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O DECLÍNIO DA CENSURA , A DESCOBERTA DA AIDS E A INSERÇÃO DA

[ ] a transformação social não ocorre simplesmente por uma concentração massiva em

5.1. C ONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DO DISCURSO PEDAGÓGICO PELA DIVERSIDADE SEXUAL NO B RASIL

5.1.1. O DECLÍNIO DA CENSURA , A DESCOBERTA DA AIDS E A INSERÇÃO DA

ORIENTAÇÃO SEXUAL NOS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS

Nos anos de 1970, com o declínio gradual da ditadura militar e da censura, surgem artigos, revistas, peças, propagandas e todo um aparato cultural com temas voltados para a questão da homossexualidade. Segundo Trevisan (2004), neste período, o Brasil passava por uma fase de liberação individual, vários intelectuais e artistas exilados pela ditadura militar voltavam a morar no país e traziam consigo as influências dos movimentos de grupos feministas, homossexuais, afro-descendentes, ambientalistas que estavam acontecendo nessas regiões.

Personalidades como Caetano Veloso, Gilberto Gil e, principalmente, Ney Matogrosso “brincavam” com as figuras de masculino e feminino em suas músicas e performances, marcadas pela dubiedade lingüística e imagética. A partir da metade da década de 1970, a temática do relacionamento homossexual começou a aparecer nas principais revistas de circulação nacional e em campanhas publicitárias. Trevisan (2004) realça que, no primeiro semestre de 1978, das vinte e cinco peças encenadas em São Paulo, onze tinham como tema a homossexualidade107.

No final da década de 1970, o movimento homossexual organizou- se e ganhou força no Brasil. Dois eventos se destacaram como marcos

107 Para maiores detalhes sobre a história da homossexualidade no Brasil, ler Trevisan (2004) e sobre a história do

desta época: o lançamento do primeiro jornal gay brasileiro – “Lampião da Esquina” – e a fundação, em São Paulo, da primeira entidade de defesa dos direitos homossexuais – a ONG “SOMOS”. Nos anos subseqüentes, vários grupos foram fundados e, atualmente, segundo Mott (2005) existem mais de cento e cinqüenta ONGs LGBT em todo o país.

Durante os anos de 1980 houve uma grande veiculação de informações sobre sexualidade na mídia. Foi o período em que o programa TV Mulher passou a ser exibido na Rede Globo e o quadro dirigido por Marta Suplicy, teve grande repercussão nacional. Várias enciclopédias sobre sexualidade foram vendidas em bancas de jornais e congressos sobre o tema foram realizados em todo país.

Este também foi o período em que os cientistas descobriram o Vírus da Imunodeficiência Humana - HIV e, tanto no contexto internacional quanto nacional, iniciou-se uma grande campanha de prevenção às doenças sexualmente transmissíveis, principalmente à AIDS. Os discursos sobre homossexualidade se multiplicaram. Ao mesmo tempo em que houve um fortalecimento da homofobia e intensificaram-se as relações discriminatórias e de exclusão social – a AIDS era chamada de “câncer gay” – a política identitária gay se fortaleceu e, sob o argumento da prevenção à doença, ONGs, setores políticos, escolas, grupos comunitários, igrejas e mídia começaram a falar mais abertamente sobre o tema. Como destaca Trevisan (2004, p. 462):

O vírus da AIDS realizou em alguns anos uma proeza que nem o mais bem-intencionado movimento pelos direitos homossexuais teria conseguido, em muitas décadas: deixar evidente à sociedade que homossexual existe e não é o outro, no sentido de um continente à parte, mas está muito próximo de qualquer cidadão comum, talvez ao meu lado e – isto é importante! – dentro de cada um de nós, pelo menos enquanto virtualidade (...) Graças à AIDS o desejo homossexual ficou mais presente (no sentido de evidência) dentro da sociedade em geral. Beneficiando-se da metáfora socialmente imposta, a homossexualidade tendeu a tornar-se uma realidade social menos invisível: o desvio veio à tona e, de certo modo, vingou-se, atacando em forma de vírus fulminante. Aguçou-se a “doença”. Aguçaram-se também as tentativas de defesa. Houve pânico porque o sistema imunológico da sociedade descobriu-se frágil e às vésperas de adoecer – de uma doença que a AIDS apenas significa. Os gestos de defesa têm sido desesperados, mas já não se sabe o que é mais temido: se a doença física, se a “doença” social do desejo.

