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DE ENSINO SUPERIOR: OS DESAFIOS DA ASSISTÊNCIA ESTUDANTIL

Para responder aos desafios da ampliação do sistema educa- cional superior público, o governo federal implantou, em 2007, o Plano de Reestruturação das Universidades Federais (REUNI) e, por meio da Portaria Normativa nº. 39 de 12 de dezembro de 2007, transformada no Decreto 7234, de 19 de julho de 2010, o Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES). Efetivados, no aspecto formal, os avanços em relação à ampliação do acesso à educação superior, as questões inerentes à assistência estudantil têm ocupado lugar central em discussões no espaço acadêmico, sobretudo ao se considerar que ela apresenta e atualiza uma questão histórica, a saber: a concepção elitista, excludente, meritocrática e individualista que norteou o sistema universitário público brasileiro ao longo do tempo. Nos últimos anos, sobretudo a partir da implantação do Sistema de Seleção Unificada (SISU), combinado à Lei 12711/2012 (Lei de Cotas), tem-se uma dupla dimensão que deslocou parte da histórica “zona de conforto” de nossas universidades.

A Lei de Cotas, ao reservar 50% das vagas para alunos egressos de escolas públicas, trouxe para as universidades a necessidade de um maior compromisso para com os níveis fundamentais e médio da educação pública, historicamente descolados das preocupações da academia. A universalidade do acesso à educação básica nos trouxe o desafio da qualidade desejada. Pelo disposto na Lei, sobre a reserva de 50% das vagas para a escola pública, aplica-se 50% para alunos de classes populares, já que estes devem ser originários de famílias com renda per capita familiar de até 1,5 salários mínimo. Sobre todas as faixas da reserva de vagas, deve-se ainda aplicar percentuais de reservas com critério racial para pretos, pardos e indígenas, em número equivalente aos dados do último censo do

IBGE em cada localidade. Ou seja, além de alunos em condições de vulnerabilidade socioeconômica, a universidade precisa se preparar para receber – e formar – alunos de diversas partes do país (já que o SISU favorece a mobilidade pelo território na concorrência pelas vagas) e com grande heterogeneidade de históricos de vida.

Combinado com a Lei de Cotas, o SISU nos trouxe um desafio imediato: possibilitado o acesso, como garantir as condições para a permanência do aluno pobre, que agora não tem mais, necessaria- mente, a proximidade dos familiares e, não raramente, chegando recentemente à cidade onde está sediada a universidade? Como se colocará a universidade diante do novo aluno que chega à institui- ção demandando uma rápida forma de acolhimento e assistência, destituído, muitas vezes, dos capitais culturais e sociais necessários ao “deciframento” do habitus universitário (BOURDIEU, 2010). Não somente serão necessários novos procedimentos administrativos que otimizem a assistência estudantil; serão também necessárias novas práticas pedagógicas que promovam o acolhimento e a inclu- são. É fato que a tríade ENEM/SISu/Lei de Cotas vem impondo desafios aos gestores e à organização do sistema universitário para a inclusão qualitativa desse novo perfil de estudante que está ingres- sando nas universidades. A ampliação do acesso sem a necessária correspondência no atendimento às condições para a permanência, formação acadêmica e para a conclusão da graduação dos estudantes oriundos dos segmentos mais desfavoráveis econômica e cultu- ralmente da sociedade, fará com que, a médio e longo prazo, tais estudantes se tornem os “excluídos do interior” (BOURDIEU, 2010).

Para melhor entender as possíveis mudanças que vêm ocor- rendo na universidade brasileira, decorrentes de um número maior de ingresso de jovens cujo percurso escolar pode ser considerado pouco provável, Magalhães (2013) traça um panorama a respeito da educação superior, das políticas sociais e da cidadania no Brasil, abordando a desigualdade no acesso à Educação Superior, as políti- cas de ações afirmativas adotadas, o papel das políticas de assistência

