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Os conceitos de trajetória e de transição são centrais nos estudos contemporâneos da dinâmica do curso da vida. As trajetórias são compreendidas enquanto “percursos particulares de vida, compostos pelo material das ações, pensamentos e sentimentos dos atores” (GUZMAN, MAURO e ARAUJO, 2000 apud GOMES, 2002). Em relação às transições GOMES (op.cit.) afirma que elas remetem a eventos que marcam mudanças significativas na dinâmica do curso da vida, constituindo a interrupção de percursos que tiveram uma permanência por um período prolongado e/ou intenso na vida das pessoas. Como por exemplo, uma trajetória de trabalho ou casamento. GOMES (op.cit.) sustenta:

No curso da vida existem os momentos críticos que constituem verdadeiros pontos de mutação, onde os conteúdos habituais são postos em foco, gerando ambiguidade e polarização dos valores ao mesmo tempo. Estes momentos de transição, encaixados nas trajetórias, sempre são associados

às idéias de perigo, paradoxo, morte, desordem, anomalia, conflito, ambiguidade. Mas, ao mesmo tempo, essas situações contêm em si a ideia de poder, fonte de criação, renovação, mudança, autorreflexão, meditação e reordenação, ou seja, uma situação de passagem liminar, onde os referenciais cognitivos, afetivos e os status anteriores estão em suspensão, e deverão ser reconduzidos e/ou transformados. Se o momento de mudança no trajeto ocupacional assume a característica de ser-bom-para-pensar, disso recorre que poderá ser propício para refletir em torno dos referenciais de identidade e escolha dos próprios projetos (Ibid, p. 76-77).

As trajetórias de trabalho constituem “itinerários visíveis, os cursos e orientações que tomam a vida dos indivíduos no campo do trabalho, resultado de ações e práticas desenvolvidas pelas pessoas em situações específicas através do tempo”. O conceito de trajetória possibilita “apreender a interação entre dinâmicas estruturais e decisões individuais e também conjugar ações com as significações e representações do sujeito” (GUZMAN, MAURO e ARAUJO, 2000 apud GOMES, op.cit.).

MARTINS também destaca como se constitui a categoria de trajetória.

Trajetória é o encadeamento temporal das posições sucessivamente ocupadas pelos indivíduos nos diferentes campos do espaço social. Os indivíduos, em cada momento de sua existência ocupam simultaneamente várias posições, resultantes de seus lugares nos campos profissionais e familiares. Durante o passar do tempo, estas posições se movem, se redefinem em vários campos, traçando assim, uma trajetória constituída por um conjunto de itinerários (BATTAGLIOLA et al., 1991 apud MARTINS, 2003).

Para GARCIA JR., essas dimensões de análise, considerando o conceito de trajetória, possibilita conhecer os agricultores-assentados não como “beneficiários de uma política de assentamentos, mas como indivíduos com uma história e uma situação anterior precisa”. Segundo o mesmo autor, esta abordagem analítica “propiciaria o estudo da diversidade entre os agentes e suas visões diferenciadas de todo o processo, além dos recursos incorporados aos indivíduos em tempos e espaços também diferenciados” (GARCIA JR., 1994 apud PICCIN, 2004).

No caso específico de nosso objeto de estudo, os trabalhadores assalariados da Usina Santa Maria, ao passarem pelo processo de transição com a falência da usina – a qual tinha representado por um longo período um dos maiores empreendimentos agrícolas da região – manifestaram nos seus relatos o sentimento de medo, o perigo que tiveram que enfrentar mediante a nova situação de perda de emprego e de indefinição com relação às terras da usina. Após o processo de desapropriação das terras da usina, estes ex-assalariados tiveram ainda que se adaptar à nova condição laboral e de vida que o assentamento vislumbrava para eles e para suas famílias.

