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Precisamos prestar atenção às estratégias públicas e privadas que são postas em ação, cotidianamente,

3.2. T EORIAS PÓS FEMINISTAS E ESTUDOS QUEERS

De 1980 em diante, os estudos de gênero passaram por revisões e ampliaram suas reflexões. As posições binárias de análise de relações de poder foram reavaliadas e desvendaram-se desigualdades, inclusive, entre mulheres. Essas revisões aconteceram sob a influência dos estudos culturais e dos trabalhos de teóricos pós-estruturalistas – particularmente, os de Foucault e os de Derrida.

Para Mac an Ghail e Haywood (2007) os estudos de gênero mudaram de paradigma e passaram de uma ênfase materialista – centralizada nas estruturas econômicas e sociais – para um enfoque lingüístico – atentando para os sistemas simbólicos, as micro-relações de poder, a construção de identidades e subjetividades. A emergência desses estudos também foi influenciada por uma série de transformações sociais que marcaram as décadas de 1980 em diante: a separação entre prazer sexual, reprodução e casamento; o desenvolvimento das técnicas reprodutivas; o surgimento da epidemia HIV/AIDS; a maior visibilidade das comunidades LGBTs; o crescimento do mercado voltado para produtos sexuais e as mudanças nos discursos médicos, psicológicos e jurídicos76 sobre a homossexualidade que paulatinamente foi deixando de ser considerada (pelo menos oficialmente) uma patologia. Neste contexto, surgiram estudos engajados na desconstrução dos limites entre homo/heterossexualidade e alguns pesquisadores e ativistas dos movimentos LGBT passaram a usar o termo queer como forma de auto- designação77.

Queer é uma palavra usada desde o século XVI e significa “estranho”, por sua semelhança sonora, é normalmente associada ao vocábulo queen (rainha) e, convencionalmente, é utilizada para se referir de forma pejorativa a homossexuais, principalmente os do sexo masculino. Na última década do século XX, a expressão passou a ser emprega por uma

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É importante ressaltar que estas mudanças ocorreram em alguns países, em outros estão em andamento e em alguns parecem ainda distantes. Também devemos lembrar que tais transformações estão associadas a momentos históricos e contextos culturais específicos, principalmente das sociedades ocidentais.

77 A utilização do termo queer, segundo Louro (2001a), também está relacionada com tensões internas vivenciadas

nos movimentos gays e lésbicos no final da década de 1970, principalmente nos Estados Unidos. Portanto, o termo se refere tanto a uma corrente de teóricos quanto a movimentos sociais contemporâneos ligados a LGBTs.

vertente do movimento LGBT e adquiriu um novo sentido. Segundo Louro (2001a) a carga homofóbica que o termo carrega e o seu caráter debochado foi politicamente usado para marcar diferença e fazer oposição à heteronormatividade da sociedade, à normalização. “Queer representa claramente a diferença que não quer ser assimilada ou tolerada, e, portanto, sua forma de ação é muito mais transgressiva e pertubadora.” (p. 546)

De acordo com Miskolci (2007), no campo acadêmico, a expressão foi usada pela primeira vez em 1990 por Teresa de Lauretis, para identificar os/as teóricos/as que, fundamentados/as na perspectiva pós-estruturalista, desenvolveram estudos problematizando as noções de identidade, sujeito e gênero adotadas pelas teorias sociológicas sobre minorias sexuais. Seidman (1995) ressalta que os estudos queers, apesar de apresentarem divergências entre si, se aproximam por usarem o método derridiano da desconstrução como crítica social, por se fundamentarem em leituras psicanalíticas, por afirmarem o caráter discursivo da sexualidade e por defenderem uma política educacional que se posiciona contra a normalização.

O objetivo era explicitar os processos que criam sujeitos normais, adaptados, em suma, hegemônicos, apenas construindo também sujeitos ilegítimos, rotulados como anormais e alocados na margem do social. [...] foi essencial para o desenvolvimento da Teoria Queer, o conceito de suplementaridade criado por Derrida. Segundo ele, nossa linguagem opera em binarismos, de forma que o hegemônico só se constrói em uma oposição necessária a algo inferiorizado e subordinado. Assim, em um exemplo caro aos

queer, a heterossexualidade só existe em oposição à

homossexualidade, compreendida como seu negativo inferior e abjeto. Ainda que não expressa, a homossexualidade é o Outro sem o qual o hegemônico não se constitui nem tem como descrever a si próprio. (MISKOLCI, 2007, p. 03)

A teoria queer, de acordo com Miskolci (2007), originou-se de subdivisões dos Estudos Culturais, mais ou menos na mesma época em que emergiram os estudos pós-coloniais. O livro de Sedgwick (1986), denominado “Entre homens: literatura inglesa e desejo homossexual masculino” é considerado a primeira publicação queer e o de Warner (1991), o primeiro a apresentar o conceito de heteronormatividade, tipo de dispositivo histórico da sexualidade que privilegia a heterossexualidade, fazendo com que ela seja percebida como natural e ideal.

