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Teorias sexuais infantis e pulsão de saber

2. A estrutura do significante e o efeito sujeito

3.1. Teorias sexuais infantis e pulsão de saber

O ponto de partida para uma abordagem psicanalítica da relação entre sujeito e conhecimento é aquele que se encontra na experiência freudiana com a descoberta das teorias sexuais infantis levando à elaboração da pulsão de saber. É seguindo os passos freudianos bem como a retomada lacaniana quanto ao assunto que encontraremos o caminho que possibilita pensar essa relação em termos estruturais.

Tendo estabelecido sua tese da sexualidade infantil em seus Três ensaios sobre a

teoria da sexualidade, primeiramente publicado em 1905, Freud (1905/1996) comenta,

com a colaboração das observações diretas de crianças para sustentar sua teoria, baseando-a, sobretudo, em resultados das investigações psicanalíticas feitas com adultos. Nesse meio tempo, no entanto, afirma ter tido acesso a essas observações que vieram corroborar suas teses, além de abrir novas questões e esclarecimentos sobre o assunto. Dentre essas novas questões, está a ideia de uma pulsão de saber orientando as investigações sexuais infantis, ponto incorporado aos Três ensaios somente em 1915.

Construindo sua noção de pulsão, Freud (1905/1996) formula que a sexualidade humana se constitui por um desvio em relação à função reprodutora. O que caracterizaria a pulsão seria a busca pela obtenção de satisfação, ligada à descarga de quantidades crescentes de excitação interna e a sexualidade se estruturaria a partir de organizações possíveis da pulsão. Além disso, Freud afirma que essa estruturação ocorreria na infância e seria responsável pela conformação do aparelho psíquico. Postula também um momento de ruptura dessas organizações sexuais propriamente infantis que denomina período de latência, no qual se erigem as barreiras à sexualidade infantil, inclusive aquela do incesto, impondo a meninos e meninas que suas escolhas passem a se orientar para outros objetos que não aqueles que marcaram a vida familiar infantil. Assim, concebe a sexualidade humana como cindida em dois tempos, conformando a ideia do infantil como constitutivo do inconsciente.

Entre 1905 e 1910, Freud se dedica a recolher essas observações diretas das crianças, interessando-se de modo especial pela relação entre o interesse sexual na infância e a origem do pensamento científico. Assim, publica em 1908 Teorias sexuais das

crianças (1908/1976), em 1909, Análise de uma fobia num menino de cinco anos

(1909/1996), e em 1910, Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância (1910/1970), textos nos quais aborda o tema das investigações infantis mais detidamente. Ainda em 1907, ele já publicara O esclarecimento sexual das crianças (Freud, 1907/1976), uma carta aberta onde aponta para o interesse das crianças pelos problemas sexuais.

Com relação a essas observações diretas, o pequeno Hans, personagem central da

Análise de uma fobia num menino de cinco anos (Freud, 1909/1996), aparece como

protagonista. Não apenas figura como a fonte mais rica da vida sexual das crianças a que Freud tem acesso, como virá a compor o seleto hall dos casos clínicos de Freud, destacado como o primeiro caso de psicanálise de uma criança. O “caso do pequeno Hans”, como ficou conhecido, foi fruto justamente desse interesse de Freud acerca das

manifestações da sexualidade na infância. Conforme nos conta já na introdução da apresentação do caso, instigado pelo desejo4 de poder observar “em primeira mão e em

todo o frescor da vida, os impulsos e desejos sexuais que tão laboriosamente desenterramos nos adultos dentre seus próprios escombros” (Freud, 1909/1996, p. 16), estimulou seus colegas a recolherem observações da vida sexual das crianças. O pai de Hans era um entusiasta da psicanálise e frequentava as famosas reuniões de quarta- feira, além de ter sua esposa se submetido a tratamento anos antes com Freud. Por isso, toma para si a tarefa proposta pelo pai da psicanálise e começa a endereça-lo algumas observações sobre seu próprio filho.

