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Das características estruturais

3 Da fundamentação teórica: a semiótica de inspiração

4.1 Das características estruturais

Os produtos veiculados pela mídia televisão, independentemente das funções, propósitos e estruturas que mobilizam, configuram-se como textos, ou seja, como fruto da relação contraída entre expressão e conteúdo. Mas trata-se de textos bastante complexos. Em primeiro lugar, porque recorrem a diferentes linguagens sonoras – a verbal, a musical, ruídos de todo o tipo, etc – e visuais – cenário, configuração dos atores, postura gestual e corporal, figurino, iluminação, etc –; em segundo, porque essas linguagens sonoras e visuais são presididas pelos meios técnicos de produção, circulação e consumo que acabam funcionando, em outro nível, como linguagens que sobredeterminam as primeiras.

Assim, os movimentos de câmera, por exemplo, têm que levar em conta as dimensões da tela onde as imagens serão exibidas, o que, de certo modo, determina a forma de operar com o campo visual em termos de profundidade, levando à priorização de enquadramentos do tipo

close-up (plano fechado) ou big close-up (primeiríssimo plano). E agora essas produções devem

atentar ainda para telinhas mais reduzidas de celulares, smartphones e tablets, onde também são exibidos os produtos televisuais.

Além disso, as produções televisuais, mesmo as veiculadas ao vivo e em tempo real, são, de alguma forma, editadas: passam por diferentes tipos de enquadramentos, cortes e montagens, recorrendo a diversos modos de tratamento do espaço, do tempo, dos atores, a diferentes técnicas de composição das imagens, como congelamento/aceleração e a variados recursos de transição entre cenas – cortina, que sobrepõe imagens por meio do movimento; cortes secos, nos quais a passagem de cena ocorre de maneira brusca; fusão, que mistura a cena atual com a posterior, através de uma transição suave entre elas; fades, responsáveis pelo aparecimento (fade in) e/ou desaparecimento (fade out) gradual de uma imagem, entre outros.

Por outro lado, os textos televisuais estruturam-se, do ponto de vista discursivo, obedecendo às normas de funcionamento do televisual. Com isso se quer dizer que eles se submetem ao princípio da serialização: projetam suas narrativas cientes de que elas serão segmentadas por capítulos, episódios, edições, etc, e que cada uma de suas emissões será fragmentada em blocos, para os intervalos comerciais. Isso determina que suas narrativas estejam sempre em um movimento de construção de picos dramáticos, de tal forma que, quando termine cada uma das emissões de um programa, ou mesmo no interior delas, devido às fragmentações e interrupções, o telespectador permaneça cativo, na expectativa do que está por vir e não mude de canal, nem deixe de voltar no dia seguinte. E, se isso é bastante visível nos produtos pertencentes ao gênero ficcional, não é, de modo algum, privilégio deles, visto que programas de ordem factual ou simulacional também se submetem ao princípio da serialização e recorrem a essas estratégias de suspensão da narrativa. Assim, tendo em vista os seus propósitos comunicacionais midiáticos, ou seja, em última instância, a permanente interação com o telespectador, os textos televisuais recorrem a estratégias comunicativas e discursivas de várias ordens e níveis.

Omar Calabrese, no livro A idade neobarroca (1987), destaca algumas características das produções midiáticas que se aplicam particularmente à configuração dos textos televisuais, ou seja, que fazem parte do sistema de regras que preside a sua produção. Trata-se de procedimentos

estratégicos, aos quais Calabrese denomina de figuras, empregadas na feitura dos textos televisuais que, devido ao seu processo de produção, valorizam certas morfologias e dinâmicas.

Na esteira de Calabrese, pode-se dizer que o discurso televisual homologa certos procedimentos ou figuras, por ele apresentadas por pares. O primeiro desses pares de figuras é o ritmo e a repetição (CALABRESE, 1987, p. 41).

A produção discursiva televisual é fruto da repetição mecânica e otimização do trabalho, podendo ser configurada como uma estética da repetição. Há, segundo Calabrese (1987, p. 41), diferentes tipos de repetição. Existe na produção televisual: (1) uma repetitividade que é resultado da produção em série, a partir da adoção de matrizes, próprias do princípio da industrialização; (2) uma repetitividade que é resultado da aplicação de um mecanismo estrutural de generalização dos textos; (3) uma repetitividade que se estabelece como condição de consumo desses produtos por parte do público.

