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CAPÍTULO I JUVENTUDE TRABALHADORA BRASILEIRA: CONSTRUÇÃO DE UM CAMPO ANALÍTICO

1.3 DE QUE JUVENTUDE TRABALHADORA ESTÁ FALANDO?

Se por um lado a juventude deixa de ser compreendida como uma mera etapa de transição, por outro, verifica-se (ainda) uma tensão entre as possibilidades de defini-la, seja entre os discursos normativos/ legais que orientam as políticas públicas para o segmento, seja entre as áreas do conhecimento que têm a juventude e a adolescência como objeto de estudo. Por mais similitudes, diferenças e singularidades que apresentem estas duas categorias – distintas e complementares, o foco deste trabalho estará voltado para compreensão sociológica da juventude, muito embora se atribua para efeito da análise dos dados quantitativos (PNAD e PED) a denominação jovem adolescência, dos 15-19 anos, como sendo um momento inicial do ciclo da juventude.

No Brasil, a temática da adolescência surge com a volta ao regime democrático na década de 1980, um período de inúmeras discussões pautadas pela necessidade de garantir direitos, ao tempo em que se vivenciava um período de crise econômica e aumento da pobreza. O interesse pelo tema é fruto de um importante movimento, em defesa dos direitos da infância e adolescência, que ganhou corpo na sociedade brasileira e fez emergir uma nova noção social, pautada na ideia da adolescência como fase importante da vida, que exige atenção e proteção especiais. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), legislação resultante desta luta, avança profundamente a compreensão sobre crianças e adolescentes, como sujeitos de direitos; sendo a adolescência compreendida como a faixa etária que vai dos 12 aos 18 anos de idade, quando então se atinge a maioridade legal. Esse documento torna-se uma referência no campo legal e tem influenciado programas com base na doutrina da proteção integral aos adolescentes em conflito com a lei em contraposição ao arcabouço jurídico anterior que tratava esta situação como o menor em situação irregular.

Contudo, o termo juventude, assim como os jovens com mais de 18 anos, ficou à parte deste olhar específico e da atenção social. Somente nos anos 1990, a juventude passa a ser alvo de maior preocupação e debate político, fruto de uma série de problemas vividos ou protagonizados pelos jovens, basicamente relacionados ao problema do desemprego, ao aumento da violência e às dificuldades de inserção e integração social, numa conjuntura marcada por transformações e mudanças na economia, no mundo do trabalho e nas relações sociais. Mesmo

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com todos esses problemas, diferente do que aconteceu com a adolescência, não se constrói uma agenda pública específica, tampouco um documento balizador para as ações voltadas à juventude, ficando esse segmento, muitas vezes, à mercê dos recursos e propostas dos adultos e, sobretudo, das propostas dos adolescentes, contribuindo, dessa forma, para uma não delimitação não só de compreensão analítica, como também de compreensão conceitual. Assim, adolescência e juventude representavam faces da mesma moeda.

Atualmente, mesmo com uma política mais formatada e um projeto de estatuto específico para juventude, votado pelo congresso brasileiro no ano de 2010, perdura no Brasil o uso concomitante de dois termos – adolescência e juventude – que ora se superpõem, ora constituem campos distintos, ora traduzem uma disputa por diferentes abordagens. Assim, as diferenças e as conexões entre os dois termos não são claras e, por isso, geram inúmeras imprecisões.

Historicamente, coube à psicologia a responsabilidade analítica da adolescência, na perspectiva de um olhar para o sujeito particular e seus processos e suas transformações; deixando a outras disciplinas das ciências sociais – e também das humanidades – a categoria de juventude, em especial à sociologia. A partir de sujeitos particulares, o interesse se concentra nas relações sociais possíveis de se estabelecer entre os jovens e as formações sociais, na identificação de vínculos ou rupturas entre eles (BAJOIT, 2003). Mas esta não é uma questão resolvida dentro dos campos disciplinares, pois, no interior da própria Psicologia existe uma tendência de utilização dos conceitos de adolescência e juventude de maneira sinônima e homologadas entre si, especialmente no campo de análise da psicologia geral, e em suas ramificações, o que não ocorre com tanta frequência nas ciências sociais.

