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Dança Tradicional e Processos Identitários

No documento DANÇAR AS VICISSITUDES DE UMA NAÇÃO (páginas 55-58)

CAPÍTULO 4 – ANÁLISE E DISCUSSÃO DAS ENTREVISTAS

4.3. Tradição versus Contemporaneidade

4.3.1. Dança Tradicional e Processos Identitários

As danças tradicionais de Moçambique, oriundas de zonas rurais, são descritas pelos intérpretes como “danças do campo; danças praticadas nas localidades”. Como referido anteriormente, a CNCD procede anualmente à recolha de danças tradicionais moçambicanas, em festivais de dança. Estas são posteriormente teatralizadas e apresentadas em espectáculos, em salas de teatro.

A dança tradicional é conotada pelos intérpretes ao ritmo da música: “em dança tradicional a gente dança aquilo que os músicos tocam, se os músicos tocam ‘tum tum tum’ a gente faz com as pernas aquela música”, ou seja, movimento e som, estão em

uníssono, o intérprete dança exactamente o mesmo ritmo da música – replica a música com o corpo.

Um dos intérpretes define a dança tradicional como uma dança feita por africanos. Revela que é na dança tradicional que se identifica, e que é através do som ritmado manifesta todo o seu ser:

“A dança tradicional é mais africana, temos mais africanos, acho que estou mais inclinado sinceramente para a dança tradicional porque eu gosto mais. A dança tradicional para mim me faz tirar tudo aquilo que eu sinto, então quando ouço o instrumento tradicional ele me traz, me tira, eu tiro, eu saio fora de mim, então vou explodindo através do som dos tambores e das timbilas e da música cantada” (Zé, Maio de 2011).

Segundo estes dois testemunhos, a dança tradicional liga-se totalmente à música

tradicional; poderia dizer-se que são indissociáveis. Outros intérpretes defendem que

o treino e a exigência física da dança tradicional fazem com que o corpo do intérprete fique tonificado e treinado para o tipo de movimento característico da dança tradicional. Os intérpretes apontam como características deste género de dança os movimentos

rápidos, ritmados e sem contacto físico.

Por outro lado evidencia-se a associação do tradicional ao ‘africano’ e a um

sentido de pertença – a dança tradicional é feita por africanos e é ‘deles’.

Um dos intérpretes declara que ao dançar o repertório tradicional da companhia e em particular uma peça intitulada N'tsay (que retrata a história da colonização) sente uma espécie de identificação com a história. De cada vez que a peça é dançada revive com emoção como se fosse a sua própria história. Esta experiência sentida com emoção e 'paixão' é relatada no plural e referida como uma experiência conjunta (de todos os intérpretes da CNCD):

“Nós temos uma peça que se chama N’tsay que fala da história de Moçambique, da colonização dos portugueses, da forma como os portugueses entraram que eu me emociono e às vezes choro, e tem uma parte muito emocionante, é muito de amor e muito de paixão, que até arrepia, nós costumamos falar sobre isso, porque nós já fazemos este trabalho há muitos anos, mas sempre que a gente vai fazer temos a sensação como se fosse a primeira vez” (Pedro, Maio de 2011). Outro intérprete afirma que a dança tradicional tem a ver com a história e com a

“Dança tradicional, a nossa própria história, o conteúdo do nosso dia-a-dia, nós os africanos, cada dança tem a sua história, se falo de Semba é uma dança de amor, se falo de Macwai é uma dança que se faz quando se volta da machamba. Então têm um próprio significado, a nossa cultura mesmo nossa” (Julieta, Maio de 2011).

Do ponto de vista do coreógrafo “originalmente a dança está ligada ao dia-a-

dia, em todas as províncias há diferentes danças que estão relacionadas com as

necessidades básicas das pessoas que tem a ver com o ciclo da vida desde o nascimento até à morte”, e está enraizada no quotidiano das pessoas “A ligação com o corpo e com o gesto, é uma coisa natural ligada ao dia a dia das pessoas” (Lopes Graça, 18 de Junho, p.110).

Lucas afirma que “A dança tradicional é a forma de expressão artística mais

popular” em Moçambique. E descreve a experiência de assistir a um espectáculo de dança tradicional: “Foi uma coisa muito impressiva, porque tem uma força, tem uma afirmação, aquela coisa de veres um grande artista a fazer uma coisa muito boa e completa, era perfeito, perfeito” (Lucas, 27 de Maio, de 2011, p.116).

Na sua generalidade, estes comentários alinham com perspectiva de Lignière (2009) quando sublinha que a dança africana utiliza dinâmicas, ritmos, tempos e espaços, com particularidades diferentes; associa também, a repetição de movimentos à dança africana. Estas características e outras, identificadas por vários investigadores, são normalmente associadas à dança africana. No entanto, segundo Lassibille (2004), não as definem na sua globalidade.

O modo como, frequentemente, a “dança africana” surge representada na literatura parece denotar preconcepções sobre a mesma, o que porventura corresponderá a visões generalizantes; e estas derivarão, certamente, de percepções exteriores assentes na presença impactante da dança enquanto manifestação identitária em muitos contextos da África subsaariana (Nii-Yartey, 2009). Contudo, para a maioria dos nossos entrevistados, a dança tradicional simboliza de facto a cultura popular e é encarada como parte intrínseca do quotidiano, aspecto este, secundado por vários autores (Deputter, 2001; Nii-Yartey, 2009; Roubaud, 2008).

Por outro lado, o sentimento de dentificação referido por um dos intérpretes com a criação de bailados de inspiração tradicional baseados na história da colonização em Moçambique, é confluente às formulações de Hall (2006): o facto de as culturas

nacionais produzirem sentidos sobre "a nação", através de estórias sobre ela contadas, onde se conectam presente e passado, sustenta a construção de identidades.

Ou seja, identificamos nos vários depoimentos recolhidos dimensões convergentes com outras reflexões teóricas, nomeadamente, se pensarmos nos processos socioculturais por que passou Moçambique após a independência, e que conduziram a estas estratégias ou necessidade de uma afirmação cultural. Emanam, das entrelinhas, os mecanismos de incorporação de uma tradição (através da dança) enquanto modo de vivenciar (ou reforçar) uma identidade moçambicana – e ‘africana’. Este sentimento de pertença e de identificação, representado pela dança tradicional, parece derivar do resgate de um passado idealizado (pré-colonial), transferido para o presente.

No documento DANÇAR AS VICISSITUDES DE UMA NAÇÃO (páginas 55-58)