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Dança e Projectos Interculturais: Potencialidades e Paradoxos

No documento DANÇAR AS VICISSITUDES DE UMA NAÇÃO (páginas 37-41)

CAPÍTULO 2 – ENQUADRAMENTO CONCEPTUAL

2.4. Dança e Projectos Interculturais: Potencialidades e Paradoxos

As questões do multiculturalismo e do interculturalismo estão na ordem do dia. Neste âmbito existem alguns estudos sobre intercâmbios culturais na área da dança. Muito poucos, todavia, se debruçam sobre as (também poucas) colaborações entre a dança portuguesa e a africana (Roubaud, 2012). Roubaud (2008) levanta questões para reflexão a propósito de como se tornou complexo o processo de reconstrução social, cultural e identitário num mundo global e pós-colonial, analisando, entre outros,

20 Culturarte – Cultura e Arte em Movimento – é um centro para o desenvolvimento das artes

performativas contemporâneas, em particular a dança, situado em Maputo. Panaíbra Gabriel é director artístico, coreógrafo e performer da Culturarte.

cooperações entre Portugal e os PALOP, como Dançar o que é Nosso, que referimos mais atrás. Deputter (2001), responsável por este projecto na associação Alkantara, defende que nestes países africanos, a comunidade artística está consciente da evolução da dança e que o sentimento de não acompanharem esta evolução gera nela um sentimento de frustração.

Investigações realizadas sobre projectos interculturais em dança, desenvolvidos em diferentes contextos geográficos e culturais, assinalam que os objectivos destes são, tendencialmente, os de criar novas linguagens coreográficas (Lignière, 2009; Nor, 2009). Lignière (2009) descreve o seu projecto em conjunto com o coreógrafo nigeriano Victor Phullu: a partir de movimentos inspirados na tradição Bata, criaram novo material coreográfico. Enfatiza que a dança africana utiliza dinâmicas, ritmos, tempos e espaços completamente diferentes dos da ocidental. Ao entrar num diálogo com estes elementos pôde examina-los a fundo, desenvolvendo e manipulando os mesmos, recorrendo a técnicas coreográficas do ocidente. Ao fazer isto, aprendeu outras formas de fundir modos de expressão distintos, transformando padrões tradicionais e fazendo- os comportar-se duma forma não convencional em relação à cultura-mãe. Quando nos fala do processo de criação, Lignière refere a dificuldade em contrariar o tipo de movimentos repetitivos e a postura característica da dança tradicional (joelhos semi- flectidos e báscula anterior) e também a necessidade que Phullu manifestou em existir uma narrativa (Lignière, 2009).

Referindo-se ao 1º encontro internacional do Dançar o Que é Nosso, em 1998, Deputter (2001) afirma que “ficámos conscientes do beco sem saída para o qual a ideia de fusão da dança tradicional africana com a dança ocidental moderna e contemporânea se estava a dirigir” (p.18). Justifica que neste tipo de tentativas de fusão o resultado “por muito honesto ou inteligente que seja o esforço, só pode ser artificial” (Deputter, 2001, p.20).

A propósito de projectos semelhantes, nomeadamente o de Clara Andermatt (na sequência do seu período de residências em Cabo Verde, anteriormente referido), Lepecki (2003) considera que estes têm o infeliz efeito de manter uma estrutura de criação coreográfica onde as relações de poder repetem modos colonizadores, no sentido mais literal do termo.

Nor (2009) discute as diferenças entre multi e interculturalismo, referindo que este último se refere à criação de uma nova cultura, através do diálogo entre culturas diferentes. O autor observa como o uso eficaz de ideias artísticas e de inovações criativas, vindas de experiências multiculturais e interculturais, deu origem a distintas identidades indígenas da dança moderna da Malásia. No entanto, a noção de dança contemporânea na Malásia, segundo o autor, é associada a uma reinvenção pós-colonial das tradições (da dança), plasmada nas relações dialógicas entre bailarinos e coreógrafos oriundos de contextos culturalmente diferentes.

