-la como causa estrutural da harmonia e igualdade entre os homens e destes com o mundo natural. De forma contrária, é a sociedade que surge como causa estrutural das desigualdades sociais e da supremacia do homem sobre o mundo natural (o que mais tarde viria a ser considerado como degradação do ambiente). Assim, foi diferenciando-se dos demais animais que o homem fragilizou a harmonia natural e “[...] tornou-se com o tempo o senhor de uns, o flagelo de outros” (ROUSSEAU, 2012, p. 82). A sociedade, sob essa perspectiva, é então um projeto de consagração da superioridade humana sobre as demais espécies, apoiada pela instituição da propriedade privada, pelo desenvolvimento da comunicação e da linguagem.

É importante ressaltar que a crítica rousseauneana sobre a corrupção da natureza essencial não deve ser confundida com uma nostalgia prescritiva de uma volta a um estágio anterior de existência humana precedente à vida social moderna. Mais do que isso, o que ganha relevo no autor são as contribuições que podem resultar de uma maior integração do homem ao mundo natural. Aspectos como a propriedade privada, os sistemas de reconhecimento e de consideração alheia como parâmetro de distinção social, a sujeição do homem às suas mais diversas necessidades, o seu domínio sobre seus semelhantes e a centralidade da vida na aquisição de bens, poder, beleza, habilidade e mérito, são todos atribuídos ao afastamento do homem moderno da natureza essencial. Além disso, Rousseau

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(2012) já observava a política e o Estado em seu empenho por assegurar as desigualdades entre os homens, e, consequentemente, o domínio sobre o mundo natural.

Também é evidente na leitura do Discurso de Rousseau que ao romper com a natureza essencial o homem civil, em seu projeto de sociedade, empreendeu sua retirada do mundo natural, relegando à natureza uma orientação exclusivamente dedicada às exigências do empreendimento humano. Nesse contexto, em que as desigualdades morais corrompem o direito natural, o impacto da vida social sobre a natureza é implicitamente revelando pelo autor. Assim, interligando problemas como êxodo rural, miséria urbana, abandono de terras outrora cultivadas, devastação de florestas, acúmulo de lixo, valorização da posse de bens (consumo), Rousseau (2012) observa não apenas a problemática social, mas ressalta a degradação do ambiente como testemunha da insatisfação da vida moderna. Evidentemente, devido ao seu contexto e propósito, o Discurso não desenvolve noções acerca da degradação ambiental, mas ao reiterar desigualdades entre os homens a partir do seu afastamento do mundo natural, permite-nos contextualizar as consequências dessa tirania em relação à natureza, sobretudo com a apropriação do mundo natural que se intensifica com o advento das sociedades industriais capitalistas.

Conforme discutiremos mais adiante nesta tese, o lamento de Rousseau (2012) parece ecoar em vários dos discursos ambientais vigentes e que reivindicam nossa reaproximação com a natureza essencial como condição indispensável para o reequilíbrio entre os homens e o mundo natural, sobretudo advertindo acerca da impossibilidade da razão e da ciência empreenderem esse resgate. De forma geral, a filosofia rousseauneana revela a sociedade como causa estrutural de uma dupla problemática: ela institui as desigualdades entre os homens, uma vez que os progressos da razão e do espírito humano consolidam seu afastamento da natureza essencial; ela assegura a corrupção da natureza, pois orienta a tirania dos homens sobre o mundo natural. Em Rousseau (2012), ainda que de forma implícita, a degradação ambiental já é sinalizada como problemática social.

Mas o pessimismo rousseauneano diante da corrupção de uma natureza que se confunde com a própria essência humana, tamanha integração entre ambos, não recai apenas sobre as sociedades industriais modernas, ele se aplica às sociedades em geral. Na verdade, é o homem civil que é denunciado em sua superficialidade – sua valorização do trabalho, da reputação, do poder e da riqueza, resultou na alienação de sua liberdade, no seu afastamento e sua opressão sobre a natureza. Contudo, conforme revela Foucault (2006), essa natureza rousseauneana não desapareceu de imediato e por completo com o advento das sociedades, o

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que efetivamente ocorrerá a partir da consagração do cristianismo e da racionalidade científica.

