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Relações paratextuais de caráter sociocultural – o contexto

3 Da fundamentação teórica: a semiótica de inspiração

6.2 Relações paratextuais de caráter sociocultural – o contexto

O contexto que serviu de entorno ao lançamento e produção do Esquenta! está ligado a aspectos sociais e culturais característicos do cotidiano da cidade do Rio de Janeiro, concernentes à composição e ao desenvolvimento de suas periferias, à estruturação em favelas e à valorização do samba que, nesse ambiente, representa muito mais do que um estilo musical.

No Brasil, assim como em outros tantos lugares do mundo, as desigualdades sociais e de renda acabaram por propiciar o desenvolvimento de comunidades periféricas, localizadas especialmente nos entornos dos grandes centros urbanos, que se materializam por aqui na estrutura de favelas.

É necessário, antes de tudo, elucidar as principais distinções entre os termos periferia e subúrbio, tendo em vista que ambos são bastante utilizados nas definições de espaços das cidades, especialmente nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Etimologicamente, conforme Figueiredo (2005, p. 11), subúrbio designa o espaço que cerca uma cidade, compondo uma condição intermediária entre cidade e campo, sem possuir nenhuma relação direta com as questões sócio-econômicas – diferentemente do que acontece em torno do termo periferia.

O crescimento das cidades transforma o suburbano em urbano e, por meio das reformas urbanas, a palavra subúrbio passa designar áreas que eram atendidas pela ferrovia: enquanto que no Rio de Janeiro, o subúrbio caracteriza locais atendidos pelos serviços de transporte urbano ferroviário, em São Paulo, ele refere-se aos municípios que se formaram a partir da construção da linha férrea que levava à capital.

Já o termo periferia é decorrente do processo de desenvolvimento metropolitano, entre as décadas de 60 e 70, responsável por inúmeros loteamentos clandestinos, ocupando as áreas mais centrais, sem muito planejamento: esse é o caso das favelas. A concepção de periferia está diretamente relacionada à oposição centro, detentor do poder político, econômico e social. Essa oposição, tão marcada, faz com que a periferia se construa como um espaço de perpetuação de diferenças e desigualdades, tanto em âmbito econômico, como social.

Segundo Campos (2012), o que hoje se entende por favela teve origem na cidade do Rio de Janeiro, consequência do processo de higienização ali ocorrido por volta de 1866, que tinha por meta expulsar do centro da cidade a população mais carente habitante de espaços precários – os cortiços. De acordo com o autor, a forma de agrupamento em cortiços ocorreu a partir da chegada da Família Real no país, em virtude do aumento significativo da população. De maneira geral, os casarões eram então ocupados e subdivididos em pequenos cômodos por pessoas com poucas condições, negros e pobres: para os escravos, o centro representava um espaço de fuga; para os libertos, condições de trabalho mesmo que com baixos salários.

Ao serem conduzidas às regiões periféricas, essas pessoas encontraram dificuldades na construção de habitações condizentes com suas necessidades: suas casas tornaram-se barracos improvisados que não dispunham de água encanada ou sistema de esgoto. E o Estado assistiu, como ainda hoje, ao seu estabelecimento, eximindo-se de qualquer responsabilidade ou participação.

Essas regiões periféricas, contudo, apresentam características bastante interessantes, devido, principalmente, à mescla cultural que atualizam: elas são espaço de muita criatividade, aquela a que seus habitantes precisam recorrer para sobreviver, sendo o berço de muitos artistas. É de lá que vem o ícone nacional da malandragem. Mas, dos vários exemplos que se poderiam citar, talvez o samba carioca seja o que melhor a represente: esse jogo de cintura exibido pelos habitantes da periferia, dos morros e das favelas. A origem do samba deve-se à mistura de ritmos africanos e brasileiros, ainda no período colonial: ao lundu, ritmo africano, somou-se o maxixe, o xote, a polca, outros tipos de música brasileira. Inicialmente, essas composições musicais eram utilizadas em celebrações – as festas de terreiro –, organizadas em algumas casas baianas; posteriormente, foram incorporadas ao repertório cultural do povo.

