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Da particularidade à afetividade: a sujeição do problema aos pressupostos psicológicos

1. A incorporação da afetividade aos estudos piagetianos

1.2. Da particularidade à afetividade: a sujeição do problema aos pressupostos psicológicos

Ao chamar a atenção para as intenções e valores de um “sujeito particular”, esses estudos piagetianos servem de inspiração para aqueles que, no interior da psicologia do desenvolvimento, engajam-se numa série de esforços teóricos visando questionar a dicotomia entre razão e emoção que predominaria nos estudos psicológicos herdeiros da filosofia clássica (Arantes, 2002). Ou seja, os estudos de Inhelder sobre os processos funcionais, ao vincular a construção do conhecimento a contextos particulares, suscitam no interior da psicologia – sem tomar parte, eles próprios, nesse rumo – indagações sobre outros aspectos determinantes da organização do pensamento em consonância com o movimento de questionamento da redução dos estudos sobre o desenvolvimento humano à dimensão cognitiva.

Na passagem da preocupação com a relação entre determinação estrutural e resposta particular para o foco na relação entre inteligência e afetividade, vê-se desenhar três pressupostos centrais: uma concepção de sujeito como unidade psicológica; a ideia de que essa unidade é composta de diferentes dimensões indissociáveis, mas de naturezas distintas; e que essa unidade, em suas diferentes dimensões, se desenvolve.

Esses pressupostos são partilhados por diversos estudos que, no escopo da psicologia do desenvolvimento, tematizam a relação entre inteligência e afetividade, recorrendo a uma pluralidade de perspectivas teóricas. Assim, Leite (2006) afirma que a cognição e a afetividade se entrelaçam na conformação do ser humano como unidade; Martinelli (2001) sustenta a necessidade de pensar o ser humano como totalidade e, assim, incluir nas reflexões a afetividade; Souza (2006) considera que o indivíduo, enquanto entidade psicológica, pressupõe a integração entre razão e emoção; para Arantes (2013, p. 51), pensar, agir e sentir devem ser considerados como “dimensões indissociáveis do psiquismo humano” compondo “um complexo entrelaçado de relações” (Arantes, 2002, p. 170).

Dentre esses estudos, há aqueles que tomam como ponto de partida as reflexões de Piaget acerca daquilo que considerou ser o papel da afetividade no funcionamento mental. De acordo com Bearison e Zimiles (1986/2014), Piaget não negligenciou nem a

interação social nem a afetividade e, portanto, essa aproximação dos estudos piagetianos desses campos demonstra um momento de maturidade dos estudos cognitivistas.

Segundo Souza (2007), no deslocamento de foco do sujeito epistemológico para o sujeito psicológico os estudos piagetianos se deparariam com a necessidade de encontrar explicações mais integradas sobre o funcionamento psicológico. Visando “estudar o indivíduo enquanto entidade psicológica” (Souza, 2006), haveria a necessidade de um movimento de expansão do paradigma piagetiano. Nesse caso, a expansão se dá pela incorporação do tema da afetividade, ao qual Piaget faz referência como dimensão da conduta do sujeito que, no entanto, não estaria no centro de suas preocupações investigativas. Mesmo assim, o afetivo se desenha como ponto capaz de atar a intenção de considerar os processos cognitivos em seu aspecto psicológico e o movimento de questionamento da dicotomia entre razão e emoção no sentido de modelos mais integrados.

O afetivo assume a forma de uma nomeação possível para aquilo que particulariza a construção do conhecimento e como dimensão do sujeito psicológico responsável pelos interesses e motivações que impulsionam o sujeito à criação de novidades. Segundo Schimith, Queiroz e Murta (2017), Piaget considera a afetividade como energética que impulsiona a ação. Tratar-se-ia então de um princípio subjetivo que faria com que a ação só ocorresse se determinada por uma vontade.

