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Entre Preservação e Transformação do Património Coreográfico

No documento DANÇAR AS VICISSITUDES DE UMA NAÇÃO (páginas 61-65)

CAPÍTULO 4 – ANÁLISE E DISCUSSÃO DAS ENTREVISTAS

4.3. Tradição versus Contemporaneidade

4.3.3. Entre Preservação e Transformação do Património Coreográfico

Paralelamente ao seu propósito fundamental – preservar o que considera ser a identidade, cultura e tradições Moçambicanas – a companhia tem realizado projectos com coreógrafos estrangeiros. Cândida Mata refere:

“Temos realmente esta abertura de trabalhar com diferentes coreógrafos que é muito importante para que os nossos artistas tenham uma visão global do que está a acontecer no mundo, não estamos fechados só na nossa concha Moçambique, só podemos fazer dança tradicional, só podemos fazer o folclore – não – a nossa companhia está aberta, podemos trabalhar o clássico, porque temos pessoas formadas em boas escolas que seguiram o ramo clássico, temos pessoas formadas em Cuba na área de dança moderna, então acho que temos uma miscelânea muito rica de pessoas com aptidões para poderem desenvolver qualquer tipo de dança.” (Cândida Mata, 27 de Maio, 2011, p.99).

Ao longo de todo o seu discurso a directora artística sublinhou a missão primordial da CNCD – preservar e divulgar a cultura moçambicana – mas aqui é introduzido um novo elemento: a ‘abertura para trabalhar com diferentes

coreógrafos’. Os motivos aduzidos referem ser essa uma forma de estimular nos

artistas moçambicanos visões mais globais e a possibilidade de experimentar diferentes estilos de dança. Esta noção de abertura aparece associada à ideia de conseguir fazer o mesmo que os outros (fora de Moçambique) fazem. A existência de uma contemporaneidade própria, na qual seria a companhia a desenvolver as suas obras contemporâneas, parece ainda não se vislumbrar. Ou seja, o propósito de promover nos artistas da CNCD essa visão mais abrangente, sobre a dança e sobre o mundo, não

parece ser perspectivado como um impulso vindo de dentro, originado por criações contemporâneas realizadas por coreógrafos moçambicanos.

Outro aspecto a salientar é o facto de Cândida Mata se referir amiúde à formação dos intérpretes em escolas estrangeiras. Parece haver alguma ambiguidade entre o valor atribuído à formação de bailarinos em dança tradicional (para fazerem aquilo que é deles) e as reiteradas menções à necessidade de uma formação técnica das danças

ocidentais, nomeadamente a dança clássica e a moderna. Ou seja, tanto a aquisição

destas competências técnicas como dançar outros estilos de dança, são subentendidos como vantajosos – ou mesmo como “progresso”- embora simultaneamente seja sublinhado não ser esse o desígnio da companhia.

Os intérpretes referem-se repetidamente à CNCD como um padrão que deve ser mantido imutável. Os objectivos enunciados pelos intérpretes foram: ‘investigar, desenvolver e preservar o património cultural moçambicano’. Rastreamos, então, algumas disparidades nas várias percepções sobre quais devem ser os objectivos da companhia, sobre o que se entende por preservar e/ou desenvolver o património coreográfico. Se por um lado se alega a favor da preservação da tradição das danças rurais, por outro, denotam-se intenções sobre o desenvolvimento desse património, o que necessariamente conduz a um afastamento daquilo que se considera tradicional. Esta aparente contradição prende-se provavelmente com as metodologias e propósitos adoptados pela CNCD desde o seu início: se através da investigação das danças tradicionais, se transformam, adaptam e teatralizam estas danças, estas já não são, finalmente, as originais. Parece-nos que os intérpretes fazem equivaler a inclusão de mais danças tradicionais adaptadas no repertório ao ‘desenvolvimento do património cultural moçambicano’. As consequências de tais processos suscitam-nos uma reflexão: se o objectivo da CNCD é o de preservar e divulgar a cultura coreográfica moçambicana, finalmente, estas versões postas a circular, são reconstruções, ou reinterpretações coreografadas das danças tradicionais que se pretendem preservar.

Alguns intérpretes mencionam ver nas peças de dança contemporânea um resultado do fluxo contínuo de evolução do mundo, ao qual companhia resiste, persistindo no seu intuito de proteger um património coreográfico. A companhia deveria, então, permanecer estanque às mudanças do mundo, e a emergência da dança contemporânea seria apenas uma inevitabilidade indesejável. Um dos intérpretes afirma:

“Todas as obras estão desenvolvidas como esta aqui do Rui, e outras que já fizemos contemporâneas ou modernas, aparecem porque o mundo vai desenvolvendo, mas a própria companhia tem que manter a dança tradicional” (Mário, Maio de 2011).

A ideia de manter a tradição está, portanto, profundamente enraizada. Contudo, quase todos os intérpretes manifestaram vontade e gosto por explorar novas formas de dançar. De facto, a maioria realiza, paralelamente, trabalhos na área da dança contemporânea e denominam a sua actividade profissional na CNCD como o cumprimento de um dever. O reduzido tempo que sobeja para trabalhar independentemente é uma realidade que limita o concretizar desta motivação, apesar de explicitarem o desejo de desenvolver projectos pessoais na área da dança

contemporânea.