As letras desses primeiros sambas falam da vida nas cidades, dos trabalhadores e de suas dificuldades diárias, destacando, prioritariamente, o cotidiano das populações mais pobres. Aliás, foram nessas comunidades que surgiram, entre as décadas de 1920 e 1930, as escolas de samba, agremiações formadas por pessoas de uma mesma comunidade, próximas tanto em termos de relações, quanto de disposição geográfica: os blocos de Carnaval.

A primeira escola de samba do Rio de Janeiro foi a Deixa Falar, que saiu às ruas em 1928. Nos anos seguintes, surgiram outras escolas, a exemplo da Estação Primeira, atual Estação

Primeira de Mangueira, e da Vai como Pode, hoje Portela32. No início, as escolas de samba eram pequenas, com poucos integrantes; hoje, contudo, esbanjam categoria em termos de adereços, cores, carros alegóricos, contando com milhares de participantes, das mais variadas idades e classes sociais.

Dentre os compositores da velha guarda, pioneiros do samba carioca, ganham destaque: Angenor de Oliveira, o Cartola, um dos fundadores da Mangueira; Noel Rosa, estreitamente ligado à Vila Isabel, escola de samba localizada no bairro Vila Isabel, onde nasceu; Carlos Moreira de Castro, o Carlos Cachaça, filiado à Mangueira; Nelson Antônio da Silva, conhecido como Nelson Cavaquinho, também ligado à Mangueira; João Bosco, compositor de O ronco da

cuíca; Edimar Tobias da Silva, mais conhecido como Thobias da Vai-Vai, entre muitos outros.

Atualmente, figuram entre os compositores dos sambas-enredo das principais escolas nomes como Arlindo Cruz (Império Serrano), Diogo Nogueira (Portela), Dominguinhos do Estácio (Estácio de Sá), Dudu Nobre (Mocidade Independente de Padre Miguel), Ivo Meirelles (Estação

Primeira da Mangueira), Martinho da Vila (Unidos de Vila Isabel), Xande de Pilares

(Salgueiro), entre outros. De modo geral, a maioria desses compositores participa, ao longo de sua carreira, de diferentes escolas de samba, tendo em vista que são também, muitas vezes, intérpretes de sambas-enredos.

Todos esses compositores tiveram, e muitos ainda têm, uma relação bastante próxima com os morros e favelas, seja por que nasceram em algum desses lugares, seja por que compartilham interesses com os moradores dessas comunidades, tendo em vista que a maioria das escolas de samba se localiza nessas regiões mais periféricas. Muitos moradores das favelas têm, inclusive, seu sustento provido pelo trabalho que nelas desempenham: costureiras, mecânicos, motoristas, eletricistas, técnicos em iluminação, serralheiros, entre outros.

Atualmente, a cidade do Rio de Janeiro comporta inúmeras estruturas habitacionais periféricas, com diferentes denominações, que vão de bairros a comunidades, oficiais e não oficiais, a exemplo da Cidade de Deus, Vigário Geral e Rocinha. Os complexos de favelas reúnem mais de uma comunidade, em um mesmo entorno, pela proximidade existente entre elas, a exemplo do Complexo da Penha e do Complexo do Alemão. Há também os núcleos de favelas avulsas, conhecidas, comumente, como morros.

32 Dentre as principais escolas de samba do Rio de Janeiro destacam-se: Beija-flor de Nilópolis, Unidos da Tijuca,

Estação Primeira da Mangueira, Viradouro, Imperatriz Leopoldinense, Salgueiro, Portela, Mocidade Independente de Padre Miguel, Império Serrano, Grande Rio, Unidos do Porto da Pedra, Tradição, Caprichosos de Pilares, Unidos de Vila Isabel, Acadêmicos da Rocinha, São Clemente, Santa Cruz e Estácio de Sá.

Infelizmente, muitos dos membros dessas comunidades encontraram no crime em geral e no tráfico de drogas, em particular, uma forma de sustento e passaram a fazer parte de quadrilhas e grupos que se constituem como um sistema de poder paralelo ao do próprio Estado, com leis e sanções próprias. A disputa por esse poder acentua a rivalidade entre os traficantes, organizados em milícias, que entram em conflito entre si e com a polícia, tornando o ambiente dessas comunidades bastante agressivo, violento e perigoso.