Ao longo dessas observações, o menino iniciou a manifestação de uma fobia a cavalos que preocupou sobremaneira seus pais, ao ponto de tornar o que era uma desinteressada transferência de observações no acompanhamento propriamente de um caso clínico, levando inclusive à inauguração da concepção de histeria de angústia, tão importante no percurso de construção da metapsicologia freudiana.

O caso clínico propriamente dito se desenrola entre janeiro e maio de 1908, porém já há dois anos Freud vinha tendo acesso aos relatos feitos pelo pai do menino, ricos em observações acerca de seu comportamento e de suas formulações acerca de problemas sexuais. Essas observações, confrontadas com aquelas extraídas da análise de adultos, levaram Freud a formular as teorias sexuais infantis como um fenômeno geral entre as crianças, com algumas características que seriam típicas, assim como vinculado diretamente ao interesse pelo conhecimento em geral. Além de considerar a compilação dessas teorias de grande valor para a compreensão da neurose, visto que teria influência na forma assumida pelos sintomas, o que Freud encontra a partir dessas observações é não somente a constatação de uma vida sexual entre as crianças, mas a ligação entre o interesse sexual e o impulso ao conhecimento na forma de uma investigação e de uma teorização especialmente no que diz respeito à origem dos bebês e à diferença entre os sexos.

Animado com tais descobertas, Freud publica pouco antes do caso do pequeno Hans, um texto intitulado As teorias sexuais das crianças (1908/1976), onde apresenta uma formulação mais geral do assunto. A origem dessas teorias é creditada à

4 O uso desse termo merece destaque, especialmente considerando o caminho que se desdobrará

nesta investigação perseguindo a problemática da causalidade. Retomaremos esse comentário mais adiante.

experiência do aparecimento de um novo bebê, seja em sua própria família ou em alguma próxima da criança. Nas palavras de Freud: “A perda, realmente experimentada ou justamente temida, dos carinhos dos pais e o pressentimento de que, de agora em diante, terá sempre de compartilhar seus bens com o recém-chegado despertam suas emoções e aguçam sua capacidade de pensamento” (1908/1976, p. 216). Assim, da pergunta original “De onde veio esse bebê intrometido?” deriva-se a dúvida existencial: “De onde veem os bebês?”.

Freud (1908/1976) postula a ligação do aparecimento das teorias sexuais infantis com uma experiência de perda, no caso perda de amor dos pais, o que implicaria uma ameaça ao Eu da criança. Essas experiências vivenciadas pela criança como desprazerosas suscitam questões que tomam a forma de enigmas, para os quais ela se sente impelida a encontrar respostas, no intuito de conquistar certo domínio sobre o mundo que a cerca e impedir a repetição de eventos temidos5.

Freud afirma que as perguntas, inicialmente, se dirigem ao outro, suposto detentor das respostas, representante da “fonte de todo o conhecimento” (1908/1976, p. 216). No entanto, sustenta que essa demanda endereçada ao outro redunda num fracasso. As respostas ofertadas pelo outro não satisfazem, o que gera o prosseguimento das investigações em segredo e de forma independente. É dessa investigação autônoma que surgem as chamadas teorias sexuais infantis, formulações muito peculiares caracterizadas fundamentalmente pela distância em relação àquilo que, seja através de fábulas, seja através de conhecimento científico, possa ser oferecido pelo adulto como resposta à pergunta da criança.

Nessa ocasião, Freud apresenta quatro teorias sexuais infantis típicas:

a) A primeira e mais importante delas é a premissa universal do pênis, ou seja, a crença da criança de que tanto homens quanto mulheres possuem pênis. Essa decorre do alto valor atribuído ao órgão genital masculino.

b) A segunda teoria descrita aborda diretamente a questão do nascimento dos bebês. Tendo concluído, por si só, que o bebê esteve por um tempo na barriga da mãe e na medida em que a descoberta da diferenciação dos órgãos genitais masculino e feminino parece estar barrada para a criança, ela

5 A ideia de que o pensamento possa levar ao afastamento de uma ameaça nos remete à noção de

desenvolve a teoria que Freud denomina “cloacal”, ou seja, acredita que o bebê sai pelo ânus.

c) A terceira é denominada “teoria sádica do coito”. Segundo ela, o ato sexual seria identificado com um ato violento.

d) Freud ainda comenta um quarto grupo de teorias ligadas à compreensão do que seja o casamento. Estas teriam em comum a crença de que o casamento está relacionado a uma promessa de prazer e também à ausência de pudor entre o casal.

