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O debate sobre a formação do professor no processo de aprovação das diretrizes

Nos estudos que desenvolve sobre a história do currículo, Goodson (1995:20) chama a atenção para a importância de compreender as lutas precedentes em torno da definição pré-ativa de currículo. O conflito existente no processo de concepção, tramitação e aprovação das diretrizes curriculares para a formação de professores expressa essa relevância seja pelos embates travados em diferentes instâncias, seja pela produção de um conjunto de documentos, textos, portanto, que vêm contribuindo para a formação do discurso sobre currículo da formação de professores no Brasil. Trata-se, desta forma, de entender os enunciados propostos nos textos produzidos a partir de seu contexto.

Em relação à concepção de contexto, pode-se dizer que existe uma diversificada utilização desse termo por diferentes autores, identificando-se inclusive um mesmo autor utilizando esse termo de maneira diferente em vários momentos, sem disso se dar conta

Foucault distingue o contexto situacional e o contexto verbal. O contexto situacional de um enunciado está relacionado à situação social na qual ele ocorre; já no contexto verbal de um enunciado é preciso identificar sua posição em relação a outros enunciados que o precedem e o seguem. (FAIRCLOUGH, 2001: 72)

A relação entre a fala e o seu contexto verbal e situacional não é transparente: a forma como o contexto afeta o que é dito ou escrito, e como isso é interpretado, varia de uma formação discursiva para outra. (Idem)

Na compreensão do contexto situacional dos discursos de reformas aqui analisados, alguns aspectos são particularmente relevantes e merecem ser destacados. Primeiramente, o entendimento de que a materialização de uma política curricular, um dos elementos centrais do processo de reforma educativa em curso, é marcada por avanços e recuos, uma vez que não se apresenta homogeneamente, e nem acontece linearmente, seguindo um curso natural.

Um dos fatores que pode ter influenciado neste sentido foi a constante contraposição feita pelos movimentos sociais e entidades às políticas educacionais concebidas na gestão do governo Fernando Henrique Cardoso (1994-2002).

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Antes mesmo da aprovação da nova LDB, a disposição em se contrapor ao conjunto de medidas incentivadas pelo governo federal de então já era explicitada em documento produzido pela ANFOPE23, em um dos seus encontros nacionais. Tal posição está claramente expressa:

A ANFOPE contrapõe-se a esse estado de coisas, posicionando-se em defesa das conquistas históricas da cidadania, o que requer uma ampla compreensão das determinantes dessas políticas que advêm evidentemente do projeto neoliberal do atual governo Fernando Henrique Cardoso. Um dos caminhos é, sem dúvida, desvelar as contradições presentes na política educacional e apresentar soluções para a formulação, difusão e defesa de alternativas pedagógicas diretamente articuladas com projetos de sociedade que tenham o ser humano e a transformação social como centralidade dessas políticas. (1996: 11).

Outro fator que pode ter contribuído no processo de efetivação das políticas curriculares foi a composição do Conselho Nacional de Educação que, em tese, representaria a lógica das políticas oficiais. Esse órgão não se constitui homogeneamente, incorporando representantes de diferentes segmentos da sociedade; nele estão presentes, por exemplo, educadores como a conselheira Silke Weber e Carlos Roberto Jamil Cury, os quais vinham tradicionalmente se posicionando no campo dos movimentos sociais, ou acadêmicos de tradição na discussão educacional. Verifica-se ainda uma forte influência, no Conselho Nacional de Educação, dos representantes dos interesses das instituições privadas, os quais evidentemente estão compromissados com a necessidade de atender à lógica do mercado, com vistas à viabilidade financeira das instituições que representam.

Uma outra constatação diz respeito às dificuldades inerentes à materialização de uma legislação, uma vez que a regulamentação das diretrizes e bases da educação nacional nem sempre é efetivada por quem a concebeu. Muitas redefinições aconteceram no texto produzido, tendo em vista a dinâmica da sociedade, sobretudo pela resistência representada pelos movimentos organizados, que certamente influenciaram na configuração dos textos aprovados.

