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Emergência de novidades epistêmicas: do sujeito epistemológico ao “sujeito

1. A incorporação da afetividade aos estudos piagetianos

1.1. Emergência de novidades epistêmicas: do sujeito epistemológico ao “sujeito

Uma das principais referências quando se trata de investigar os processos cognitivos – especialmente no Brasil – é a de Jean Piaget, cuja teoria sustenta que o conhecimento implica sempre um processo de construção. Piaget adota o estruturalismo como modo de abordar os processos epistêmicos enquanto submetidos a leis estruturais. No entanto, além de estruturalista, ele é também construtivista e, assim, sua teoria afirma que o conhecimento é resultado de uma atividade do sujeito na medida em que as estruturas são concebidas como totalidades fechadas, mas também abertas. Ou seja, trata-se de sistemas em transformação, pois as estruturas novas se constroem a partir dos limites das anteriores, levando ao aparecimento de novidades não contidas de antemão no conjunto dos possíveis.

Apesar de dar destaque à atividade do sujeito como aquela que possibilita a emergência de novidades, as ações não são atribuídas a um sujeito consciente comandando o processo. O sujeito epistemológico piagetiano é, antes, um “centro de funcionamento” (Piaget, 1968, p. 57) do princípio de equilibração, postulado como lei estrutural que orienta os processos epistêmicos no sentido de uma reconstrução contínua das estruturas cognitivas. Quando fala em atividade do sujeito, frisa, então, tratar-se de “um sujeito epistemológico, isto é, dos mecanismos comuns a todos os sujeitos individuais de mesmo nível, ou ainda, do sujeito ‘qualquer’” (Piaget, 1968, p. 57). Assim, a emergência de novidades é pensada na chave das reestruturações contínuas orientadas pela equilibração majorante (Piaget, 1976), ou seja, por uma lei de coerência interna que impõe à atividade um jogo de assimilações e acomodações.

A concepção piagetiana de estruturas de conhecimento ao mesmo tempo fechadas – porque possuindo uma coerência interna – e abertas – na medida em que possibilitam a emergência de novidades – suscita a questão da relação entre a estrutura e seu funcionamento, de tal modo que esse não seja a eterna reiteração do mesmo, mas se oriente justamente para a emergência de novidades. Segundo a teorização piagetiana, é a própria lei estrutural de regulação que impõe a passagem de um patamar a outro de conhecimento, a partir do momento em que as perturbações aos esquemas consolidados exigem novas acomodações. No entanto, a pergunta que Piaget não se coloca nessa

explicação é acerca do que faz com que a perturbação afete o pensamento, sendo sentida como tal e causando a gênese de novas formas de conhecimento.

Tendo-se dedicado em boa parte de sua obra à definição das formas próprias aos diferentes níveis da estruturação cognitiva, a questão funcional não esteve, contudo, ausente das pesquisas em psicologia genética. Inhelder (1992/1996, p. 8) localiza nessas pesquisas, principalmente as anteriores à década de 1970, uma ênfase maior na definição de uma “arquitetura geral do conhecimento” em concordância com a circunscrição de Piaget daquilo que era o “centro de interesse de seus estudos”: as “categorias fundamentais do conhecimento, sem as quais nenhuma adaptação à realidade e nenhum pensamento coerente seriam possíveis”. Afirma ainda (Inhelder, 1992/1996, p. 8) que: “É nesse sentido que surge o sujeito epistêmico, sobretudo como o sujeito de um conhecimento normativo” e que, com isso, a psicologia presente nos estudos piagetianos “se põe, de certa maneira, a serviço das normas, e utiliza, para esse fim, modelos escolhidos do pensamento científico”.