Para Piaget a participação da dimensão afetiva no funcionamento mental se restringe ao ritmo, não integrando a dimensão propriamente estrutural. Ou seja, o interesse pelo objeto seria responsável pela aceleração ou atraso na estruturação do conhecimento. Portanto, afetividade e inteligência, embora indissociáveis, possuem papéis bem diferentes e delimitados. Enquanto fonte de energia da cognição (Piske; Stoltz, 2012), a afetividade passa a ser considerada responsável pelo direcionamento das ações a partir do impulso aos objetos (Souza, 2005). Souza (2004) afirma que a afetividade fornece uma carga afetiva a determinados objetos, na medida em que lhe são atribuídos valores positivos, tornando-os objetos de interesse e motivando a conduta e a construção do conhecimento (Souza, 2011; Souza, 2006). Os objetos investidos afetivamente resultariam em metas mais significativas (Souza, 2002), incentivando a assimilação de perturbações (Garbarino, 2012). Assim, considera-se que enquanto a inteligência determina as formas do conhecimento, a afetividade definiria os conteúdos

sobre os quais incidem essas formas. Nas palavras de Souza (2005, p. 209), a “inteligência é responsável por organizar estruturalmente as condutas e a afetividade por conferir-lhes conteúdos, apresentando-lhes metas para suas escolhas”.

Nessa consideração sobre a dimensão afetiva das condutas e de que modo elas influiriam na estruturação cognitiva, os estudos em questão se voltam para o aspecto dinâmico da afetividade e a necessidade de considera-la como também em desenvolvimento. La Taille (2007), dedicando-se a estudos de psicologia moral numa perspectiva piagetiana, afirma que também nesse campo a relação entre afetividade e razão é um problema central. Segundo ele, a ação moral implica tanto uma dimensão cognitiva, responsável pelo saber-fazer, quanto uma dimensão afetiva que delimita um querer-fazer a partir da motivação (La Taille, 2002). Fazendo referência aos trabalhos de Kohlberg, o autor destaca como também no campo da moralidade aponta-se um limite dos estudos piagetianos no que diz respeito à consideração da conduta particular. Em Piaget, o sujeito moral seria correlato do sujeito epistêmico (La Taille, 2007) e, portanto, ele não levaria em conta que saber não é necessariamente querer e que, portanto, a conduta implica algo mais que seria a vontade (La Taille, 1992a). A diferença entre juízo moral e comportamento moral imporia considerar a possibilidade de confronto entre afetividade e razão. Para La Taille (1992a), o fato de Piaget não cogitar que a afetividade pudesse servir como obstáculo à ação racional decorre da premissa de que a ação está necessariamente orientada por uma racionalidade. Porém, isso significa, segundo o autor, que o desenvolvimento moral implica uma regulação racional da afetividade.

Souza não se ocupa preponderantemente da questão da moral, porém reitera a premissa piagetiana de uma racionalidade intrínseca à ação, definindo-a como uma premissa de desenvolvimento tanto cognitivo quanto afetivo. Assim, a autora parte da consideração da necessidade do desenvolvimento da afetividade a fim de que ela seja efetivamente motor do processo cognitivo. Mantendo a referência piagetiana como central e, ao mesmo tempo, adotando pressupostos da psicologia do desenvolvimento, acaba por ampliar o escopo da equilibração afirmando-a como um princípio regulador das condutas, as quais possuem aspectos cognitivos, afetivos e sociais. Essas diferentes dimensões se integrariam por estarem submetidas ao princípio de equilibração, tendo como resultado que os desenvolvimentos cognitivo, social, moral e afetivo ocorrem concomitantemente e se influenciam mutuamente. Com isso, retoma o paralelo

estabelecido por Piaget (1953-54) entre desenvolvimento cognitivo e desenvolvimento afetivo. O princípio de equilibração se apresenta, nesse contexto, como um princípio evolutivo capaz de reger as condutas dos indivíduos no sentido de uma maior regulação racional do comportamento e do pensamento.