Num primeiro momento, vemos Freud (1907/1976) dar a essa autonomia das crianças em suas investigações um caráter contingente ligada à inabilidade dos adultos em esclarecer as crianças em sua ânsia de saber sobre temas sexuais. Propõe, portanto, que sejam incorporados aos temas escolares esclarecimentos sobre os fatos ligados à sexualidade como forma de impedir que o interesse pelo assunto se torne de tal modo excessivo que venha a prejudicar o desenvolvimento.

Contudo, um ano depois (Freud, 1908/1976), afirma que as respostas dos adultos não satisfazem devido à incompatibilidade entre as explicações presentes no discurso dos adultos e as concepções da criança movidas pela pulsão, ou seja, movidas por uma tentativa de satisfação sexual. Freud assim nos revela que a criança, em suas investigações sexuais, pensa com o corpo, ou seja, pensa atravessada pela pulsão.

A ideia de um pensamento movido pela pulsão implica que não se trata propriamente de um movimento de racionalização e, portanto, o esclarecimento do adulto é recusado por não satisfazer aquilo que é propriamente determinante do impulso investigativo. Essa ideia leva Freud a sustentar, no acréscimo de 1915 aos Três

ensaios, o aparecimento, nesses primeiros anos da infância, da “pulsão de saber ou de

investigar”, que será nessa ocasião caracterizada como uma pulsão não elementar, composta, de um lado, por uma “forma sublimada de dominação” e, por outro, pela “energia escopofílica”, bem como “atraída, de maneira insuspeitadamente precoce e inesperadamente intensa, pelos problemas sexuais, e talvez seja até despertada por eles” (Freud, 1905/1996, p. 183).

Dessa forma, poderíamos problematizar a proposta freudiana de 1907 acerca do esclarecimento sexual como forma de estancar as teorias sexuais infantis, apontando para algo que nenhuma resposta objetiva do adulto sobre questões ligadas à origem dos

bebês poderia satisfazer na curiosidade sexual da criança, dando a essa insatisfação um caráter estrutural.

Freud (1908/1976) afirma que é na medida em que o nascimento de um novo bebê assim como a constatação da diferença sexual são sentidos como ameaças de perda, o que implicaria uma ameaça ao eu da criança, é que esses acontecimentos “aguçam sua capacidade de pensamento” (1908/1976, p. 216). Mas o que faz com que essas observações sejam sentidas como ameaça?

Conforme vimos no primeiro capítulo, o modo como Garbarino (2012) interpreta a noção freudiana de pulsão de saber remete à questão da dicotomia entre o interno e o externo. Isso porque considera que as formulações infantis estão submetidas ao desenvolvimento – seja cognitivo ou psicossexual – entendido como processo de gradual apreensão dos conflitos que os fatores externos colocam ao pensamento infantil, levando às reestruturações que permitem acomodar as perturbações. Contudo, essa explicação não responde acerca do que faz com que os ditos fatores externos afetem o pensamento da criança.

Para dar encaminhamento às questões que nos convocam, será necessário retornar justamente a Freud. Mais especificamente, ao caso clínico onde tais questões se delineiam no pensamento freudiano, o caso do pequeno Hans (Freud, 1909/1996). Esse retorno visa inserir as teorias sexuais infantis no contexto das teorizações freudianas sobre o recalque, a angústia e a castração, essencial para enfrentar a questão da causalidade no que diz respeito a esse engajamento da criança nas investigações sexuais, base do interesse pelo conhecimento.

3.2. Hans: articulações entre teorias sexuais infantis, angústia e castração