Segundo DUBAR, as trajetórias dos indivíduos remetem quase sempre às “trajetórias profissionais”. Ao resgatá-las é necessário considerar a “condição social em que ocorreram, mesmo porque esta é definidora das possibilidades que o sujeito tem e pode vir a ter”. Resgatando as trajetórias dos indivíduos é possível “ver as diferentes possibilidades que se construíram no mundo do trabalho para cada um dos grupos e consequentemente as diferentes imagens de si mesmos que foram construídas” (Dubar, 1998 p.13).

O autor aponta ainda sobre a necessidade de, ao trabalharmos com a trajetória dos indivíduos, considerarmos dois aspectos: “a trajetória objetiva e a subjetiva”. Sendo a primeira, as “posições sociais que o indivíduo ocupou ao longo de sua vida e, a outra, geralmente apresentada por meio de histórias pessoais, que trazem as visões que o indivíduo constrói a respeito de si e do mundo” (DUBAR, op.cit., p.14).

Outro aspecto sobre trajetórias que é importante ressaltar refere- se à articulação com as transições, uma vez que “as transições estão

sempre encaixadas nas trajetórias” (ELDER, 1985). Também GOMES (op.cit.) dialoga sobre este tema com argumentos cunhados no próprio ELDER (op.cit.) e sintetiza:

A ideia deste autor (refere-se a Elder) é que ambas representam linhas temporais entrelaçadas no curso da vida pessoal e, ao mesmo tempo, que estas sempre se constroem em relação aos outros. As trajetórias consistem em percursos temporais de mais amplo espectro – por exemplo, trajetórias ocupacionais, de casamento, de saúde, etc. – podendo ser ‘mapeadas através dos anos sucessivos como conexão de estados’, as quais são ‘marcadas pela sequência de eventos de vida e transições’. As transições correspondem a um espectro temporal mais curto, já que apontam para o momento de mudança que se expressa no processo temporal correspondente ao intervalo entre esses estados (GOMES, op.cit., p.32).

A mesma autora registra o valor de trabalhar com estas categorias e cita um exemplo sobre transição, referindo-se a carreiras profissionais, através das quais, segundo ela, se consegue “analisar as transformações de curso decorrentes de períodos de desocupação e mudança de posições, os quais podem estar caracterizados por situações de privação ou por novas oportunidades de trabalho”. Esta ideia de transição remeteria, segundo a autora, para o conceito de “duração”, o qual se refere ao “tempo de espera entre esses câmbios de estado”. Na esteira desse argumento GOMES (op.cit.) assinala que,

A partir de estudos empíricos é percebida uma relação entre o tempo de duração e o tempo de permanência no estado, isto é, a duração prevendo a permanência. Em outras palavras, seria percebida uma correlação positiva que poderia expressar-se da seguinte maneira: maior tempo de duração levaria a maior tempo de permanência; menor tempo de duração a menor permanência (Ibid, p.33)

Para ilustrar melhor este ponto cabe citar ELDER (op.cit.) e verificar como ele esclarece a respeito da importância de focalizar a duração:

A duração tem muitas implicações e significados para o curso de vida, (...) A duração do casamento se conecta com a permanência do estado marital, a duração residencial prediz permanência residencial (Ginsberg, 1971). A duração do desemprego está correlacionada com o risco de vir-a-ser desempregado (...) Pressões para socialização e conformidade podem estar envolvidos, assim como profundas ligações e compromissos. (...) As consequências da duração de qualquer evento depende do que a pessoa traz para a situação (Ibid., p.2).

Portanto, a direção da trajetória não se constitui numa mera sequência de acontecimentos, porque o ator está construindo seu ponto de vista sobre essa “sequência temporal”. Crenças, desejos, objetivos, necessidades, desafios a vencer, enfim, estão na base dessas ações que se “expressam temporalmente e que são os materiais que permitem ao ator construir o enredo da sua narrativa, isto é, as histórias que contamos para nós e para os outros sobre como ordenamos esses eventos e assim, ao mesmo tempo, nos construímos e projetamos para a vida, presente e futura” (GOMES, 2000 p.34).