Reforçando essa argumentação, podemos verificar o espaço de tempo entre a aprovação da LDB (1996), aprovação do parecer das diretrizes curriculares para os cursos de

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Documento Final do VIII Encontro Nacional, Belo Horizonte, 1996.

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formação de professores, em 2001 e por último as Resoluções CNE/CP nº 01/200224 e Resolução CNE/CP nº 02/200225. Esta última resolução alterou a carga horária dos cursos de formação de professores, inicialmente prevista para 3.200 horas, revogando dispositivos anteriormente formulados, que previam a incorporação de 800 horas da parte prática da formação aos alunos que comprovassem exercer atividade docente regular na educação básica. Um outro dispositivo revogado foi o aproveitamento de estudos até o limite de 800 horas para os alunos egressos de curso normal em nível médio, objeto de muitas críticas dos movimentos sociais organizados e do meio acadêmico. A possibilidade de redução de 1600 horas do total previsto motivou a viabilização de cursos de formação de professores por instituições privadas com desenho curricular, as quais se utilizaram deste dispositivo que lhes beneficiava em relação ao custo dos cursos.

3.2.1 Sobre os documentos analisados

Os documentos selecionados pela importância que tiveram na configuração do campo discursivo analisado acham-se assim categorizados: textos elaborados no âmbito da política oficial e textos elaborados pelos movimentos sociais organizados.

o Textos elaborados no âmbito da política oficial

Com a aprovação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional foram editados leis, decretos e pareceres que orientam as políticas educacionais, em especial a formação de professores26. Na construção deste capítulo foram priorizados os seguintes documentos: Parecer n° 53/99, Resolução CNE/CP nº 01/99 e o Parecer CNE/CP n° 009/2000, ambos elaborados pelo Conselho Nacional de Educação, órgão igualmente vinculado ao Ministério de Educação.

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A Resolução nº 01/2002 institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena.

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A Resolução nº 02/2002, altera a duração e a carga horária dos cursos de licenciatura, de graduação plena, de formação de professores da Educação Básica em Nível Superior, anteriormente estabelecida.

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Síntese em anexo.

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O Parecer CNE/CP n° 53/99 foi aprovado no dia 10 de agosto de 1999, no Conselho Pleno desse órgão sendo relatores os seguintes conselheiros: Edla de Araújo Lira Soares, Eunice R. Durham, Francisco Aparecido Córdão, Guiomar Namo de Mello, Jacques Velloso e Silke Weber. Esse documento teve a intenção de orientar a aplicação dos artigos 62 e 63 da LDB, voltando-se para o estabelecimento de diretrizes para os Institutos Superiores de Educação. Mais tarde foi transformado na Resolução CNE/CP n° 01/99, a qual “dispõe sobre os Institutos Superiores de Educação, considerados os Art. 62 e 63 da Lei 9.394/96 e o Art. 9º, § 2º, alíneas "c" e "h" da Lei 4.024/61, com a redação dada pela Lei 9.131/95”.

O outro documento analisado, Parecer CNE/CP n° 09/200127, versa sobre as diretrizes curriculares nacionais para a formação de professores da educação básica e foi aprovado em 08/05/2001. Contém a idéia de base comum de formação docente expressa em diretrizes, que possibilitam a revisão criativa dos modelos em vigor (p. 4). Antes da aprovação de sua versão final, percorreu várias instâncias, tendo origem no Grupo de Trabalho designado pelo MEC, composto de representantes das Secretarias de Educação Fundamental, Educação Média e Tecnológica e Educação Superior, sendo encaminhado no mês de julho de 2000 para análise por uma Comissão Bicameral. Segundo ainda consta no próprio documento, este foi submetido à apreciação da comunidade educacional em várias instâncias: cinco audiências públicas regionais (Porto Alegre, São Paulo, Goiânia, Recife e Belém); uma reunião institucional realizada em Brasília com a participação de representantes de entidades como Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Educação, União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação; reunião técnica realizada em Brasília, que contou com a participação de representantes das comissões de especialistas da Secretaria de Educação Superior, de representantes das associações científicas e Fórum de Licenciaturas; por último, em 23/04/2001 foi realizada uma reunião que contou com a participação de representantes de várias entidades acadêmicas, científicas, de classe.

