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5 DAS TRADIÇÕES INVENTADAS

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Se tomarmos o trabalho de Eric Hobsbawm e Terence Ranger a respeito da invenção das tradições, poderemos notar nitidamente que a história do samba e das Escolas de Samba se encaixam perfeitamente nas observações destes autores. Assim o conceito de tradição inventada estabelece que estas são um

Conjunto de práticas normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade com relação ao passado (HOBSBAWM; RANGER, 1997, p.9).

Com o entendimento de que esta relação com o passado histórico – próximo ou distante – é sempre artificial. No caso específico do samba é a produção e os produtores daquilo que ficou conhecido como samba urbano que o trabalho propagandístico de Orestes Barbosa quis fixar como memória. O estilo que deflagrou um interesse ostensivo da indústria cultural nacional, cuja divulgação comercial foi ampliada nos anos 1920, principalmente pela atividade do sambista Sinhô.

A importância do livro de Barbosa reside no fato desta ser porta-voz documental- analítico da nacionalidade brasileira, colocando a música como um dos principais elementos da alma nacional. Com isto estabelece-se a idéia de continuidade em relação a um passado vívido (BRAGA, 2002, p.229). É aqui que percebemos que tradição é diferente de costume, pois as Tradições, mesmo as inventadas, querem a invariabilidade, ou seja, o passado real ou forjado impõe práticas fixas. O costume, ao contrário, não impede as inovações e pode mudar até certo ponto, mas mantendo sua compatibilidade com aquilo que é o seu precedente. Os movimentos de mudança ou resistência à inovação irão depender da sanção do precedente, da continuidade histórica e dos direitos naturais. O costume não é invariável porque a vida não o é (HOBSBAWM; RANGER, 1997, p.9-10). Para Orestes Barbosa a invariabilidade se explica na equação de que o carnaval é o samba e o samba é o carnaval que evoluiu até a Escola de Samba, “organizações perfeitas. É rigoroso o ensino de cantos e bailados. Tudo é feito dentro de teorias inéditas. Há professores que são verdadeiras revelações” (apud. BRAGA, 2002, p.229). A invariabilidade já se demonstrou como marca das Escolas de Samba de Juiz de Fora, gerando uma crítica ao seu formato cristalizado e imitativo ao modelo televisivo de desfile:

Eu acho que as escolas de samba de Juiz de Fora, hoje, estão muito fracas, não têm perspectiva nenhuma, o carnaval de Juiz de Fora tinha que ser repensado, esse

negócio de desfile de escola de samba aqui, eu acho um... Eu acho que esse modelo de carnaval de Juiz de Fora, eu não investiria nele, hoje, não oferece nada, não tem criatividade, é repetitivo, é muito medíocre, é um outro investimento, eu acho que tem que criar uma outra coisa, não imitar o carnaval de salvador, negócio de trio elétrico não tem perspectiva nenhuma acho que tinha que ser uma coisa nova, é problema de criar, ficar diferenciado (REIS, 2006).

“Consideramos que a invenção das tradições é essencialmente um processo de formalização e ritualização, caracterizado por referir-se ao passado, mesmo que apenas pela imposição da repetição”, as tradições inventadas são mais nítidas quando iniciadas deliberadamente por um inventor, como é o caso de Baden Powell e o escotismo; também a determinação de sua origem é simples quando as tradições são formalmente instituídas e planejadas, como o simbolismo nazista; e são mais difíceis de mapear quando criadas a partir de círculos fechados ou são produzidas de modo informal durante um certo período, como é o caso das Escolas de Samba e do próprio samba91 (HOBSBAWM; RANGER, 1997, p.9-10). Isto é visível na forma como os participantes das Escolas vêm a instituição, como uma entidade imutável historicamente. Regina Maria Rabelo (2006) falando de sua aposentadoria

91 Um trabalho muito bom na tentativa de elucidar a trajetória do samba é o de Hermano Vianna: O mistério do samba, tese publicada em 2002 no formato de livro, no qual trata dos processos por trás da aparição do samba no cenário cultural e sua transformação em identidade nacional.

como porta-bandeira deixa claro que o mapeamento do passado das Escolas de Samba esta escondido nas brumas da memória:

Depois dos 50 [anos] ninguém consegue elegância, leveza, mais não. Eu acho o seguinte, é uma posição de destaque para a pessoa. Acho que a ala das baianas, Bateria, Mestre-Sala e Porta-Bandeira, não que as outras alas não tenham seu devido valor, mas esses são aqueles quesitos permanentes dentro da escola. Têm importância muito grande essas três coisas: importância de tradição e não só do passado. Eu acho que a Bandeira da Escola é um manto que aquece todos os componentes e carregar esse manto... quem carrega esse manto... a pessoa, né?

Da mesma forma detectamos a falta de nitidez histórica nas novas gerações. Alcione Procópio (2007) não foi capaz de falar sobre a origem da porta-bandeira nas Escolas de Samba porque as informações passadas nos cursos em Juiz de Fora, provavelmente, tentam ocultar as pistas que revelariam a Escola de Samba como uma tradição inventada no Rio de Janeiro do século XX:

Olha tem varias origens, dizem que tem varias origens. Uns dizem que veio de tribos africanas que os homens dançavam com panos pra poder chamar a atenção das meninas da tribo que estavam na fase de se casar. Outros dizem que os negros nobres quando morriam quando ia enterrar, eles eram enterrado atrás do muro do cemitério, então cada tribo fazia um estandarte de uma cor especifica da tribo dele e saia desfilando fazendo o cortejo fúnebre.

