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Da sucessão primitiva à sucessão telemática

CLOUD COMPUTING E DIREITO DAS SUCESSÕES

3. Da sucessão primitiva à telemática e seus novos rumos

3.1. Da sucessão primitiva à sucessão telemática

Na pós-modernidade, a Sucessão Telemática volta-se à (in) transmissibidade de dados referentes à uma pessoa no mundo virtual, impondo-se cada vez mais a necessidade de regulamentação. Se isto não ocorrer, passar-se-á a ter uma massa de cadáveres eletrônicos pela rede mundial de computadores, que precisam de sua devida destinação, como se vagassem, sem receber as últimas homenagens. Dessa forma, qual o tratamento deve ser dado ao corpo eletrônico? Dar amplo e irrestrito acesso dos dados do falecido aos herdeiros, inexistindo qualquer limite? Reconhecer direito de personalidade póstumo, através de núcleos invioláveis de dados, impenetráveis, mesmo contra os próprios herdeiros? A compreensão dos institutos atinentes ao Direito das Sucessões, no transcurso da História, permite levantar sugestões e soluções, diante de inúmeros desafios decorrentes do mundo virtual.

Na pré-história, não havia propriedade individual, e, portanto, a família, era sujeito de direitos. Como o grupo não morria, inexistiam direitos sucessórios (Segré, 1930). Com o transcurso do tempo, os instrumentos utilizados em vida pelo extinto que não eram enterrados, passaram a ser transmitidos, podendo ser cogitada a gênese da sucessão (Pontes De Miranda, 1972). O interessante é que, desde lá, já existiam preocupações de ordem patrimonial, como extrapatrimonial, neste último, preparando o falecido para o que viria. Com o matriarcado, estabelecendo-se o parentesco matrilinear, era possível identificar direitos sucessórios. Os bens móveis eram transmitidos, enquanto os campos de caça e as cavernas eram intransmissíveis por herança, permanecendo na posse da tribo (Maximiliano, 1942).

No direito grego clássico, a morte era interpretada como uma segunda existência, como uma mudança de vida, tanto o é que na sepultura eram depositados objetos pessoais utilizados pelo defunto em vida. Os mortos e vivos seguiam muito próximos (Ariès, 1975). A sucessão não abarcava somente questões patrimoniais, mas havia o culto do morto, da imagem, enfim, o fogo sagrado que não se poderia deixar apagar, no campo extrapatrimonial (Coulanges, 2014). Por sua vez, no direito romano, aplicava-se o princípio da continuação da pessoa do defunto pelo sucessor, ou seja, o

sucessor subentrava nas relações ativas e passivas do patrimônio do defunto (Scialoja, 1898). Operava-se uma confusão patrimonial entre o patrimônio do antecessor e do extinto (Ronga, 1899). O novo pater família passava também a exercer funções de administração e sacerdotais, mantedo o culto da família, ou seja, o sacra (Scialoja, 1898). No direito germânico, não havia sucessão, os bens eram da família, que permaneciam em condomínio. Posteriormente, com a introdução da propriedade privada, aplicou-se a sucessão, todavia, não sendo admitido o testamento (Mazeaud, 1999).

Na Idade Média, a sociedade era extremamente vinculada à terra (Gilissen, 1995). O direito das sucessões, com base nos costumes, era bastante diversificado, havendo multiplicidade de sistemas. Observavam-se, de modo geral, os privilégios da primogenitura e o princípio da masculinidade, com a finalidade de preservar a indivisibilidade do feudo. Importante destacar que as relações que envolviam direitos de natureza não patrimonial, como títulos honoríficos e acadêmicos, estes não eram objeto de transmissão causa mortis (Degni, 1938).

Em decorrência da ascensão da burguesia, bem como descontentamento quanto aos privilégios aristocráticos, a Revolução Francesa também impactou a matéria de direito das sucessões, elevando ao grau máximo o princípio da igualdade absoluta entre os herdeiros, inclusive, entre naturais e legítimos, limitando a liberdade de testar. Houve, ainda, a extinção do sistema de sucessão dos nobres (Mazeaud, 1999). Cumpre aduzir que, posteriormente, com o surgimento do Código Napoleônico, em 1804, dada as suas características plúrimas, com veios revolucionários e direito costumeiro, foi instituído um direito sucessório composto. As divisões sucessórias, proibidas pelo direito medieval, visto a indivisibilidade do feudo, e, possíveis na vigência do Código Civil de Napoleão, geraram inúmeras pequenas propriedades rurais, que passaram a ter sérios problemas para a sua manutenção econômica. Dessa forma, para evitar a desagregação da propriedade, surgem leis especiais, buscando protegê-las, quando da partilha, na sucessão (Halpérin, 2001).