Conceitualmente, a adolescência é um campo de estudo recente dentro da psicologia evolutiva, tendo emergido de forma tímida somente ao final do século XIX e ganho corpo no início do século XX, sob a influência do psicólogo norte-americano Stanley Hall, o qual, com a publicação de um tratado sobre a adolescência, constituiu-se como marco de fundação do estudo da adolescência (GALLAND, 1991; WALLACE; KOVATCHEVA, 1998)48. A adolescência foi conceituada como um período problemático e conturbado durante o qual os sujeitos são confrontados com um conjunto de transformações biológicas e experimentam emoções que não controlam. Para a socióloga portuguesa Pappámikail (2011), a própria etimologia da palavra parecia reforçar esta ideia, pois adolescência deriva da palavra latina adolescere, que significa

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adoecer, embora seja composta por duas palavras (ad e olescere) que querem dizer para e crescer respectivamente. Para esta autora, palavra e conceito parecem estar afinados na ideia de que para

crescer é preciso sofrer.

Assim, a adolescência passou a ser compreendida como um “segundo nascimento”, como

um processo de desenvolvimento que permite aos indivíduos passarem de um estado “primitivo”, a infância, a um estado “civilizado” e racional, que é a adultez. Para Galland (1991), Wallace e Kovatcheva (1998), as mulheres não vivenciam este período de forma igual aos homens, pois, segundo Hall, elas são marcadas pela estreiteza dos seus horizontes, são menos capazes de se prender a objetos impessoais e guardam alguns traços da mentalidade infantil, mantendo-se sempre mais infantis e mais próximas da natureza.

Embora Stanley Hall49 tenha sido importante para o estudo da adolescência, é Erikson o psicólogo que autores como Galland (1991), Mauger (1994), Wallace e Kovatcheva (1998) consideram como aquele que mais influenciou o pensamento sobre a adolescência. Inicialmente porque compreendeu a adolescência como um estágio de desenvolvimento, associado a uma crise de identidade que, ao ser ultrapassada com sucesso, permite a integração dos jovens na sociedade. Em seguida, porque define a juventude como um período de moratória social, de experimentação e de auto-descoberta50, como já fora exposto aqui. Independentemente das críticas por ser uma concepção essencialista da adolescência, quer a proposta de Stanley Hall, quer a de Erikson, ao entender a juventude como uma fase de desenvolvimento que conduz à integração social dos indivíduos, ambas inscrevem-se numa das abordagens teóricas que mais têm influenciado o pensamento sobre a juventude: as teorias da socialização (ALVES, 2008).

O fato de os primeiros textos científicos terem sido produzidos por psicólogos, tornam compreensíveis os argumentos de Mauger (1994a, p. 217) ao afirmar que a juventude, por ter sido considerada durante muito tempo uma propriedade do individuo – falava-se de “crise da adolescência” e de “personalidade adolescente” – explica que a “questão da juventude”, como domínio de investigação, tenha-se convertido, durante décadas, num objeto de estudo de psicólogos, psicanalistas, psiquiatras e médicos.

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Para Pappámikail (2011, p. 86), foi a partir dos pressupostos de Hall que se formou fortemente a associação da adolescência “definida como um período de transformações fisiológicas e hormonais que elevam o corpo da criança ao estádio adulto e que rapidamente se constituiu numa categoria simultaneamente clínica e social”, a um inevitável tempo de stress e tempestade, determinado por imperativos biológicos e psicológicos que seguiam, basicamente, a linha psicanalítica Freudiana.

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Galland (1991, 1996a.) advoga que esta ideia continua ainda presente nos trabalhos de vários sociólogos da juventude.