Neste ponto podemos retroceder aos anos 1930 para compreender o porque da invenção de uma tradição de Escolas de Samba em Juiz de Fora. É um momento histórico no qual Hobsbawm e Ranger (1997, p.12-13) identificam como ideal para o surgimento das tradições inventadas, por conter três características: 1) transformações rápidas na sociedade que debilitam ou destroem os padrões sociais, uma vez que para os novos padrões as velhas tradições tornam-se incompatíveis; 2) os promotores e os divulgadores institucionais perdem a capacidade de adaptação e flexibilidade; 3) eliminadas de outras formas, “inventam-se novas tradições quando ocorrem transformações suficientemente amplas e rápidas tanto do lado da demanda quanto da oferta”. Transformações estas que se tornaram mais rápidas com a consolidação da urbanização da região

na época de [19]40/50 você não tinha a expressão “Carnaval de Juiz de Fora”, expressão que passou a existir da década de [19]60 pra frente, principalmente quando o Feliz Lembrança saiu com um enredo, que foi feito pelo José Carlos de Lery Guimarães e Nelson Silva, do Batuque Afro-Brasileiro […]. Foi aí que surgiu esse Carnaval como evento, isso foi na década de [19]60. Já aí as escolas de Samba foram crescendo e os Ranchos já estavam praticamente em extinção (REIS, 2006).

É importante entender, também, que as tradições inventadas não surgem por geração espontânea, elas utilizam elementos antigos na sua elaboração, pois qualquer sociedade tem um passado com amplo repertório e práticas culturais com forte carga simbólica. Assim, as

novas tradições podem ser imediatamente enxertadas nas velhas ou podem ser inventadas com empréstimos dos rituais, simbolismos e princípios morais oficializados (religião, pompa principesca, folclore, maçonaria). O movimento modernista, os propagandistas do Estado Novo, os Integralistas, os textos de Orestes Barbosa, Francisco Guimarães e Alexandre Gonçalves Pinto fizeram parte de movimentos ideológicos que tornaram necessária a invenção de uma continuidade histórica – como é comum em todos os movimentos ideológicos que pretendem fundar tradições. Existe também a criação de símbolos e acessórios além de rupturas de continuidade visíveis, mesmo com uma antiguidade genuína

Tal ruptura é visível mesmo em movimentos que deliberadamente se denominam “tradicionalistas” e que atraem grupos considerados por unanimidade repositórios da continuidade histórica e da tradição [...] o próprio aparecimento de movimentos que defendem a restauração das tradições, sejam eles “tradicionalistas” ou não, já indica essa ruptura. Tais movimentos, comuns entre os intelectuais desde a época romântica, nunca poderão desenvolver, nem preservar um passado vivo [...] estão destinados a se transformarem em “tradições inventadas”. Por outro lado, a força e a adaptabilidade das tradições genuínas não deve ser confundida com a “invenção das tradições”. Não é necessário recuperar nem inventar tradições quando os velhos usos ainda se conservam (HOBSBAWM; RANGER, 1997, p.15-16).

Ao mesmo tempo os autores identificam que o fenômeno da tentativa de restauração da tradição é revelador de seu declínio. No texto eles citam os donos de fazenda europeus na virada do século XIX, mas nós podemos identificar aqui a nostalgia pelas marchinhas de carnaval ou na tentativa da prefeitura de Juiz de Fora em restaurar o desfile dos ranchos carnavalescos na década de 1970. O prefeito da época, Melo Reis, comenta que no caso dos “Rouxinóis, nós tentamos reabilitá-los, conseguimos fazer alguma coisa, mas não durou muito, morreu, não havia mais motivação para isso”. Da mesma forma pode-se pensar sobre as tentativas de restaurar o desfile de Escolas de Samba em Juiz de Fora. Nas palavras do ex- prefeito,

[…] o carnaval de rua nunca deu prejuízo, pelo contrário, regrediu, se você pegar o carnaval de 1972/1973 era muito superior muito mais monumental, havia uma participação popular muito mais intensa, eu acho que esse modelo de carnaval, na minha visão de hoje é um modelo com tendência a desaparecer, ele não oferece mais perspectiva, ele não tem novidade, ele é repetitivo ao carnaval do Rio de Janeiro, ninguém consegue fazer um carnaval nesse estilo, igual ao do Rio de Janeiro, nem chegar aos pés.

Se Orestes Barbosa que gostava de samba e até mesmo compunha passava ao largo de preocupações estéticas e encarava-o como objeto de utilidade para ascensão econômica. A visibilidade pela qual lutava relacionava-se como o geistzeit, a percepção de um espírito de modernidade que seria o marco da nacionalidade brasileira e da identidade cultural. O furacão da modernidade varria do mapa a modinha e os estilos tão úteis na conformação musical do

brasileiro, abrindo espaço para a linguagem dos sambistas: coloquial, cosmopolita, parodística e, por isso mesmo, moderna (BRAGA, 2002, p.240).

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