Gil (2008), por outro lado, define o processo intercultural como sendo complexo, ambivalente, feito de fluxos e refluxos a requerer constantes renegociações. Acrescenta que este processo não se isenta de atritos, tensões e conflitos que, do simbólico ao político, permeiam a complexidade do momento intercultural.

Já Lepecki (2003) distingue o termo pós-colonial de conceitos como o de multiculturalismo ou miscigenação:

“A pós-colonialidade descreve uma hipotética transformação social resultante do desmoronamento dos impérios Europeus nos anos 50 e 60 (o último desses impérios sendo o português, que desaba em 1975 depois da Revolução dos Cravos). Assim, a pós-colonialidade (ou o pós-colonialismo) precede e permite a utilização dos outros termos (multiculturalismo, etc.) que seriam os nomes simpáticos que descrevem a entrada do corpo do ex-colonizado num sistema global de imagens, sons, peles e gostos onde o ocidental se redime do seu passado por via de uma ‘celebração’ da ‘cultura’ do até ontem colonizado” (Lepecki, 2003, p.9).

Lepecki (2003) reflecte acerca do papel da dança enquanto ‘crítica activa dos corpos colonizados’.

Ribeiro (2001), por seu lado, considera que existe uma tradição ocidental etnocêntrica que assenta na ideia de que todos os criadores não ocidentais são tradicionais e étnicos. O mesmo autor acrescenta que este é um modo “hábil de não reconhecer ao ‘não ocidental’ a capacidade de lidar com o século XX, a capacidade de inovar” (p.138). Ainda Ribeiro (2001) salienta a importância de se reconhecer que as culturas subalternas estão actualmente a construir a sua própria história – uma história pós-colonial – com os seus valores e com a invenção da sua tradição, que não corresponde necessariamente à história que os ocidentais lhe propuseram.

Um exemplo do que temos vindo a expor é mencionado pelo coreógrafo moçambicano Panaíbra Gabriel (2001) a propósito dos intercâmbios ocorridos durante o

Dançar o que é Nosso, quando manifesta o seu receio de que os intervenientes europeus “viessem impor os seus parâmetros de trabalho ignorando a criação artística local e dificultando o desenvolvimento da arte em África” (p.52).

Por outro lado, Rosenthal (2001) programadora de eventos de expressão multicultural expõe aspectos relacionados com o trabalho que desenvolve nesta área, onde revela a questão da comunicação, das expectativas em relação à cultura do ‘outro’ e do confronto com a realidade cultural do ‘outro’. Relata diferentes experiências pessoais que suscitaram mal-entendidos e desconfiança, decorrentes do desconhecimento mútuo dos respectivos códigos culturais.

Concluímos este capítulo de contextualização do estudo e do seu enquadramento teórico, nele abordando a origem e o desenvolvimento da Companhia Nacional de Canto e Dança e o seu posicionamento no mundo actual. Expusemos temas que nos pareceram pertinentes para procedermos à análise e discussão dos dados recolhidos durante a criação coreográfica Gold. Nomeadamente, as questões ligadas à relação entre a chamada dança tradicional moçambicana e a sua abertura ao mundo, subsequentes à independência do país, devida não só à formação internacional dos seus bailarinos, criadores e professores, mas também aos projectos interculturais em que estiveram envolvidos. Importa descobrir a forma como tradição e os diálogos interculturais ocorreram, as potencialidades e paradoxos, fluxos e refluxos inerentes a esses processos, ao longo de uma trajectória, não-linear, em busca de novas linguagens e narrativas. É neste enquadramento que formulamos, no capítulo que se segue, as nossas perguntas de investigação.

CAPÍTULO 3 – PERGUNTAS DE INVESTIGAÇÃO

No documento DANÇAR AS VICISSITUDES DE UMA NAÇÃO (páginas 37-41)