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O infantil como tempo de transição e sua persistência como disfunção

4. Discussão: Da integração entre o cognitivo e o afetivo à dialética intersubjetiva da demanda

4.2. O infantil como tempo de transição e sua persistência como disfunção

Conforme apresentado no primeiro capítulo, esse programa de investigação voltado à expansão do paradigma piagetiano pela inclusão do tema da afetividade leva alguns estudos a integrar às referências teóricas a psicanálise enquanto teoria da afetividade, anexando-a com isso aos pressupostos da psicologia. No entanto, o potencial da teoria psicanalítica em dar à diferença um lugar estrutural fica anulado pela crença no desenvolvimento que faz com que o paradoxo próprio à estrutura significante que rege o psiquismo se confunda com um tempo de transição próprio a um processo evolutivo de gênese.

Ao abordar as teorias sexuais infantis, Freud se depara com esse paradoxo: por um lado, seriam o berço do interesse da criança pelo conhecimento a partir da curiosidade em desvendar um saber sobre o sexual; por outro lado, são marcadas por uma impossibilidade de desvendar o enigma da origem dos bebês e da diferença sexual. Diante disso, afirma que o fracasso dessas teorias tem relação principalmente com o profundo enraizamento que a premissa universal do pênis parece desenhar na realidade psíquica.

Mas quando parecesse assim bem encaminhada para descobrir a existência da vagina e inferir que a penetração do pênis paterno na mãe foi o ato que gerou o bebê no corpo desta - nesse momento crítico, a criança perplexa e impotente é obrigada a interromper sua investigação. O obstáculo que impede que ela descubra a existência de uma cavidade que acolhe o pênis é a sua própria teoria de que a mãe possui um pênis, como um homem. Não é difícil concluir que o malogro de seus esforços intelectuais o faz rejeitá-los e esquecê-los (Freud, 1908/1976, p. 221-2)

Com isso, Freud postula que o impulso investigativo tende a recalcar sua origem sexual, em consonância justamente com as vicissitudes da sexualidade infantil, necessariamente recalcada e constitutivamente inconsciente. Diante da impossibilidade de saber sobre aquilo que está em causa na origem do bebê (e de sua própria origem, portanto), o sujeito desviaria seu impulso investigativo para fins não-sexuais.

Essa explicação freudiana acerca da relação entre recalque e conhecimento tende a ser tomada, na perspectiva do desenvolvimento, como a descrição de um processo de gênese, confundindo o recalque com um processo de superação e fazendo do paradoxo um tempo de transição. Garbarino (2012) utiliza o termo crença infantil com o intuito de marcar a diferença dessa em relação a uma explicação objetiva correspondente a um modo de pensamento adulto e propriamente científico baseado na verificação de

hipóteses. A explicação que a autora dá a esse paradoxo próprio a essa investigação sexual marcada pela recusa da realidade objetiva é a de que se trata de um período de transição entre um modo e outro de pensamento, marcados por diferentes legalidades estruturais.

Subjacente a essa explicação está uma concepção de estrutura como circunscrita a um estágio com suas condutas próprias e, portanto, supondo que haja diferentes estruturas que se relacionam hierarquicamente, implicando que o desenvolvimento consiste na passagem de uma inferior a outra superior que a engloba. Essa concepção sustenta a possibilidade de falar em modos de funcionamento do psiquismo conforme as fases do desenvolvimento. Com isso, a ideia de gênese se atrela a essa passagem de uma estrutura a outra tomada no tempo como sequência cronológica.

Assim, considerando o Ego da criança como ainda “fraco e imaturo”, as teorias sexuais infantis seriam a manifestação desse momento de transição marcado, de um lado, pela curiosidade e investigação sexual e, por outro lado, pela prevalência ainda do princípio do prazer. Essas crenças infantis seriam então o resultado da tentativa de submeter a curiosidade a um modo de pensamento sob a legalidade do processo primário, marcado pela ausência de verificação, isto é, pela negação da realidade em favor da fantasia. O pensamento típico da criança seria marcado pela certeza e pela crença, enquanto o pensamento típico do adulto, pela dúvida e, portanto, pelas hipóteses a verificar. Consequentemente, o processo de desenvolvimento envolveria a construção de um modo de pensamento propriamente científico.

Na medida em que o desvio da norma insiste ele é tratado, então, como compondo o conjunto dos “transtornos” (Souza, 2014). Nesse sentido, o modo como a teoria psicanalítica é assimilada nos estudos sobre os aspectos afetivos do desenvolvimento faz com que as respostas discordantes se reduzam a ser o efeito contingente de falhas no processo de desenvolvimento, anulando o potencial da psicanálise para pensar aquilo que na conduta do sujeito resiste a se adequar à sua determinação por um princípio normativo.

Garbarino (2012) reconhece que o termo infantil, em psicanálise, não equivale propriamente àquilo que diz respeito à criança, mas àquilo que persiste como traço na vida psíquica do adulto. No entanto, ao integrar isso no modelo desenvolvimentista, considera que esse traço infantil persistente resulta do fato de que a dissolução do complexo de Édipo “raramente consegue ser enfrentada de maneira ‘ideal’, ou seja,

corretamente em termos psicológicos e sociais” (Garbarino, 2012, p. 85), levando à presença de atitudes consideradas “pré-críticas” e “pré-objetivas” também no adulto. Com isso, a presença do infantil não teria caráter estrutural, mas contingente, ligado a um processo de desenvolvimento do Ego mais ou menos distante do “ideal” de atenuação do narcisismo infantil.

A crença no desenvolvimento implica, portanto, de um lado, que o paradoxo em questão nas teorias sexuais infantis seja anulado, passando a ser interpretado como algo passageiro: um tempo de transição. Complementarmente, mesmo reconhecendo que, para a psicanálise, o infantil não é algo que se supera, mas justamente o que persiste na vida psíquica do adulto, essa persistência de uma legalidade considerada inferior convivendo com uma superior é atribuida a falhas na integração de um no outro, fazendo com que o inconsciente seja considerado fonte de erro.