Provavelmente, uma das autoras da corrente pós-feminista mais influente na atualidade é Judith Butler (2003). Em “Problemas de Gênero”, ela desenvolve uma detalhada análise das teorias feministas e afirma que as mesmas além de apresentarem o termo “mulheres” como um significante estável, universal e politicamente separado das relações de classe, raça, etnia e geração, também se apóiam numa noção fundacionista de sujeito. A idéia de que a política e a lei precisam representar as mulheres, pressupõe a existência de um sujeito natural, não-histórico e uma identidade estável. Para Butler (ibidem), o poder jurídico produz o sujeito que diz representar, “certas configurações culturais do gênero assumem o lugar do ‘real’ e consolidam e incrementam sua hegemonia por meio de uma auto- naturalização apta e bem-sucedida.” (p.58)

A autora critica a distinção entre sexo e gênero elaborada pelas teorias anteriores, de acordo com as quais, o gênero é culturalmente construído e o sexo determinado por fatores biológicos. Segundo Butler (2003)

Quando o status construído do gênero é teorizado como radicalmente independente do sexo, o próprio gênero se torna um artifício flutuante, com a conseqüência de que homem e

masculino podem, com igual facilidade, significar tanto um corpo

feminino como um masculino, e mulher e feminino, tanto um corpo masculino como um feminino [...] O gênero não deve ser meramente concebido como uma inscrição cultural de significado num sexo previamente dado (uma concepção jurídica); tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos. (p. 25)

O gênero, nesta visão, é um meio discursivo pelo qual a idéia de sexo como algo da “natureza” é produzida e esta idéia é uma maneira de assegurar a estrutura binária (homem/mulher) do sexo, de salvaguardar dogmas como o da heteronormatividade. Neste sentido, sexo e gênero são produzidos através de práticas discursivas reguladoras.

O gênero não deve ser construído como uma identidade estável ou um lócus de ação do qual decorrem vários atos; em vez disso, o gênero é uma identidade tenuemente constituída no tempo, instituído num espaço externo por meio de uma repetição

estilizada de atos. O efeito do gênero se produz pela estilização

do corpo e deve ser entendido, conseqüentemente, como a forma corriqueira pela qual os gestos, movimentos e estilos corporais de

vários tipos constituem a ilusão de um eu permanente marcado pelo gênero [...] requer concebê-lo como uma temporalidade

social constituída. Significativamente, se o gênero é instituído

mediante atos internamente descontínuos, então a aparência de

substância é precisamente isso, uma identidade construída, uma

realidade performativa em que a platéia social mundana, incluindo os próprios atores, passa a acreditar, exercendo-a sob a forma de uma crença. (BUTLER, 2003, p. 200, grifos da autora)

Gênero, nesta perspectiva, não é expressivo, mas performativo: através de atos repetitivos o “eu de gênero” é estruturado. Se o gênero é criado através de performances sociais contínuas, as idéias de “sexo como algo da natureza”, de “masculinidade verdadeira” e de “feminilidade essencial” também são inventadas/construídas. Para Butler (2003) isto fica mais evidente, quando, não há repetição e os atos de gênero se transformam, ou se revelam diferentes. Nestes momentos, a identidade “fantasística” e sua constituição política é denunciada e as descontinuidades do gênero aparecem. É o caso dos contextos bissexuais, gays, lésbicos e transgêneros, onde o “gênero não decorre necessariamente do sexo, e o desejo, ou a sexualidade em geral, não parece decorrer do gênero – nos quais, a rigor, nenhuma dessas dimensões de corporeidade significante expressa ou reflete a outra” (p. 194). A desconstrução do gênero elaborada por Butler foi, também, um dos elementos motivadores do desenvolvimento de estudos sobre as estratégias que as sociedades desenvolvem para regular e materializar o sexo nos sujeitos, sobre as subversões das normas, as fissuras e brechas que ocorrem nos processos sociais.

Fazendo uma análise do contexto atual em que se encontram os estudos queers, Miskolci (2007) destaca a reaproximação entre a teoria queer e os estudos pós-coloniais e aponta o surgimento da idéia de um ponto de intersecções de diferenças:

Recentemente, as alianças esboçadas entre os Estudos Pós- coloniais e a Teoria Queer parecem renascer a partir de um nó da intersecção: aquele formado pelas categorias da sexualidade e raça. Não se trata apenas de aliança estratégica, mas de certo consenso de que as categorias são interdependentes em um mesmo processo de racialização do sexo e sexualização da raça [...] estaria na conexão raça-sexualidade, um nó que evidencia um mesmo processo normalizador que cria seres menos humanos ou até mesmo abjetos. (MISKOLCI, 2007, p. 11)

O intuito dessa articulação é mostrar que a diferença é criada através da utilização conjunta de vários marcadores sociais que almejam a normalização. Seguindo essa linha, Miskolci e Pelúcio (2007) desenvolveram um estudo etnográfico entre travestis brasileiras e perceberam que, apesar de suas identidades desestabilizarem o binarismo de gênero, se submetem a um modelo de mulher heterossexual, branca e rica. Se referindo às travestis, eles dizem:

[...] quando Liza Lawer, Samantha Sheldon, Fernanda Galisteo escolhem seus nomes e sobrenomes, não o fazem de maneira casuística, mas a partir de um referencial no qual raça, classe, gênero se encontram e se combinam. Mulheres glamourosas, sexualizadas, ricas, brancas e loiras orientam essa escolha sintetizada nos nomes. (MISKOLCI e PELÚCIO, 2007, p. 07)

Para os autores, isto consiste num mecanismo de fuga da abjeção, de busca de dignidade através da imagem do outro que é reconhecido e valorizado pela sociedade. Os discursos hegemônicos são materializados nos corpos das travestis, por meio de uma busca incessante pelo branqueamento, feminilização e da fantasia de conquistar “homens de verdade”, que “sejam másculos, ativos, empreendedores e penetradores” (p. 06).

A teoria queer também tem influenciado o trabalho de pesquisadores e pesquisadoras do campo educacional no Brasil e em outros países. Para Meyer (2003), as reflexões geradas pelos estudos pós-feministas pressupõem uma articulação intrínseca entre gênero e educação e ampliam a idéia de processo educativo, uma vez que enfatizam a construção e transformação dos sujeitos através de instâncias sociais – como cinema, música, mídia, literatura, brincadeiras, além do contexto familiar e escolar – e destacam minuciosas estratégias pelas quais o gênero atua constituindo diferentes estruturas sociais.

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