Segundo Foucault (2006), a natureza essencial, fonte de valores e princípios, permaneceu relevante nos processos de subjetivação e veridicção ocidental destinados à formação do ethos (maneira de ser, atitudes, reflexões etc) do sujeito social. É o que podemos observar nas análises do autor acerca das transformações históricas na noção de cuidado de si, um conjunto de ações e práticas transformadoras nos mais diversos campos de existência do sujeito (moral, cultural, espiritual etc) e que objetivam conduzi-lo à verdade, ao conhecimento e a uma melhor conduta da sua vida. Na genealogia do sujeito foucaultiana, tais práticas são denominadas de tecnologia de si (tecnologia de subjetivação).

Dessa forma, é importante observar que as tecnologias de subjetivação foram inicialmente destinadas à preparação do ethos dos jovens que almejavam o governo das cidades, sobretudo no período socrático (do século V ao século IV a.C.). Contudo, elas deixaram de ser uma condição exclusiva de acesso à vida política, passando a constituir um conjunto de práticas destinadas a qualificar o viver coletivo no período helenístico-romano (do século IV a.C. ao século V d.C.). É nesse contexto que observamos que a natureza essencial despontou como importante tecnologia de subjetivação. No primeiro período assinalado, a realização de um estágio na vida camponesa era uma prática de subjetivação bastante comum. Essa experiência com o modo de vida camponesa era observada como exercício pessoal em que a proximidade e a reintegração à natureza mostravam-se reveladoras das necessidades mais elementares do sujeito, propiciando progresso e avanço no “cuidado de si”. Portanto, a natureza despontava novamente como lugar revelador de valores essenciais à existência do sujeito, contribuindo sobremaneira para orientar sua atuação política no espaço social urbano, suscitando uma reflexão sobre a existência, sobre necessidades de mudanças e ajustes em direção a uma conduta ética e justa.

No período helenístico-romano, o “cuidado do si” é preterido por uma ideia de conversão que reivindica um retorno do sujeito para si próprio, desviando seu olhar do mundo exterior para empreender um exame de si e do seu movimento no mundo, e não mais exclusiva à preparação para a atividade política. Foucault (2006) revela a conversão como uma série de práticas que operam na subjetivação e que ainda contemplam a natureza como relevante para orientar a conduta humana. Contudo, não se trata mais de reconhecer a natureza essencial que orienta o campesinato, mas de atribuir à natureza um valor estético para “[...] sentir prazer com o espetáculo calmo, reconfortante que podemos assistir ao nosso redor quando lá estamos.” (FOUCAULT, 2006, p.270). É esse caráter contemplativo que

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define a natureza enquanto tecnologia de subjetivação neste período, em que a valorização da relação homem e natureza ressalta a integridade do ambiente como condição indispensável para assegurar a integridade humana. Convém atentar que a vinculação estética e até mesmo religiosa com o mundo natural também vai ecoar em discursos ambientes vigentes nas sociedades contemporâneas.

Foucault (2006) permite-nos observar que a natureza, ainda no contexto das tecnologias de subjetivação, também assumiu o papel de revelar o conhecimento útil à constituição do sujeito. Nos séculos I e II a.C., a conversão do sujeito sobre si mesmo observava a aproximação da natureza como caminho de acesso ao verdadeiro conhecimento. Conforme o autor, emergiu uma percepção de uma natureza filosófica objetiva que escondia o que não se era necessário conhecer, mostrando ao homem apenas o que é útil, o que realmente modifica sua maneira de ser. Portanto, a natureza assumiu um sentido normativo do conhecimento humano, reveladora dos “segredos” da existência, fato que justificava sua aproximação.