A veiculação de informações e matérias sobre sexualidade na mídia escrita e televisiva, a multiplicação de eventos artísticos que abordavam a questão da homossexualidade, a organização dos movimentos homossexuais e, principalmente, o aparecimento da AIDS colocaram em xeque a heteronormatividade, denunciaram a sua “identidade fantasística” (BUTLER, 2003). Estabeleceu-se, então, um cenário de deslocamento revelando a contingência da estrutura discursiva e incentivando a construção de novos posicionamentos. Não era mais possível negar essa identidade e a urgência em enfrentar um problema de saúde pública força as instâncias governamentais e da sociedade civil a articularem em seus discursos os temas ligados à sexualidade. Decisões, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições morais surgiram tentando responder a essa questão. A Organização Mundial de Saúde (OMS) e outros órgãos da área começaram a estimular o desenvolvimento de projetos educacionais sobre sexualidade nas escolas. No Brasil, os Ministérios da Educação e da Saúde publicaram uma portaria – Portaria Interministerial n° 796, de 29 de maio de 1992 – recomendando a implantação e manutenção de projetos educativos sobre a transmissão e prevenção do HIV em todos os níveis de ensino. As escolas – inclusive as religiosas – preocupadas com esses dados começam a realizar palestras e debates sobre esses temas para pais e alunos/as.

Segundo Sayão (1997), entre os anos de 1989 e 1992, a Secretaria de Educação do município de São Paulo, sob a gestão de Paulo Freire, implantou um programa de orientação sexual nas escolas de 1° grau e, posteriormente, na educação infantil. Esse programa envolvia um processo sistemático de formação de professores para atuarem na área, que consistia num curso inicial e numa supervisão semanal dos trabalhos em andamento. A experiência obteve grande sucesso e projetos semelhantes foram implantados em outros municípios, durante toda a década de 1990 – Porto Alegre, Florianópolis, Campo Grande, Goiânia, Belo Horizonte, Santos e Recife.

Também na década de 90 foram elaborados – sob a coordenação do MEC – os “Parâmetros Curriculares Nacionais” (PCNs)108 para o ensino fundamental. A orientação sexual apareceu entre os temas transversais dos PCNs e recomendava-se que fosse trabalhada no ambiente escolar com o objetivo de tornar os alunos capazes de:

compreender a diversidade de valores, crenças e comportamentos existentes e relativos à sexualidade, desde que seja garantida a dignidade do ser humano; compreender a busca de prazer como uma dimensão saudável da sexualidade humana; conhecer seu corpo, valorizar e cuidar de sua saúde como condição necessária para usufruir de prazer sexual; reconhecer como determinações culturais as características socialmente atribuídas ao masculino e ao feminino, posicionando-se contra discriminações a eles associadas; identificar e expressar seus sentimentos e desejos, respeitando os sentimentos e desejos do outro; proteger-se de relacionamentos sexuais coercitivos ou exploradores; reconhecer o consentimento mútuo como necessário para usufruir de prazer numa relação a dois; agir de modo solidário em relação aos portadores do HIV e de modo propositivo na implementação de políticas públicas voltadas para prevenção e tratamento das doenças sexualmente transmissíveis/AIDS; conhecer e adotar práticas de sexo protegido, ao iniciar relacionamento sexual; evitar contrair ou transmitir doenças sexualmente transmissíveis, inclusive o vírus da AIDS; desenvolver consciência crítica e tomar decisões responsáveis a respeito de sua sexualidade; procurar orientação para a adoção de métodos contraceptivos. (BRASIL, 2001a, p. 133-134, grifo meu)

A proposta de orientação sexual como ação interdisciplinar é historicamente importante porque foi a primeira vez que ela surgiu oficialmente no currículo escolar brasileiro e foi apresentada como responsabilidade de todos que fazem a escola e não apenas da família ou de profissionais da área de saúde. Os PCNs também representaram o início de um processo de rompimento com a abordagem puramente biológica da sexualidade. O debate sobre corpo, por exemplo, aparece nos PCNs (das séries iniciais do ensino fundamental) relacionado a discussões sobre os fatores psicológicos e culturais que influenciam no seu desenvolvimento e na sua percepção pelos sujeitos.

108 Análises detalhadas sobre esses documentos podem ser encontradas em Bonamino e Martinez (2002);

[...] a abordagem sobre o corpo deve ir além das informações sobre sua anatomia e funcionamento, pois os órgãos não existiriam fora de um corpo que pulsa e sente. O corpo é concebido como um todo integrado de sistemas interligados e inclui emoções, sentimentos, sensações de prazer/desprazer, assim como as transformações nele ocorridas ao longo do tempo. Há, que se considerar, portanto, os fatores culturais que intervêm na construção da percepção do corpo, esse todo que inclui as dimensões biológica, psicológica e social. (BRASIL, 2001a, p. 139-140)

O tema “relações de gênero”, também é introduzido propondo-se que seja articulado às áreas de história, educação física e às situações de convívio escolar e realçando a necessidade dos/das professores/as enfatizarem que o contexto histórico, cultural, os valores e as crenças são fatores que geram a diversidade de comportamentos, de sentimentos, de “jeitos de ser”.