Por sua vez, quanto ao Direito Sucessoral Telemático, incumbe buscar construir limites positivos e negativos de acesso aos dados do falecido pelos herdeiros, a partir do direito de privacidade, voltando-se, nesse particular, à Cloud Computing. Se, com a morte, o corpo físico é enterrado, recebendo as homenagens, desaparecendo do mundo real, o corpo eletrônico, que não sofre qualquer desgaste, prossegue. Ora, como se viu ao longo da história, não é inédito estabelecer limites para que seja possível transmitir ou vedar a transmissão de daos. Cumpre destacar que, na Pós- modernidade, os antigos diários com anotações personalíssimas guardadas a sete chaves, revelando gostos, pensamentos, inclinações, confissões religiosas, ou seja, toda a ordem de dados sensíveis, tendem a migrar do mundo físico ao digital, em que as delicadas chaves são substituídas por senhas. Dados que ora se tormam indestrutíveis, que o tempo não apaga, restando intactos e legíveis, pelo transcorrer dos séculos, praticamente imunes a elementos físicos, químicos ou biológicos. Dessa feita, bens de natureza patrimonial que, por lei, são objeto de partilha, como as obras artísticas, literárias, científicas, se manisfestam em um novo meio, deslocando-se do corpóreo ao virtual. O famoso fotógrafo que, durante toda a sua vida, reuniu amplo acervo de imagens, não mais o guarda nos antigos escaninhos ou nos típicos armários

acinzentados, ao fundo de seu estúdio, longe dos olhos de seus clientes. Tampouco destaca um ambiente especial, afastado de qualquer iluminação para guardar os negativos, mas armazena-os digitalmente em um banco de dados. Da mesma forma, o advogado, profissional liberal, que, durante uma vida, construiu um extenso banco de petições por não mais confiar em arquivos que mofam e estão sujeitos às traças, arquiva-os digitalmente, para que possam ser aproveitados em próximos casos, adaptando-os às novas realidades que se apresentam. Por sua vez, o arquiteto, aos poucos, distanciou-se do nanquim e do papel-manteiga, preferindo a tela do computador ao desenho à mão livre, projeta em programas especializados, armazenando-os em arquivos digitais. Enfim, parte relevante de dados personalíssimos ou de cunho patrimonial, não são mais fisicamente acessíveis, dependendo do mundo virtual.

Isto implica em mudanças no comportamento dos sucessores, após a morte do autor da herança. Passados alguns dias do falecimento, a família se reúne, novamente, não mais para somente dividir os bens corpóreos – imóveis, automóveis, créditos, até os próprios bens pessoais do falecido, como seus óculos, anéis, cachimbos, bengalas – de acesso físico e direto pelos sucessores, pelo ingresso ao ambiente doméstico do falecido, mas devem se preocupar com outra realidade: a virtual. Novas portas devem ser transportas, cujos acessos não dependem somente da vontade dos herdeiros, nem da força física de um chaveiro ou de um arrombamento consentido e lícito para a tomada de posse dos seus sucessores, mas mediada por uma pessoa jurídica, um provedor de conteúdo, que armazena dados em uma Cloud Computing.

A partir da reportagem do jornal Zero Hora intitulada “Veja o que acontece com os perfis nas redes sociais quando uma pessoa morre”, foi apresentado um infograma, pela “iinterativa” que trouxe importante esclarecimento sobre o posicionamento de grandes empresas do setor de Cloud Computing respondendo o questionamento: “Quem é dono de seus dados?” Estas foram as respostas:

a) Facebook: “Você. Exceção: Se o consentimento prévio é concedido ou decretado pelo falecido, ou imposto pela lei”;

b) Twiter: “Você. Exceção: Podemos aceitar uma pessoa autorizada para agir em nome do estado ou com um familiar próximo do falecido”; c) Pinterest: “Porque respeitamos a privacidade dos usuários, não

podemos ceder nenhuma informação pessoal ou login da conta”; d) Linkedin: “Você. Exceção: A menos que o Linkedin tenha firme certeza

de que a divulgação é permita pela lei ou legitimidade necessária para completude de uma requisição ou processo legal”;

e) Google: “Você. Exceção: Em raros casos podemos fornecer conteúdo da conta para um representante legal do falecido” (Cordovà, 2014). Este, em verdade, é o grande desafio da Sucessão na Cloud Computing – estabelecer os limites positivos e negativos de acesso, à luz do direito de privacidade, sobretudo, respondendo a um importante questionamento, de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro: Os direitos de personalidade post mortem e, neste particular, o direito de privacidade, poderiam vedar o acesso aos próprios herdeiros dos dados na Cloud Computing?