Em linhas gerais, em Foucault (2006) podemos moderar o pessimismo rousseauneano acerca da relação homem e natureza essencial, evidenciando que esta não desapareceu por completo com o advento das sociedades. E mesmo com à emergência de um sentido materialmente utilitário, o sentido essencial, juntamente com o sentido estético da natureza coexistiram, sobretudo no contexto das tecnologias de subjetivação (formação do ser do sujeito), revelando o meio ambiente como dimensão importante na constituição do ethos do sujeito no período que antecedeu às transformações do cuidado de si pelo cristianismo e pela ciência. Assim, a genealogia do sujeito e das tecnologias de si apresentadas por Foucault (2006) revelam a valorização de uma natureza essencial como sendo indispensável à ética humana, mas também como um meio físico que abriga uma manifestação espetacular da vida, além de despontar como fonte de um conhecimento relacional do homem sobre o seu meio, concedendo-lhe um sentido de comunidade na qual habita e constitui um ambiente comum às demais espécies.

Convém observar que o cristianismo e a ciência modificaram drasticamente a noção de conversão do sujeito tão marcante no período helenístico-romano, de forma que os processos de subjetivação passaram a ser operados por verdades exteriores - Texto, Palavra e Revelação, no Cristianismo do século III d.C., e a lógica e a racionalidade científica, no “momento cartesiano no século XVII d.C. Assim, Foucault (2006) permite-nos observar que o abandono do “cuidado de si”, em cujas tecnologias de subjetivação a natureza essencial e estética era indispensável à orientação ética do sujeito, em favor da aquisição do saber

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“verdadeiro”, “revelador” e “justificador” da existência, também resultou na consagração do afastamento homem e natureza. Dessa forma, tanto a ciência como a Criação destituíram a dimensão ambiental rousseauneana da subjetivação, consolidando a ruptura “definitiva” entre a sociedade e o mundo natural.

Em termos ambientais, como visto em Foucault (2006), o advento do cartesianismo vai comprometer de forma drástica os processos de subjetivação, e, consequentemente, a relação homem e natureza essencial. Nesse novo contexto, outra orientação passa a vigorar, consolidando um sentido estritamente utilitário ao mundo natural. Ao propor seu Discurso do

Método, em 1637, René Descartes inaugura uma nova perspectiva científica em que a razão

humana desponta como percurso absoluto em busca da verdade. Assim, o cartesianismo estabeleceu um novo significado para a natureza e também as bases da relação homem e natureza que se configurou nas sociedades industriais e que perdura de forma hegemônica no mundo contemporâneo. A ciência cartesiana, através da matemática e da experiência, despontou em sua capacidade de desvendar os segredos da natureza de forma a promover benefícios e progressos coletivos a partir do seu domínio.

A natureza cartesiana, assim como a natureza rousseauneana, também corresponde à essência do mundo, mas ao invés de orientar valores e princípios morais que asseguram a integração do homem à natureza, ela corresponde a um vasto conjunto de leis gerais estabelecidas por um criador superior, infinito e perfeito – Deus. Segundo esta essência, a razão e o bom senso distinguem naturalmente os homens dos demais animais e a natureza é um laboratório cujos fenômenos encontram-se matematicamente codificados. Para Descartes (2001), o seu método é um caminho favorável ao aumento gradativo do conhecimento acerca de tais fenômenos – acesso ao ponto mais alto da verdade.

Na racionalidade cartesiana o pensamento é uma faculdade exclusivamente humana e corresponde à verdadeira essência da alma. Contudo, apesar de situar o homem no interior da natureza, Descartes (2001) termina por hierarquiza-la antropocentricamente ao diferenciar natureza inteligente da natureza corporal. Ou seja, a natureza cartesiana é o ponto de origem de todas as coisas e espécies, mas a espécie humana é privilegiada diante das demais. O homem cartesiano é um ser excepcional cujas ideias e noções são provenientes de Deus e por isso devem ser contempladas como verdadeiras, daí ser o único capaz de perseguir a verdade divina que a natureza codifica e manifesta. Conforme o autor, ao homem (principal criação divina) é permitida a compreensão e o domínio da natureza e suas leis, e a partir dessa premissa e orientado pelo seu método, Descartes (2001) empreendeu uma série de observações: sol, estrelas, planetas, cometas, terra, corpos diversos e, finalmente, o próprio

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homem. Portanto, nessa perspectiva, a natureza é a normativa do universo que assegura a criação e a conservação do mundo, explicando tanto os corpos inanimados das plantas, os animais e o homem.