estudantil e a implementação de ações que busquem o auxílio ao estudante, com vistas à sua permanência na instituição e conclusão dos cursos desejados nos prazos adequados. Sua tese traz a voz e coloca em foco a percepção dos discentes moradores da residência estudantil da UFRJ acerca dos programas existentes na universidade destinados a apoiar suas permanências nos cursos de graduação. Ela ressalta que as políticas de democratização do acesso à univer- sidade pública só se efetivarão se forem acompanhadas de ações que viabilizem a permanência, em especial dos estudantes das classes populares ou dos grupos desiguais que estão ingressando nas universidades públicas brasileiras. Seu estudo evidenciou a importância dos programas de moradia para a permanência dos discentes, constatando inúmeras dificuldades encontradas por significativa parcela dos estudantes pertencentes às classes popula- res em seu percurso universitário. Nas conclusões de seu trabalho, Magalhães (2013, p.116) aponta que: 1) a maioria dos entrevistados identifica como principais programas de assistência estudantil na UFRJ a moradia e as bolsas de auxílio financeiro. Esses programas foram apontados por todos os entrevistados como fundamentais para a permanência e realização dos cursos. No entanto, ressaltam a insuficiência dos valores das bolsas para atendimento a todas as necessidades decorrentes da vida universitária; 2) os estudantes também apontaram a necessidade de ampliação da abrangência dos programas, principalmente do ponto de vista quantitativo. Todos relataram conhecer pessoas que enfrentam dificuldades e abandonam a universidade por não conseguirem se inserir num dos programas assistenciais existentes e 3) a percepção da condição de desigualdade que alguns estudantes vivenciam para sua inser- ção e permanência na universidade e uma concepção ampliada da assistência estudantil também foram aspectos relevantes nos relatos dos entrevistados.

No mesmo trabalho, ao analisar as políticas educacionais do governo, Magalhães (2013) destaca o quão importante foi o reco-

nhecimento das desigualdades sociais, como obstáculo à realização da formação superior para as pessoas das classes populares, e da assistência estudantil, ao ganhar destaque como estratégia central para a redução dessas desigualdades. Segundo a autora, é importante ressaltar que a criação de políticas sociais como mecanismos para a efetivação de direitos sociais é um processo longo e gradativo, marcado por contradições e por disputas em torno de interes- ses diversos.

As mudanças no perfil dos alunos ingressantes devem ser acompanhadas por ações e políticas universitárias que busquem conhecê-los, em seus atributos e singularidades, a fim de compreen- dê-los melhor e poder desenvolver medidas mais efetivas de assistência estudantil. Dessa forma, a “ampliação da abrangência dos programas da assistência estudantil só será possível se as diretrizes dos programas incorporarem as reais necessidades dos estudantes, o que requer que a interpretação dessas necessidades estudantis seja feita de forma crítica” (NASCIMENTO, 2012, p.154). Magalhães (2013, p. 115) também evidencia essa questão ao mencionar que as “políticas de ampliação do acesso à universidade devem ser acom- panhadas de outras medidas que possibilitem aos estudantes em situação de desigualdade condições para uma trajetória universitária e uma formação acadêmica bem-sucedida”.

Importante também ressaltar que, para sua plena realização, em conformidade com as diretrizes do Plano Nacional de Assis- tência Estudantil (PNAES), a assistência estudantil pressupõe uma atuação multiprofissional, que demanda diversas formações. Para além de professores e assistentes sociais, são necessários pedago- gos, psicólogos, técnicos em assuntos educacionais, produtores culturais, enfermeiros, médicos, dentistas, dentre outros. Tal neces- sidade também impõe um desafio: a definição dos limites e das competências entre a instância central de assistência estudantil e os demais setores acadêmicos e administrativos da universidade. Caso contrário, além de fragmentadas, as ações demandarão uma

estrutura para além do adequado e razoável, correndo o risco de duplicar – na Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis ou equivalente – estruturas já existentes na universidade. É necessária também a clareza sobre as dimensões e os limites das nossas instituições para com as múltiplas – e inesperadas – necessidades deste novo perfil de estudante. A nova realidade não nos traz somente um progressivo aumento quantitativo da assistência estudantil: traz-nos, também, a necessidade de uma ampliação qualitativa das diversas ações; o que pressupõe, por sua vez, planejamento prévio que anteceda as diversas demandas. A combinação destas dimensões quantitativa e qualitativa sinaliza para as dificuldades e para a necessidade de urgente construção e monitoramento de políticas institucionais voltadas à viabilização das ações da assistência que, em sentido amplo e orgânico, contribuam para a afiliação e para a permanência qualificada dos estudantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Uma prática científica que se esquece de se pôr a si mesma em causa não sabe, propriamente falando, o que faz.” (Bourdieu, 2001).