“Por enquanto com as dificuldades de espaço e tempo as coisas não correm muito, vão muito lentas, temos problemas de tempo, entramos aqui às oito da manhã e saímos às quinze então esse tempo fica muito curto para poder desenvolver outras actividades fora, temos que nos adaptar, temos umas duas horas para fazer qualquer coisa que é nossa, neste momento faço aqui aquilo que é o meu dever, faço aquilo que a companhia me incumbe e pronto” (Mário, Maio de 2011).

Esta afirmação qualifica o trabalho (em dança contemporânea) feito fora do âmbito da CNCD como “qualquer coisa que é nossa” e o trabalho na CNCD como um

“dever” aparentemente relacionado com cumprir uma obrigação e uma rotina diária

laboral. Como supramencionado, porém, muitos consideram a dança tradicional como ‘deles’; é com ela que se identificam, apesar de desenvolverem projectos pessoais na área da dança contemporânea que também reconhecem como “sua”. Esta dupla assumpção de uma identificação tanto com a dança tradicional como com a contemporânea, revelará uma necessidade implícita de desenvolver e aprofundar outras vertentes da linguagem corporal contemporânea. O que nos leva a levantar uma questão: será que estes intérpretes se sentem insatisfeitos ou pouco realizados na sua profissão no âmbito da CNCD?

Provavelmente a companhia não favorece estes espaços de criação, nem estimula os intérpretes a desenvolverem este tipo de projectos.

Lopes Graça reconhece a importância da contribuição social que a companhia tem dado através de peças de dança tradicional que alertam para temas como a

prevenção de doenças transmissíveis sexualmente, o recenseamento, a escolaridade, etc. O coreógrafo define dois tipos de repertório na CNCD: a ‘dança etnográfica’ e aquilo a que chama, as ‘incursões na dança contemporânea’, assim classificando os bailados de dança contemporânea apresentados até então pela CNCD.

Na opinião do coreógrafo o enfeudamento ao repertório da dança tradicional é limitativo para a CNCD. Defende que a companhia necessita de renovar o seu

vocabulário artístico, pois é essencial que haja inovação e diversidade para poder

circular no mercado internacional. Na sua estadia em Maputo pôde constatar que existe uma saturação do repertório tradicional e que isso se reflecte na diminuição do número espectadores que vão aos espectáculos da CNCD.

“Porque isso tem a ver com uma não evolução da companhia para um espaço de novidade. O repertório começou a gastar-se e as pessoas foram-se desligando. Deixaram de ser o público da companhia” (Graça, 2011, p.111).

Lucas expressa a dificuldade dos moçambicanos se manterem actualizados e a escassez de outras referências culturais.

“A percepção deles por um lado é um bocadinho naïve, existe uma apetência pelo update, da contemporaneidade, mas ao mesmo tempo a consciência dessa contemporaneidade não tem inputs” (Lucas, 2011, p.124).

Lucas analisa a problemática da contemporaneidade da CNCD relacionando-a a questões políticas e sociais. Refere que a história da companhia se mescla à própria história do país:

“Este momento agitadíssimo e de indefinição é o que encontras no país. Acho impressionante. É como se fosse uma epiderme da situação social. A grande baralhação é a própria consciência de qual é o lugar que a companhia ocupa

no mundo contemporâneo” (Lucas, 2011, p.124).

Se por um lado existe a vontade da direcção da companhia de manter a situação actual imutável, por outro existe a pulsão para evoluir, estar permeável a outro tipo de projectos. A nova direcção mostrou motivação e empenho para revitalizar a CNCD.

Gold foi de certo modo uma ‘lufada de ar fresco’ numa estrutura como a CNCD, e Cândida Mata manifestou o seu desejo de continuidade deste processo.

Em confluência com vários dos testemunhos apresentados, o coreógrafo moçambicano Panaíbra Gabriel defende a importância e a necessidade de criar algo

novo a partir de um olhar moçambicano sobre o presente (Gabriel, 2001). Também Deputter (2001) declara que a dança contemporânea africana deve surgir de África: “dos esforços conscientes dos bailarinos e coreógrafos africanos para desenvolver as suas danças” (Deputter, 2001).

É apropriado trazer para este debate o pensamento de Hobsbawm (2000), quando afirma que quando uma transformação rápida na sociedade enfraquece ou destrói padrões sociais para os quais as 'antigas' tradições tinham sido desenhadas, produzem-se novas tradições para as quais não eram aplicáveis. Hanna (1987), por seu turno, considera que é inerente à dança constituir-se como representação de relações de poder e de, por isso, desempenhar estrategicamente um papel político. A CNCD é disto um reflexo. A necessidade do poder político em reforçar a ideia de nação foi incorporada na actuação desta companhia. No entanto, a tradição não é um conceito estático (Hobsbawm, 2000). À medida que a nação se foi abrindo ao mundo e envolvendo em novas experiências, o conceito de tradição foi-se adaptando também às necessidades do poder político, modificando os seus paradigmas, os quais também se reflectiram nas concepções da dança (Hanna, 1987). O acolhimento do projecto Gold espelha uma das vertentes destas transformações em curso no seio da CNCD.

No documento DANÇAR AS VICISSITUDES DE UMA NAÇÃO (páginas 61-65)