A rigor, pode-se trabalhar as situações de gênero em qualquer situação do convívio escolar. Elas se apresentam de forma nítida nas relações entre alunos [sic] e nas brincadeiras diretamente ligadas à sexualidade. Também estão presentes nas demais brincadeiras, no modo de realizar as tarefas escolares, na organização do material de estudo, enfim, nos comportamentos diferenciados de meninos e meninas. Nessas situações, o professor [sic], estando atento, pode intervir de modo a combater as discriminações e questionar os estereótipos associados ao gênero. Os momentos e situações em que se faz necessária essa intervenção são os que implicam discriminações de um aluno em seu grupo, com apelidos jacosos e às vezes questionamento sobre sua sexualidade. O professor [sic] deve então sinalizar a rigidez das regras existentes nesse grupo que definem o que é ser menino ou menina, apontando para a imensa diversidade dos jeitos de ser. Também as situações de depreciação ou menosprezo por colegas do outro sexo demandam a intervenção do professor a fim de se trabalhar o respeito ao outro e às

diferenças. [...] Nos conteúdos de história podem ser trabalhados

os comportamentos diferenciados de homens e mulheres em diferentes culturas e momentos históricos, o que auxilia os alunos a entenderem as determinações da cultura em comportamentos individuais. (BRASIL, 2001a, p. 145-146, grifos meus)

Alguns termos centrais do discurso pedagógico atual pela diversidade sexual – como respeito ao outro, respeito às diferenças – já aparecem nos PCNs. Além disso, podemos perceber nestes fragmentos discursivos – quando o texto destaca o combate a discriminações e à rigidez de estereótipos – os passos iniciais em direção ao movimento contra a homofobia na escola, um dos temas mais recorrentes do discurso político-

educacional atualmente. Este aspecto fica mais evidente em dois trechos dos PCNs (Temas Transversais) para últimas séries do ensino fundamental:

O trabalho com Orientação Sexual supõe refletir sobre e se contrapor aos estereótipos de gênero, raça, nacionalidade, cultura e classe social ligados à sexualidade. Implica, portanto,

colocar-se contra as discriminações associadas a

expressões da sexualidade, como a atração homo e bissexual, e aos profissionais do sexo. (BRASIL, 2001b, p. 316,

grifos meus)

Tome-se como exemplo a discussão do tema da homossexualidade. Muitas vezes se atribui conotação homossexual a um comportamento ou atitude que é expressão menos convencional de uma forma de ser homem ou mulher. Ela escapa aos estereótipos de gênero, tal como um menino mais delicado ou sensível ser chamado de “bicha” ou uma menina mais agressiva ser vista como lésbica, atitude essas discriminatórias. Em cada período histórico e em cada cultura, algumas expressões do masculino e do feminino são dominantes e servem como referência ou modelo, mas há tantas maneiras

de ser homem ou mulher quantas são as pessoas. Cada um tem o seu jeito próprio de viver e expressar sua sexualidade. Isso precisa ser entendido e respeitado pelos jovens.

(BRASIL, 2001b, p. 325, grifos meus)

Embora, a menção desses aspectos seja inovadora e revele os estágios iniciais de produção do discurso pela diversidade sexual e por práticas pedagógicas não-sexistas, o fato dos PCNs serem elaborados vinculados às políticas de prevenção da AIDS e do conteúdo “relações de gênero” aparecer associado ao corpo humano e à prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, para Altmann (2001) revela um posicionamento ainda conservador sobre educação sexual e incentiva às discussões ficarem restritas ao campo da saúde. A pesquisa de Silva, D. (2007), por exemplo, confirma este último aspecto e ressalta as dificuldades dos/as professores/as em abordar a temática gênero, a partir das orientações PCNs.

É importante ressaltar, também, que o processo de elaboração dos PCNs pelo MEC foi, na época, tema de diversos debates e embates – principalmente na comunidade acadêmica e entre o Conselho Nacional de Educação e o próprio MEC – apontando-se a excessiva centralização da política educacional adotada na época pelo Governo Federal, a exclusão de instâncias político-institucionais e científicas das discussões e decisões a

respeito da educação básica e o poder prescritivo dos conteúdos e situações didáticas propostas (CARVALHO, R., 2004; BONAMINO e MARTINEZ, 2002; LÜDKE, 1998). Estas disputas geraram um processo de negociação a respeito dos PCNs, que resultou na reafirmação, pela Câmara de Educação Básica, do seu caráter não-obrigatório (LÜDKE, 1999, p. 244) e no envio de uma versão preliminar para avaliação de professores e pesquisadores de diversas universidades do país, que redundou na elaboração de pareceres que auxiliaram a revisão final do material.

5.1.2. A PRESENÇA DE ONGS NO CENÁRIO POLÍTICO BRASILEIRO E SUA

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