O documento aponta a necessidade de

uma revisão profunda de aspectos essenciais da formação inicial de professores, tais como: a organização institucional, a definição e estruturação dos conteúdos para que respondam às necessidades da atuação do professor, os processos formativos que envolvem aprendizagem e desenvolvimento das competências do professor, a vinculação entre as escolas de formação inicial

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Posteriormente transformado na Resolução CNE/CP 1, de 18 de fevereiro de 2002, que institui diretrizes curriculares nacionais para a formação de professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena.

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e os sistemas de ensino, de modo a assegurar-lhes a indispensável preparação profissional (...) (P.10).

o Textos elaborados pelos movimentos sociais organizados

Neste grupo de documentos que foram consultados inclui-se a produção coletiva28 da ANFOPE29, acumulada ao longo de mais de 20 anos de construção de um projeto alternativo para a formação do educador. Esse projeto teve início com a constituição de um Comitê Pró-Formação do Educador, que desejava ampliar o debate, o qual se encontra demarcado entre os anos de 1980 e 1983.

Serão considerados os documentos finais dos eventos ocorridos no período entre 1983 e 1990, disponibilizados pela ANFOPE, quando o movimento dos educadores brasileiros se constituiu como Comissão Nacional de Reformulação dos Cursos de Formação do Educador (CONARCFE) e o atual período que tem início em 1990, a partir da criação da Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE).

Os conceitos abordados no campo da formação de professores vêm sendo influenciados pelas propostas da ANFOPE, antes mesmo da sua fundação como CONARCFE30 , seja porque confirmam essas propostas seja porque a elas se referem, negando-as ou atribuindo-lhes um novo significado.

No debate nacional que se instalou sobre as diretrizes curriculares da formação de professores, a ANFOPE expressou sua posição em diferentes momentos. No IX Encontro Nacional31, no ano de 1998, o documento final sintetizou a posição da entidade em relação ao assunto ressaltando os seguintes pontos:

Pensar as Diretrizes da Pedagogia como parte indissolúvel e articulada às Diretrizes Curriculares para todos os Cursos de Formação dos Profissionais da Educação; ampliar e democratizar o debate, levando em conta a produção do movimento dos educadores e da ANFOPE nos últimos 15 anos, e contrária a qualquer processo que desconhecesse os caminhos construídos

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Documentos finais dos eventos realizados em âmbito nacional e disponíveis na homepage da ANFOPE:

www.lite.fae.unicamp.br/anfope

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Ver quadro síntese em anexo

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Comissão criada em 1983 e que resultou do movimento de organização de educadores que se expressaram no debate político travado sobre a formação do professor na década de 80, e já explicitado em capítulo anterior.

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Cf. ANFOPE, Documento Final

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pelo movimento tanto do ponto de vista da forma, quanto do conteúdo das propostas; considerar que as Diretrizes Curriculares não devem constituir-se "camisa de força" para as IES, mas explicitar áreas de formação que, nas particularidades das IES, possam ser materializadas levando-se em conta a base comum nacional e levar em conta que esse processo não poderá significar o "enxugamento" das disciplinas teóricas dos currículos atuais dos cursos de graduação, sob pena de desqualificar a formação básica e enfatizar as práticas sem qualquer conteúdo de formação qualitativamente superior.

Os dados coletados sugerem a existência de uma estreita relação entre o que foi incorporado nos textos oficiais e algumas das principais propostas dos movimentos organizados, reafirmando assim a idéia de interdiscursividade, que já havia sido referida. Com isso está se reafirmando o entendimento de Foucault (1986) de que não há enunciado que não suponha outros, bem como de que não há enunciado que não tenha em torno de si um campo de coexistências.

É possível identificar um diálogo entre os textos oficiais e o conjunto da produção dos movimentos sociais organizados, mas isto não implica necessariamente concordância entre as partes, o que pode ser entendido como decorrência da tensa interação que se desenrolou no processo de aprovação das diretrizes curriculares, ainda não superada.