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O DEBATE CONTEMPORÂNEO SOBRE A SEGURANÇA ALIMENTAR E A PRODUÇÃO AGRÍCOLA FAMILIAR

No presente capítulo, procura-se evidenciar que, do ponto de vista de sua quantidade, a produção de alimentos é suficiente para satisfazer o conjunto da população mundial, ainda que os processos de produção nem sempre ocorram próximo aos locais onde se encontram os potenciais consumidores. Assim, o volume da produção não constitui a principal questão a ser debatida, e sim o controle da produção e da distribuição, que condiciona o acesso e a destinação daquilo que é produzido. Esta, aliás, é uma posição defendida por muitos pensadores, no mundo inteiro, destacando-se Castro (1954) em sua batalha contra a fome. Diversos posicionamentos de fóruns internacionais a respeito do problema alimentar, particularmente a partir da década de 1980, também adotam essa premissa.

A crítica feita a essa tese centra-se basicamente no suposto exagero das variáveis econômicas que nela estaria implícito. Porém, efetivamente, esse aspecto não abala sua imprescindibilidade para que se desvendem os componentes ideológicos que estão por trás das explicações para a persistência da fome generalizada no mundo - estimativas menos pessimistas, como as da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO, 2005), sugerem que mais de 843 milhões de pessoas estão submetidas à fome de maneira crônica na atualidade.

Assim, a discussão sobre segurança alimentar evolui num contexto em que, por um lado, a capacidade de produzir e os recursos técnicos modernos estão bastante avançados, e por outro lado, o acesso efetivo aos alimentos é fortemente desigual, quer no que se refere às diferentes áreas do Planeta quer no que diz respeito aos distintos segmentos populacionais de uma mesma área geográfica. Esse debate estabelece-se e se fortalece, ocupando espaço nas agendas públicas internas e em fóruns internacionais, a partir das demandas conduzidas por entidades da sociedade civil nos diversos países. No Brasil, especialmente, a formulação da agenda de discussão e a construção de instrumentos para que venham efetivamente acontecer ações de combate ao problema alimentar só têm sido possíveis devido à força que as entidades do movimento social conseguem demonstrar, conquistando espaços de interferência junto ao Governo.

Diante de uma realidade complexa e desfavorável para o bem-estar dos indivíduos, baseada em um padrão de desenvolvimento socioeconômico cujo centro é o mundo urbano, crescem nas diferentes sociedades do Planeta a discussão e as experiências de revalorização do mundo rural. Mesmo que as decisões sobre essa revalorização dependam da própria dinâmica do mundo urbano, é decisivo o sentido de conquista que essa discussão representa para o conjunto do movimento social, através da atuação das múltiplas entidades. Repensar e redefinir rumos na trajetória humana impõe-se como uma necessidade urgente nas cidades, mas sua essência transformadora reside na força do movimento social do campo. Nesse sentido, as possibilidades de transformação qualitativa do meio rural passam necessariamente pela promoção da unidade familiar de produção enquanto forma social mais eficiente para sustentação do modo de vida no campo.

2.1 A produção de alimentos e a fome no mundo

Considera-se nesta seção que a atual capacidade técnica de produção de alimentos é suficiente para garantir o abastecimento e o atendimento das necessidades básicas da totalidade da população mundial. Entretanto, não são as necessidades socialmente determinadas que regem a produção e sim as condições históricas da sociedade capitalista que controlam tanto o volume dessa produção como o acesso dos indivíduos àquilo que é efetivamente produzido. Essa determinação resulta em situações inaceitáveis nas quais populações inteiras morrem por inanição em meio à abundante produção de cereais, carne bovina ou frutas, ou ainda morrem por extrema escassez de comida causada por embargos comerciais e por destruição das atividades econômicas em função de conflitos internos.

A população mundial, embora tenha crescido a taxas discretas nas últimas décadas, apresenta valores bastante elevados em termos absolutos. De acordo com dados da FAO, para 2003, a população total era de 6,2 bilhões de pessoas, distribuídas da seguinte maneira nos quatro continentes: África (13,6%), Ásia (61,3%), América (12,7%), Europa (11,8%) e Oceania (0,6%).

O crescimento tem ocorrido de forma distinta nos diversos lugares, sendo normalmente observadas taxas maiores nos países de baixa renda, e taxas menores, às vezes negativas, nos países ricos. Por outro lado, omitindo-se a crítica

aos critérios utilizados para determinação do rural e do urbano, nos diferentes países, ainda assim verifica-se que a população rural continua quantitativamente predominante no âmbito mundial: rural, 52,3% e urbana, 47,7%. Esse resultado deve-se, basicamente, à circunstância de que os dois continentes nos quais a população rural é maior que a urbana (África, 61,3%, e Ásia, 62,3%) concentram 3/4 da população total. A América, a Europa e a Oceania apresentam percentuais da população urbana significativamente superiores aos da população rural: 76,0%, 73,0% e73,3%, respectivamente.