Conforme relatam Coll e Gillieròn (1995), Piaget e sua equipe, em seus estudos mais tardios, se voltam mais especialmente aos mecanismos de transição de um nível a outro da organização do conhecimento, enfatizando a questão do funcionamento. Inhelder (1992/1996), considerando a trajetória de investigação piagetiana, afirma que a questão funcional se encontra marcadamente presente nos primeiros estudos sobre a linguagem e o pensamento, tendo sido em seguida subordinada “ao programa das pesquisas estruturais”, voltado a delimitar a arquitetura da construção do conhecimento. No entanto, no período final da obra piagetiana, a questão funcional seria retomada nas pesquisas acerca dos mecanismos da construção do conhecimento, com destaque para o princípio de equilibração. Para ela, são esses estudos os que sustentam a afirmação de uma epistemologia construtivista centrada nos processos funcionais de um sujeito ativo.

No entanto, chama a atenção de Inhelder o fato de, nessas pesquisas, deparar-se com a particularidade das estratégias de resolução de problemas, constatando que, a despeito da noção de sujeito epistemológico como aquele que congrega “os mecanismos comuns a todos os sujeitos individuais de mesmo nível” (Piaget, 1968, p. 57), esses “sujeitos individuais”, em seus processos cognitivos, não revelariam apenas “mecanismos comuns”, mas seriam marcados por algo de singular. A partir disso, a autora afirma a importância de distinguir o sujeito epistêmico do “sujeito psicológico

individual”, distinção que “reflete as formas de elaboração complementares do conhecimento do sujeito, que tende tanto ao conhecimento normativo quanto ao conhecimento pragmático e empírico” (Inhelder, 1992/1996, p. 9). Com isso, propõe complementar a “análise categorial do sujeito epistêmico” com uma “análise funcional do sujeito psicológico” (Inhelder, 1992/1996, p. 9).

Por esse caminho, o construtivismo epistemológico poderia ser completado com um construtivismo psicológico, capaz de atrelar a criação de novidades aos procedimentos particulares. Enquanto a fecundidade estrutural seria dada por sua tendência majorante, ou seja, pela própria lei de coerência interna, a pluralidade dos procedimentos é o que permitiria “a criatividade na descoberta de heurísticas novas” (Inhelder, 1992/1996, p. 21). Afirma, então, que o construtivismo psicológico poderia se desenhar como uma “teoria da inovação” (Inhelder, 1992/1996, p. 16).

A partir desse desafio, o que Inhelder (1992/1996, p. 15) propõe é a retomada de aspectos de “psicologia funcional” subjacentes à psicologia genética. Sem recusar a dimensão epistêmica do funcionamento, define a especificidade da perspectiva funcional pelo interesse nas intenções e valores que acompanham o sujeito psicológico em sua atividade cognitiva. Em suma, afirma (Inhelder, 1992/1996, p. 9): “Trata-se, pois, de visualizar o sujeito com os fins a que se propõe e os valores que atribui. Esses aspectos nos parecem constitutivos do que poderíamos chamar de um processo de individualização do conhecimento”.

Ao sustentar a passagem “do estudo das finalidades gerais da evolução explicadas pela equilibração” ao “estudo das finalidades particulares a que se propõe um sujeito”, Inhelder aponta para a existência de uma “orientação intencional e hermenêutica” da psicologia genética, alinhada com a tradição da psicologia funcionalista do início do século XX que teria influenciado sobremaneira os estudos piagetianos. A despeito dessa influência e da confluência entre a psicologia piagetiana e as “correntes das ciências cognitivas americanas, especialmente da cibernética e da Inteligência Artificial” (Inhelder, 1992/1996, p. 18), predominaria, ao longo do século, nas orientações teóricas da psicologia, as perspectivas estruturalistas. Seria a partir do “aparecimento de um novo interesse pelo indivíduo, favorecido por certas incompletudes do estruturalismo” que as correntes funcionalistas encontrariam a possibilidade de retorno, com destaque para a reaproximação entre as abordagens cibernéticas e uma “psicologia da vontade” (Inhelder, 1992/1996, p. 19).Trata-se de um resgate do que tinha sido originalmente

expulso das investigações piagetianas através das modificações propostas no interior da psicologia genética pelos estudos em torno dos procedimentos e descobertas.

1.2. Da particularidade à afetividade: a sujeição do problema aos