A universidade ostenta um elitismo histórico, dificultando que questões envolvendo a afiliação estudantil sejam discutidas de uma forma crítica e com a profundidade necessária. Não há garantias de que as prováveis mudanças no perfil dos alunos ingressantes já tenham tido repercussões de grande monta junto à comunidade acadêmica e em suas práticas pedagógicas. Em consequência, apesar da recente ampliação de pesquisas nesta área, é possível observar que as necessidades dos alunos cotistas, de forma geral, ainda estão invisíveis ou pouco consideradas dentro dos espaços univer- sitários, sobretudo nos cursos de alta demanda e prestígio social. Sampaio e Santos (2006) apresentam indícios de como esse processo

ocorre dentro das universidades. Na perspectiva destes autores, cada membro da comunidade acadêmica (docentes, discentes ou servi- dores técnico-administrativos) que for contrário à política de cotas, quando convencido de sua irreversibilidade, diante das pressões sociais, “desloca o centro de sua resistência da negação para a não alteração da estrutura e do cotidiano da universidade” (SANTOS, 2006, p.126), por meio da despolitização da nova presença. Esta questão abre a possibilidade para a “invisibilização” dos alunos cotistas, sob o argumento de que esta seria uma “saudável medida contra a estigmatização dos alunos em seu cotidiano” (SANTOS, 2006, p.126).

Portanto, reconhecer a presença desses alunos, suas condições e seus históricos de vida, é crucial para a elaboração de um plano gestor de políticas públicas universitárias e de suas ações subse- quentes. Tais programas devem ir além do repasse financeiro; ações mais amplas precisam ser pensadas de modo a atender os estudantes em seus diversos aspectos e necessidades. Além disso, a política de apoio estudantil deve ser institucionalizada em todos os níveis e não apenas uma série de ações pontuais, marcadas por critérios sempre emergenciais; precisa consolidar-se como um programa de governo e governança com continuidade nas instituições, trazendo segurança para os que dela têm direito previsto em lei. Ao incluir uma visão mais holística, levando em consideração os diversos aspectos das necessidades humanas e suas subjetividades, a universidade e suas instâncias poderão ser mais efetivas no cumprimento de sua missão.

Ressalte-se que em seu portal institucional, a UFRJ declara que sua missão, objetivos e finalidade se justificam para “proporcionar à sociedade brasileira os meios para dominar, ampliar, cultivar, aplicar e difundir o patrimônio universal do saber humano, capacitando todos os seus integrantes a atuar como força transformadora”. Nessa declaração é possível ver a universalidade explicitada em seu enunciado. Porém, a democratização do acesso vai além da possi- bilidade de aprovação e seleção no processo seletivo de ingresso;

inclui permanência qualificada, “afiliação estudantil”, conclusão do curso e atuação profissional e cidadã. Nessa perspectiva, a assis- tência estudantil se configura como um instrumento vital para o cumprimento da missão universitária e para a viabilização de suas metas, ao englobar um conjunto de ações de enfrentamento ao velho e crônico estigma da evasão, da repetência, da permanência prolongada, especialmente aquelas decorrentes das desigualdades econômicas, sociais e culturais. Assim, pode-se pleitear o compro- metimento do campo universitário constituído na UFRJ, na busca da concretização de sua missão institucional. Tal concepção de assistência estudantil aponta para as relações estreitas que suas ações podem exercer positivamente no complexo processo de afiliação estudantil, pois, enquanto política universitária, a assistência estu- dantil envolve as instâncias administrativas e acadêmicas, sendo de extrema importância a integração e a sinergia institucional para sua plena realização.

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