O primeiro tipo de repetitividade apontada por Calabrese é aquela decorrente da aplicação de um procedimento que possibilita a reprodução em série a partir de um protótipo, ou seja, a difusão de réplicas fundadas em um modelo que recupera tudo àquilo que deu certo, com pequenas variações organizadas – telenovelas, séries, seriados, remakes, entre outros.

O segundo tipo de repetitividade é aquele concernente à estrutura do produto: textos televisuais de diferentes ordens ou enquadramentos genéricos são conformados por uma mesma estrutura, serializada e fragmentada, a partir de um padrão que sempre se repete.

O terceiro tipo de repetitividade é concernente ao nível no qual, dentre a repetição, se estabelecem as diferenciações, oferecendo a opção e a possibilidade de variação, ou seja, de fuga da reiteração, de instauração da irregularidade.

Ora, cabe destacar mais uma vez que esses três tipos de repetitividades são bastante característicos da produção televisual, que precisa dar conta de suas realizações com rapidez, eficiência, e, se possível, qualidade, para se manter no ar 24 horas diárias, dia após dia. Daí a razão porque, devido à premência da instância de produção e realização, todos esses tipos de repetições são permeados por uma velocidade e ritmo insensatos.

O segundo par de figuras apontadas por Calabrese (1987, p. 62) é o limite e o excesso, no que se refere ao espaço de tratamento dos temas e de suas formas de expressão. O texto televisual não define com precisão seus limites, o que é interior ao texto, o que faz parte do tema abordado e o que é exterior a ele – o que faz parte da narrativa e o que é merchandising de toda a ordem.

Além disso, mesmo os elementos que ficam no interior ou limiar do espaço textual, oscilam entre a centralização, a descentralização e a excentralização. Já o excesso pode manifestar-se na forma de tratamento do tema – sexo, violência, horror –, embora ele não incida apenas sobre o conteúdo dos textos, mas também sobre as suas formas de expressão.

Outro par de figuras apontado por Calabrese (1987, p. 83) é o privilégio ao pormenor e ao fragmento, à ênfase no detalhe, à valorização da parte em detrimento do todo, bem característica de uma produção serializada, segmentada e fragmentada como a televisual. A ênfase no detalhe tem um caráter metonímico, possibilitando a reconstrução do sistema via fragmento, pormenor; mas o emprego excessivo desses procedimentos pode comprometer a recuperação do todo, pois, muitas vezes, o excesso de fragmentação e a ênfase no detalhe fazem com que se percam as coordenadas do sistema, que corre o risco de desaparecer.

Um outro par de figuras apontado por Calabrese (1987, p. 185) é a distorção e a perversão que são procedimentos muito próximos do que Barthes classifica como a deformação própria do processo de mitificação, a ser tratado mais adiante. Para Calabrese, essas figuras estão relacionadas com a conformação do espaço cultural, sujeito a forças externas, que o transformam, modificam, distorcem, fazendo com que a ordem das coisas e dos discursos torne-se perversa. O fazer televisual opera de modo a criar uma sincronia, onde passado e presente coexistem: recupera-se o passado, que ganha ares de atualidade; valoriza-se o presente, ampliando sua duração, em uma busca constante pela estabilidade.

Para além dos procedimentos estratégicos já referidos, existem outros diretamente relacionados ao seu processo enunciativo: os textos televisuais devem responder aos interesses de enunciadores de diferentes níveis, dando conta, simultaneamente, dos propósitos de uma empresa de caráter comercial que visa ao lucro; de uma emissora de televisão que visa construir sua identidade e imagem; e, finalmente, de uma equipe de realização – diretores, roteiristas, figurinistas, coreógrafos –, para quem as características e qualificação do produto realizado fazem parte de seu portfólio, abrindo-lhes novos espaços e oportunidades no mercado televisual.

Ora, na tentativa de corresponder a essas diferentes instâncias enunciativas, os textos televisuais recorrem a um outro tipo de repetição, àquela de caráter autopromocional: colam a todas suas narrativas um falar de si, da qualidade de seus profissionais e produtos, das ações sociais e culturais empreendidas, etc. E, nessa busca de autopromoção, recorrem,

sistematicamente, a dois procedimentos discursivos de caráter estratégico, que permeiam toda a produção televisual: a metadiscursividade e a autorreflexividade.

A metadiscursividade, compreendida como a referência que um texto televisual faz a um discurso anteriormente veiculado, funda-se

... em um procedimento de referenciação da ordem da recursividade; ou seja, é recorrente, volta-se para um outro discurso, pré-existente a ele, do qual ele fala, constituindo-se esse em condição de sua existência e em sua razão de ser (DUARTE, 2009a, p. 91).