Tabela 1: População mundial por continente – 2003 População (mil habitantes)

Continente

Rural Urbana Total

África 521.555 329.004 850.559 Ásia 2.341.989 1.481.400 3.823.389 América 190.187 600.998 791.185 Europa 196.878 540.230 737.108 Oceania 8.607 23.629 32.236 Total 3.259.216 2.975.261 6.234.477

Fonte: Faostat. Disponível em: <http://www.faostat.fao.org>. Acesso em: 14. mar. 2006.

Considerando-se os dados da FAO, de 2003, sobre a população e a produção de alimentos no mundo, observa-se que a maior disponibilidade foi de cereais e de frutas, sendo menores as quantidades das carnes e dos produtos da pesca, conforme mostra a tabela 2. A produção de cereais atingiu naquele ano mais de dois bilhões de toneladas, tendo como principais produtores: a China, com 377,5 milhões de toneladas, que correspondem a 18,2% da produção mundial; os Estados Unidos, com 348 milhões de toneladas, o que corresponde a 16,8% do total, e a Índia, com 232 milhões de toneladas, respondendo por 11,2% da produção total.

As frutas tiveram uma produção de 1,3 bilhões de toneladas, sendo a China o principal produtor, com 483 milhões de toneladas, representando 36,6% da produção total; a segunda maior produção vem dos Estados Unidos, com 66,2 milhões de toneladas, correspondendo a 5% da produção total; o Brasil é o terceiro maior produtor de frutas, com 42 milhões de toneladas e representa 3,2% da produção total.

A produção mundial de carnes alcançou 253,5 milhões de toneladas e teve como principais produtores: a China, que produziu 71 milhões de toneladas, representando 28% da produção total; os Estados Unidos, que produziram 38,7

milhões de toneladas, respondendo por 15,3% do total; e o Brasil, com 18 milhões de toneladas, o que representa 7,4% da produção total.

Por sua vez, os produtos oriundos da pesca atingiram 132,9 milhões de toneladas. A China é seu principal produtor, com 45,9 milhões de toneladas, que representam 34,5% da produção mundial. A Índia é o segundo maior produtor, com seis milhões de toneladas, representando 4,5% da produção total. A Indonésia, que produziu 5,4% milhões de toneladas e representou 4,1% do total, é o terceiro maior produtor.

Tabela 2: Disponibilidade de produtos alimentares selecionados - 2003

Produtos Produção total (mil toneladas) Disponibilidade (kg/hab)

Cereais 2.075.309 332,9

Frutas 1.322.454 212,1

Carnes 253.528 40,6

Produtos da pesca 132.989 21,3

Fonte: Faostat. Disponível em: <http://www.fao.org>. Acesso em: 19. nov. 2006.

Evidentemente, não se pode considerar que a disponibilidade significa a garantia de acesso aos alimentos. Por se tratar do volume físico da produção total relativamente à população total, a disponibilidade constitui uma condição necessária, porém, insuficiente para garantir o acesso, que é um requisito da segurança alimentar. Este, por sua vez, é condicionado, entre outros fatores, pelo caráter das relações de produção e de propriedade dominantes em cada lugar, que determinam a distribuição da riqueza produzida, e pela renda auferida pela população demandante, que manifesta o volume apropriado pelas partes envolvidas na produção. Ao longo do século XX, observa-se que muitas sociedades sofreram problemas graves de abastecimento e, por conseguinte, fome generalizada. Na quase totalidade, as causas identificadas são causas não-naturais. O quadro 2 ilustra esse cenário.

Período Localização Pop. Atingida Causas principais

1942 Bengala 2 milhões Escassez de comida 1944 Japão 1,8 milhão Guerra mundial

Pós-Segunda Guerra Europa ocidental 4 milhões Guerra e recessão econômica 1954 Argélia 300 mil Guerra pela libertação

1958/1966 África do Sul 1 milhão Guerra

1979 Moçambique 210 mil Guerrilhas

1983 Nigéria 2 milhões Redução de rendimentos do petróleo 1992/1994 Zaire 700 mil Colapso da indústria mineira

Quadro 2: Algumas crises de abastecimento ao longo do século XX

Na atualidade, de acordo com recente publicação da FAO (2005), são estimadas em cerca de 840 milhões as pessoas que sofrem de fome crônica, nos diversos continentes. Muitas dessas pessoas estão envolvidas em situações de conflito armado de longa duração. O mapa 1 permite destacar que as áreas mais fortemente afetadas, tanto pela diversidade de causas como pela extensão do problema, encontram-se no continente africano, combinando-se fatores naturais e principalmente guerras localizadas.