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À juventude como propriedade do individuo contrapõe-se uma noção de juventude como “grupo de idade”51, como bem evidenciou Alves,

Trata-se, todavia, de uma definição que se apresenta fortemente controversa e que tem sido objeto de inúmeras críticas. Uma das críticas mais frequentes decorre do questionamento do processo de naturalização do atributo ‘idade’ e da pertinência da sua utilização para a definição de uma categoria social. Sendo a idade um dado biológico indiscutível, ela é também uma construção social que varia no tempo, no espaço geográfico, no espaço social e no espaço das políticas públicas52. Neste sentido, a juventude como grupo de idade não passa de uma abstração que não tem em conta as condições históricas, sociais e políticas que intervêm no processo de construção conceptual que lhe dá origem. (ALVES, 2008, p. 29-30).

Bourdieu, no artigo já referido no início deste capítulo, “A juventude é apenas uma palavra”, publicado em 1983, afirma que “divisões entre idades são arbitrárias”; as fronteiras de idades são objetos de disputas sociais para ingresso no mercado de trabalho, na escola, no casamento etc. Carrano (2000, p. 12), apesar de não concordar também com a definição da juventude em termos etários, sinaliza que este é um critério bastante utilizado nos estudos estatísticos e na institucionalização das idades de escolarização e das responsabilidades jurídicas e sociais. Para o autor, é comum, ao se definir a ideia de juventude, associá-la a uma faixa etária vinculada à “imaturidade psicológica”, quando o mais adequado seria “compreender a juventude como uma complexidade variável, que se distingue nos diferentes tempos e espaços sociais” [...].

Alguns autores questionam a ideia de homogeneidade que está subjacente à construção etária da juventude. Chamboredon (1966), citado por Dubet (1996b), foi um dos primeiros sociólogos a colocar luz sobre à diversidade da juventude, especialmente em função da sua origem de classe. Mas, outros se sucederam, a exemplo de Nunes (1968)53, em Portugal, e

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O conceito desenvolvido por Mauger insere-se nessa abordagem. Para ele (Mauger), a juventude é a idade da dependência familiar e econômica; a idade das incoerências estatutárias, na medida em que a manutenção de alguns interditos da infância coexistem com a aparição progressiva de privilégios de adulto; a idade da indeterminação entre a posição social de origem e a de destino; a idade das classificações sociais que o próprio constrói e que os outros lhe atribuem no mercado de trabalho e no matrimonial (MAUGER, 1998, p. 56-58). 52

Em Portugal, por exemplo, a categoria “jovem agricultor” estende-se até os 40 anos. Para receber o crédito da habitação, a juventude vai até os 30 anos. Para casar e tirar a habilitação de motorista, sem necessitar da autorização prévia dos pais, a idade adulta inicia-se aos 18 anos, enquanto a imputabilidade criminal tem lugar a partir dos 16 anos.

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Nunes (1968, p. 85-86) se referia à juventude como uma constelação de “meios sociais juvenis” e defendia a existência de várias juventudes, uma ou mais juventudes burguesas, uma ou mais juventudes operárias.

Bourdieu (2003), na França. No Brasil, o debate é recente e, por isso, demanda uma reflexão maior neste sentido.

Um dos grandes perigos que ronda a busca por uma definição de juventude é o fato de que ela não aglutina, necessariamente, grupos homogêneos. Mesmo se forem estabelecidos critérios sócio-históricos, um indivíduo jovem de 17 anos tem características fisiológicas e psicológicas diferentes de um indivíduo jovem de 24 anos. Além disso, a experiência de um jovem morador do sertão nordestino difere essencialmente da experiência de um jovem, da mesma idade, da classe média paulistana. Múltiplos fatores contribuem para uma diferenciação de grupos dentro do grupo maior juventude, dentre eles religião, classe social, territorialidade, relações de gênero, grupos étnicos, entre outros.