Sob a ótica do cartesianismo, a integração homem e natureza é de ordem fisiológica, pois assim como os animais ele é naturalmente concebido como uma máquina explicável a luz da mecânica. Na natureza cartesiana, ambos são dotados de órgãos e de funções que independem da razão - Descartes investiga o corpo humano para compreender suas partes componentes, a exemplo do coração e de sua fisiologia. Além disso, embora apreendida pelas leis da matemática, a natureza é uma concepção divina que manifesta a supremacia e a perfeição através das leis naturais.

A centralidade humana na natureza cartesiana é explicada a partir da distinção entre “espíritos animais” e “alma racional”. O homem é dotado de alma racional independente que além de atribuir movimento ao seu corpo produz sentimentos diversos e é imortal. Os animais, por sua vez, percebidos como mais engenhosos que o homem, mas que apenas manifestam movimentos mecânicos. Conforme Descartes (2001), sua alma é de natureza diversa da humana, é desprovida da faculdade de expressar pensamento, destituída por completo de razão. Para o autor, o uso da linguagem para expressão de pensamentos (a capacidade de compor um discurso) e da razão como instrumento universal para todas as circunstâncias são a expressão máxima da diferenciação entre o homem e a natureza.

Ferry (1993) nos alerta que a física cartesiana consagrou a supremacia do homem sobre a natureza (antropocentrismo) e resultou na destituição de qualquer tipo de direito à natureza, sobretudo dos animais. A natureza cartesiana, segundo o autor, assinala o fim do seu animismo, uma vez que a quantificação objetiva ignorou as questões relativas à vida, privilegiando uma apreensão mecânica dos animais. Dessa forma, apesar de contemplar a perfeição divina desse maquinário, emergiu uma percepção da natureza desprovida de subjetividade e de sensibilidade (animais desprovidos de sofrimento).

É ciente dessa condição que Descartes fundamenta sua filosofia, apoiando-se na física e na matemática para conceber uma postura menos especulativa, mais prática e útil ao enfrentamento de uma diversidade de dificuldades humanas a partir da descoberta das leis da natureza. Embora reconheça a vastidão e a diversidade da natureza, admite que somente ao homem foram designadas as chaves para sua compreensão. Convém observar que o cartesianismo se apoiou inicialmente na tradição hierárquica Deus/Homem/Natureza, mas ao situar o homem como espécie privilegiada pela criação divina, Descartes (2001) vai contribuir para a emergência de uma nova significação da natureza, orientando relações até então

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impensável. Nesse sentido, o domínio da natureza pela ciência e seu valor utilitário ganhou em Descartes um verdadeiro alicerce, cuja orientação inicial para fins coletivos fora, mais tarde, subvertida pelas sociedades capitalistas industriais, traduzindo-se um contexto de uma vasta degradação do ambiente e desigualdades sociais.

O sentido utilitário atribuído à natureza a partir do primado da ciência e da técnica, observada enquanto abandono da natureza essencial e da bondade funcional rousseauneana, intensificou o projeto da dominação do homem sobre o mundo natural. Em Martin Heidegger observamos uma reflexão crítica e contundente sobre essa problemática relação homem e natureza, em que a técnica ocidental desponta como causa estrutural da degradação do ambiente. Conforme defende Foltz (2000), no pensamento do filósofo alemão é possível observarmos uma vanguarda na compreensão da crise ambiental que viria rapidamente se manifestar como principal ameaça à humanidade.

Ainda conforme Foltz (2000), em Heidegger a crise ambiental traduz a relação homem e natureza na cultura ocidental. A degradação do ambiente é atribuída ao estatuto da tecnologia que impera nas sociedades industriais e que orienta a revelação (uma forma de veridicção na ótica foucaultiana) e a compreensão do mundo, definindo os “modos de ser” da natureza. Dessa forma, a tecnologia, herança cartesiana, representa a celebração da retirada do