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Dança Contemporânea e Processos Identitários

No documento DANÇAR AS VICISSITUDES DE UMA NAÇÃO (páginas 58-61)

CAPÍTULO 4 – ANÁLISE E DISCUSSÃO DAS ENTREVISTAS

4.3. Tradição versus Contemporaneidade

4.3.2. Dança Contemporânea e Processos Identitários

Analisando os testemunhos dos intérpretes constatamos que tendem a referir-se à dança contemporânea em contraponto à dança tradicional.

Contrariamente à dança tradicional, a dança contemporânea, ao permitir movimentações do corpo independentes da melodia ou do ritmo da música, é associada

por um dos intérpretes à liberdade para explorar o corpo:

“Eu fico um pouco dividido, sinceramente eu gosto muito de dança contemporânea porque sabes fico um pouco mais livre para explorar o próprio corpo, porque se fores a ver em dança tradicional a gente dança aquilo que os músicos tocam (…) enquanto na dança contemporânea, não precisamos exactamente de dançar a música, a gente só precisa criar alguma coisa que pode facilitar ou dançar aquela música” (Pedro, Maio de 2011).

São apontadas como diferenças significativas entre dança tradicional e dança contemporânea o facto de a dança contemporânea se centrar na técnica e no virtuosismo – como por exemplo o “pé esticado” –, os movimentos fluidos e no solo, e ainda, o trabalho de pares em contacto. Note-se que nas danças tradicionais os intérpretes tendem a interagir (por exemplo, frente a frente ou lado a lado) de um modo onde raramente se observa contacto corporal.

Quando realizam trabalhos de dança contemporânea, os intérpretes encontram

dificuldade em realizar movimentos fluidos e de contacto:

“Por causa do nosso treinamento para fazer essa dança tradicional que é muito

duas horas de espectáculo então o corpo fica assim muito duro porque é muito rápido muito energético e então quando chega a altura de fazer a dança contemporânea a gente tem um bocado de dificuldade de assimilar esses movimentos mais fluidos, a dança contemporânea tem muito disso, tem movimentos mais fluidos e movimento de contacto enquanto na dança tradicional a gente não faz nada de contacto, podemos dançar aos pares um à frente do outro ou ao lado, mas nunca estamos assim (em contacto) ” (Pedro, Maio de 2011).

Para os intérpretes a dança contemporânea é relacionada com o quotidiano, mas

não o ‘quotidiano da dança tradicional’ e nada tem a ver com a tradição. “A dança

contemporânea é a junção de muitas coisas do que tu vives no dia-a-dia, mas é diferente porque não tem aquela junção com a tradição”. Ou seja, a dança tradicional é relacionada com usos e costumes, práticas culturais associadas a um quotidiano que se conota a heranças do passado. Porém, a dança que continua a ser desenvolvida no presente e que tem uma raiz tradicional não é considerada contemporânea – enquanto a dança que designam como contemporânea, é uma dança do presente, mas que não consideram parte das suas tradições.

A directora artística afirma que a dança contemporânea feita pelos ‘europeus’

não é apreciada pelos ‘africanos’:

“Porque nós em África não somos muito pelo contemporâneo, posso dizer pelo contemporâneo puro, aquele que nos é dado a conhecer pelos europeus” (Cândida Mata, 27 de Maio, 2011, p.99).

Justifica a sua afirmação, pela dificuldade de compreender e de encontrar elos de identificação com a dança contemporânea. Assim, não entender o movimento está directamente relacionado com não o apreciar:

“Então quer dizer… então quando se fala de contemporâneo estamos a ver muito mais uma parte muito clássica, uma parte que muitos de nós já não sabemos apreciar e perceber, os movimentos que estão a acontecer” (Cândida Mata, 27 de Maio, 2011, p.99).

A opinião de Lopes Graça sobre projectos anteriores de dança contemporânea realizados pela CNCD com coreógrafos estrangeiros é a de que quando os coreógrafos ‘europeus’ se confrontam com a realidade local de Maputo, encontram dificuldades em

se relacionarem com algo que não lhes é familiar. Acrescenta também que a vertente

realidade e à mentalidade moçambicanas e que, portanto, este género de dança não

suscita adesão.

“Depois tem a ver com a própria ideia de uma dança que possa ser conceptual, também não encontra eco, não tem nada a ver, não bate certo. Não tem a ver com a realidade de cá. Pode até haver algumas pessoas que se interessem, mas depois morre. Para fazer qualquer coisa cá é preciso descer à realidade do que é Moçambique. Essas experiências tiveram valor na altura, mas não tiveram muita continuidade, a não ser a experiência pessoal na vida de algumas pessoas” (Graça, 2011 p.114).

Na sequência destes testemunhos, encontramos, por um lado, a associação da dança contemporânea à liberdade para mover o corpo (sem obedecer a um padrão fechado), e por outro, à necessidade de lhe atribuir um significado; e esse significado, podemos inferir, só poderá advir de uma ‘dança contemporânea africana’.

A relação entre liberdade de movimento e dança contemporânea, que alguns intérpretes referiram, é formulada por Lepecki (2004) quando se refere à ausência de fronteiras e de formatos pré-definidos que caracterizam as obras de dança situadas nesta linhagem.

Importa, a este respeito, reflectir sobre o trabalho de Lignière (2009), coreógrafa belga de dança contemporânea, quando descreve o processo de criação que partilhou com Phullu, bailarino e coreógrafo de dança tradicional nigeriana. Durante esse processo, um dos entraves que encontrou ocorreu quanto procurou propor alternativas aos padrões de movimento repetitivos, bem como à postura corporal característica da dança tradicional. Lignière (2009) referiu ainda a necessidade que Phullu manifestou para que houvesse uma narrativa na base da criação do movimento; por outras palavras, o movimento composto dum modo abstracto encontrou resistência, no que respeita à compreensão ou desenvolvimento do mesmo.

Este obstáculo aparentemente erigido perante o entendimento das metodologias da “dança contemporânea ocidental”, e o facto de as representações sociais sobre a ‘dança’ a associarem à dança tradicional, esta, para mais, valorizada como símbolo identitário, compromete, segundo Panaíbra Gabriel, intérprete e coreógrafo da nova geração de artistas de Maputo, a possibilidade de existir criação artística contemporânea na dança moçambicana (Gabriel, 2001).

Importa, por conseguinte, reflectir sobre as diferenças no modo de entender o que significa “arte contemporânea” ou o “contemporâneo”, em contextos africanos e em contextos ocidentais. Nii-Yartey (2009) propõe a invenção de uma dança original e actual, africana, na qual os conteúdos e símbolos derivem da realidade e experiência africanas.

Podemos depreender através deste confronto de opiniões, que a dança contemporânea moçambicana nos é sempre apresentada por comparação ou contraste com a dança tradicional. Mesmo quando reconhecem os movimentos, temas e sonoridades da dança contemporânea, podemos inferir, nos depoimentos dos intérpretes, a necessidade de lhes atribuir sentidos que os liguem ao seu próprio campo experiencial e com os quais se possam relacionar.

No documento DANÇAR AS VICISSITUDES DE UMA NAÇÃO (páginas 58-61)