As desigualdades e heterogeneidades que prevalecem no país são vividas pelos jovens e expressas das mais variadas formas. O acesso aos direitos e aos bens culturais se dá de forma desigual e injusta, especialmente quando se considera o que amplia ou restringe as suas possibilidades de acesso a um trabalho. São diversas juventude(s), imersas em diferentes contextos. As mulheres jovens, os jovens negros de ambos os sexos, assim como os jovens das áreas metropolitanas de baixa renda, ou de determinadas zonas rurais são afetados de forma mais severa pela exclusão social, pela falta de oportunidades e pela falta de emprego. Desse modo, é compreensível a indagação: de que juventude(s) estamos falando?

O reconhecimento dessa diversidade e dos fatores condicionantes relacionados à juventude levou alguns estudiosos do tema, no Brasil, a exemplo de Abramovay (2006), Castro (2006), Abramo (2005) e Freitas (2005) a optarem pelo uso de juventudes no plural. Porém, para uma das pioneiras nas discussões sobre juventude no Brasil, a professora Sposito (2008), tratar de juventude no plural é uma imprecisão, decorrente, em parte, da sobreposição indevida entre fase da vida e sujeitos concretos.

Infância e criança são noções que exprimem estatutos teóricos diferentes, operação ainda não delimitada claramente pelos estudiosos, profissionais e demais agentes sociais que tratam da juventude, pois superpõem jovens- sujeitos – e fases da vida – juventude – como categoria semelhante. (SPOSITO, 2008, p. 60).

Ainda para esta autora (Sposito), ao falarmos de juventude estamos nos referindo a um momento do ciclo da vida – histórico socialmente construído – vivido e interpretado de formas

variadas e por diferentes jovens. Vários são os jovens e condições que os diferenciam: raça/ etnia, gênero, geração, faixa etária, região, entre outras.

Apesar de legítimos os argumentos dos pesquisadores(as) que pluralizam a juventude e compreensíveis os argumentos da professora Sposito, para efeito deste trabalho, será adotado o uso da palavra no singular, uma vez que, nesta pesquisa, serão trabalhados percursos laborais de uma juventude específica – a juventude trabalhadora – e, sobretudo, por acreditar que mais importante que discutir a diversidade da juventude é discutir as desigualdades presentes no interior deste segmento.

Porém, por mais diversos que sejam os jovens, este estudo analisa uma parcela da juventude com um perfil definido: jovens que, além de viver todos os dilemas próprios de um cotidiano incerto por natureza, buscam uma inscrição no emprego. São jovens que, desde muito cedo, procuram trabalho, nas suas várias dimensões e possibilidades e, que, no esforço de se inserir no mercado de trabalho, conciliam, quase sempre, horas de formação – na perspectiva de que esta seja a única responsável pela mobilidade social ascendente – com percursos laborais marcados por turbulências, flexibilidade e impermanências. Jovens, como bem evidenciou Pais (2005, p. 17), “que rodopiam por multiplicidade de trabalhos precários, intervalando inserções provisórias no mundo do trabalho com desinserções periódicas”.

Desse modo, por mais Juventude(s) que se possa reconhecer, esta tese centra-se numa juventude específica, com “cara” definida: a juventude trabalhadora. E, como hipótese central deste trabalho, acredita-se que especialmente esta juventude representa uma categoria gerada cotidianamente pelas relações sociais entre capital-trabalho. Para tanto, compreendê-la se faz necessário. Nesse sentido, antes de qualquer coisa é preciso, portanto, percorrer a constituição da nossa sociedade, pois assim como o conceito de juventude, a compreensão do que é ser jovem foi se reconfigurando de acordo com as tensões e contradições construídas do interior da sociedade brasileira e na conformação do seu mercado de trabalho.

CAPÍTULO II - MERCADO DE TRABALHO, ENFOQUES E AÇÕES PARA