Desse modo, o metadiscurso é responsável pela atualização de diferentes formas de relação intertextual entre um texto televisual e outros que o precedem.

Já a autorreflexividade consiste na referência que um texto faz à sua instância de enunciação, fazendo dela objeto de seu discurso. Trata-se de "um procedimento de

autorreferenciação da ordem da incidência: implica a presença de um sujeito que faça de si

próprio objeto do discurso por ele mesmo produzido" (DUARTE, 2009a, p. 91). No caso da televisão, constitui-se no falar da emissora sobre si própria – sobre seus fazeres, sobre seus profissionais, sobre seus produtos – em seus próprios espaços de veiculação.

As emissoras de televisão constroem-se como enunciadoras discursivas no entrelaçamento de muitas vozes: é a partir do emprego dessas estratégias de metadiscursividade e autorreflexividade que emerge um sujeito tevê: só ele é suscetível de produzir um discurso sobre si próprio (...). Somente um sujeito que pode transformar a si próprio em objeto de seu discurso pode interpelar outros sujeitos (DUARTE, 2009a, p. 92).

Esses dois procedimentos discursivos normalmente aparecem articulados nas ações autopromocionais (CASTRO, 2009) empreendidas pelas emissoras de televisão que estrategicamente acionam a recursividade e a incidência, com a finalidade de conferir destaque à sua imagem; à qualidade e variedade de seus produtos; à competência de seu fazer, de seus profissionais e atores; à seriedade e consequência de seus posicionamentos e posturas; à sua consideração aos desejos e expectativas dos telespectadores. Cabe lembrar que esses dois procedimentos podem se manifestar pela utilização de diferentes estratégias discursivas, dentre as quais merecem destaque os processos de denotação/conotação/metalinguagem, já apontados por Hjelmslev que, de certa forma, estão subjacentes a diferentes tipos de intertextualidade.

Por outro lado, como já se referiu, devido à necessidade de interpelação do telespectador, a produção televisual utiliza-se de diferentes formas de manipulação, dentre as quais, merecem destaque os processos de mitificação. A mitificação é, segundo Barthes (2001, p. 150), um procedimento que “não esconde nada e nada ostenta também: deforma; o mito não é nem uma

mentira nem uma confissão: é uma inflexão”.

Se é verdade que o processo de mitificação deforma o real, o acontecimento relatado, ele o faz, segundo Barthes, através do emprego de uma estratégia discursiva que transforma a história em natureza, apresentando os fatos como postos, como verdades indiscutíveis, sem recorrer a explicações racionais: é visivelmente uma forma de manipulação. De acordo com Barthes (2001, p. 163), o processo mitificador “não nega as coisas; a sua função é, pelo

contrário, falar delas; simplesmente, purifica-as, inocenta-as, fundamenta-as em natureza e em eternidade, dá-lhes uma clareza, não de explicação, mas de constatação”. Ele constrói-se

convocando, simultaneamente, os sentidos denotativo e conotativo das linguagens. Aos olhos do telespectador, trata-se de conteúdos fáceis de digerir, pois quem os constrói utiliza-se da estrutura do álibi: há um lugar pleno e um lugar vazio e sempre se podem fazer os conteúdos girarem entre esses dois espaços, e, assim, inocentarem-se. “Pois esta fala interpelativa é simultaneamente

uma fala petrificada: no momento em que me atinge, suspende-se, gira sobre si própria, e recupera uma generalidade: fica transida, pura, inocente” (BARTHES, 2001, p. 146).

Barthes propõe a existência de diferentes figuras/procedimentos empregadas nesse processo de mitificação, tais como: a vacina, que consiste em confessar o mal acidental para melhor camuflar o mal essencial; a omissão da história, que consiste em falar sobre um tema despojando-o de toda a história; a identificação, que consiste em ignorar ou negar a diferença, transformando-a no mesmo (impossibilidade assumida de construção do outro, da diferença); a tautologia, que se constitui na definição do mesmo pelo mesmo, recorrendo à circularidade; a quantificação da qualidade, que consiste na redução de toda qualidade a uma quantidade; a constatação, que consiste na recorrência a verdades estratificadas, recusando o universalismo, a explicação, a lógica, tendendo para o provérbio, a máxima.

Na tentativa de construir seus textos com a velocidade necessária e a devida correspondência aos interesses de várias instâncias já citadas, os produtores/realizadores deslavada e reiteradamente recorrem a essas figuras/procedimentos/estratégias discursivas na construção de suas narrativas.