Objetivando a contenção desses grupos armados, a partir de 2008, o então governador, Sérgio de Oliveira Cabral Santos Filho, aprovou o processo de implantação das UPP‟s, as Unidades de Polícia Pacificadora33, projeto da Secretaria Estadual de Segurança do Rio de Janeiro, cujo objetivo é desarticular essas quadrilhas que detêm o controle desses territórios.

A proposta das UPP's centra-se na tentativa de aproximação entre polícia, população e instituições de segurança pública, envolvendo os governos federal, estadual e municipal, e diferentes atores sociais engajados na melhoria de vida dessas comunidades. Para além das questões de segurança, que envolve a prisão e o esfacelamento dos grupos armados, o processo de pacificação objetiva o desenvolvimento econômico e social da comunidade, ao passo que amplia as ações em infraestrutura, o interesse em investimentos privados e oportuniza o acesso a projetos sociais, esportivos e culturais.

A primeira UPP foi instalada dia 19.12.2008, na Favela Santa Marta, no bairro Botafogo, na zona sul, mas, até o final do ano de 2014, a cidade do Rio de Janeiro já havia recebido 38 UPP's, distribuídas em diferentes regiões, com um efetivo de 9.543 policiais, em aproximadamente 264 territórios. A previsão é de que os números sejam ampliados, aumentando o efetivo de policiamento e objetivando a cobertura de áreas ainda não pacificadas.

O projeto mostrou-se inicialmente bastante eficaz, sendo apoiado por inúmeros especialistas da área de segurança, que identificaram uma diminuição expressiva de diferentes crimes, como roubos, assaltos, assassinatos. Além disso, os efeitos pretendidos pelas UPP‟s ultrapassam os limites das comunidades pacificadas, sendo extensivos às comunidades do entorno, adjacentes àquelas, objetivando benefícios diretos e indiretos a uma população bem mais numerosa.

Salienta-se, contudo, que a implantação das UPP's não conseguiu acabar com a violência e o tráfico de drogas nessas regiões, embora tenha reduzido significativamente seu impacto no

cotidiano dos moradores. Na verdade, há a necessidade não só de ampliar e qualificar o efetivo da polícia nas ruas, mas também de desenvolver outras formas de contato com as comunidades por meio de políticas públicas e ações não governamentais. Deve-se ter claro que o projeto de implementação das UPP's é bastante recente, especialmente se comparado ao processo de desenvolvimento dessas comunidades periféricas, mas têm ocorrido situações de violência, com mortes de membros dessas comunidades por ações intempestivas da polícia, o que faz com que os investimentos no espetáculo midiático inicialmente mobilizado para sua implementação atualmente tenham perdido a força e o sentido.

Mas os resultados iniciais, bastante favoráveis, ganharam grande destaque merecendo ampla cobertura das mídias. Nesse sentido, a RGT dedicou, durante os anos iniciais de implementação das UPP's, grande espaço à cobertura detalhada das invasões feitas pela polícia e de sua fixação nesses territórios, como ocorreu, em meados de novembro de 2010, nos processos de invasão da Vila Cruzeiro e do Morro do Alemão.

No período de 22.10.2012 até 17.05.2013, a RGT exibiu a telenovela Salve Jorge, cuja trama central trazia como pano de fundo a implantação da UPP no Morro do Alemão: o primeiro capítulo apresentou o processo de ocupação/invasão da polícia, através de imagens ficcionais e não ficcionais (do período da implantação da UPP no Morro do Alemão, ocorrida em 30.05.2012). Toda a narrativa foi perpassada pela relação entre um policial e uma moça moradora da favela.

Ora, esse cenário, dada sua inicial relevância, parece ter servido de contexto mais amplo para o surgimento do programa Esquenta!, cujo lançamento configura uma ação de marketing social empreendida pela RGT, cujo caráter é também autopromocional da emissora.