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Defeitos nas teorias da influência moral, do exemplo e mística

No documento Misael Nascimento e Ivonete Porto (páginas 90-94)

10 Defeitos do “Jesus” inventado

10.3 Defeitos nas teorias da influência moral, do exemplo e mística

Respondendo a Anselmo, Abelardo diz que o propósito principal da morte de Jesus é dar ao homem uma visão do amor de Deus pelos pecadores. E esta percepção — o coração ser tocado por este amor — basta. O que Deus requer de nós é que respondamos à revelação do amor divino, no Cristo crucificado, dando a ele nosso amor. De acordo com Horton, “apenas os corações mais gélidos poderiam resistir à sua atração e permanecer inimigos de Deus”.222 Jesus é destacado como exemplo ou influência moral.

O primeiro senão vem de Berkhof: “Esta teoria priva a expiação do seu caráter objetivo e, com isso, deixar de ser uma verdadeira teoria da expiação. [...] Ela realmente confunde o

método de salvação [...] com a experiência que o homem salvo tem da salvação”.223 O mais

grave, porém (segundo senão), é que de acordo com a teoria da influência moral: 215 HORTON, op. cit., loc. cit.

216 BERKHOF, op. cit., loc. cit. 217 Ibid., loc. cit.

218 MORRIS, 2009, p. 420-421. Grifo nosso. 219 Cf. HORTON, op. cit., loc. cit.

220 BERKHOF, op. cit., loc. cit. 221 Ibid., loc. cit.

222 HORTON, op. cit., loc. cit.

78 A doutrina da salvação: Eleição e redenção

Não há nenhum princípio da natureza divina que necessariamente requeira satisfação da parte do pecador; e [...] a morte de Cristo não deve ser considerada como expiação pelo pecado. [...] Ela garante aos pecadores que não há obstáculo algum da parte de Deus que o impeça de perdoar os seus pecados. Ele não somente pode fazê-lo sem receber qualquer satisfação, mas está mesmo ansioso por fazê-lo. O único requisito é que os pecadores venham a ele com corações penitentes.224

Dito de outro modo, a expiação não é necessária. Para ser salvo, o homem só precisa “aceitar o amor de Deus”, sem qualquer preocupação com justiça divina punitiva.

Isso se desdobra, no século 16, no socinianismo, um sistema de crença proposto por dois teólogos leigos, Lélio (que participa de debates com o próprio Calvino) e Fausto Socino. Este último não subscreve a crença ortodoxa da Trindade e afirma que a morte de Jesus deve ser entendida como mero exemplo de perseverança.225 “O propósito de sua [morte e] ressurreição

foi mostrar, por seu exemplo, que aqueles que obedecem a Deus são livres de toda morte e dar ao próprio Cristo o poder de conceder vida eterna a todos os que o obedecem”.226

Percebamos a sutileza do defeito doutrinário. Fausto Socino prega, de todo coração, que Jesus é Salvador (uma verdade). O detalhe é que ele diz que Jesus nos salva por seu exemplo (outra verdade) e por seu poder (terceira verdade) — não por sua morte na cruz (aqui está a omissão defeituosa).227 Breward resume este entendimento:

Sua crença [de Fausto Socino] era a de que Jesus não morreu para a satisfação do pe- cado; seu papel teria sido o de inspirar os discípulos a seguirem seu exemplo, porque somente aqueles que perseverassem em obediência seriam ressuscitados dentre os mortos.228

Para Bavinck, esta doutrina propõe um dilema falso — perdão ou satisfação: A Escritura diz claramente que Deus perdoa o pecado pela graça e o perdão exclui

satisfação. A afirmação de que Cristo sofreu por nós não tem significado substitutivo,

mas apenas diz que Cristo sofreu por nós não para satisfazer a Deus, mas para nos libertar do pecado. As palavras “redenção”, “reconciliação”e assim por diante apenas indicam que Cristo nos mostrou como podemos ser libertos do serviço e da punição do pecado, mas definitivamente não que Deus tinha de ser reconciliado por meio de um sacrifício, pois Deus estava graciosamente disposto em nosso favor e tornou isso conhecido a nós por meio de Cristo.229

Ratificando e, ao mesmo tempo, adaptando Abelardo, o socinianismo ensina que: Se Deus quer punir ou perdoar o pecado é algo que de nenhuma forma é determi- nado por sua natureza, mas por sua vontade. Deus pode muito bem — e melhor do que um ser humano — perdoar os pecados sem satisfação. De fato, sua justiça é anu- lada pela satisfação porque pune o inocente e inocenta o culpado e sua misericórdia

224 Ibid., loc. cit. Grifos nossos.

225 BREWARD, I. Socino e Socinianismo. In: FERGUSON, op. cit., p. 932. 226 SOCINO, Fausto. Racovian Catechism, q. 384, apud BAVINCK, 2012, p. 352. 227 HODGE, op. cit., p. 796.

228 Ibid., loc. cit.

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perde seu valor se só puder se manifestar depois da satisfação. Deus, portanto, sempre prometeu perdão ao penitente e quer que o sigamos nisso.230

O problema se aprofunda quando se afirma (no socinianismo) que “a satisfação tam- bém é impossível [...] porque, ao contrário das dívidas em dinheiro, os débitos morais não pode ser transferidos de uma pessoa para outra. Punir um inocente por causa do pecado de outra é injusto e cruel”.231 Este passa a ser, no século 20, o entendimento de Rudolf Bult-

mann e do liberalismo teológico:

Que conceitos de culpa e justiça se encontram à base de tais concepções? Que conceito primitivo de Deus? Se devemos entender o conceito da morte de Jesus Cristo como expiatória de pecados a partir de ideias sacrificiais: Que mitologia primitiva que um ser divino feito ser humano expie através de seu sangue os pecados dos seres humanos! Esta interpretação mitológica, em que se mesclam concepções sacrificiais e uma teoria jurídica de satisfação, não é admissível para nós.232

A última dificuldade (outro falso dilema) é a seguinte: O que é mais elevada, a mise- ricórdia de Cristo ou a exigência de satisfação de Deus? Os socinianos dizem que, se acei- tarmos a doutrina de sacrifício vicário, corremos o risco de sermos mais gratos a Cristo do que a Deus e isso abre espaço “para a negligência e a incredulidade”.233

Deve nos fazer pensar que Fausto se estabelece na Polônia e impressiona um grupo de crentes fragilizados. Seu sistema destaca o valor da vida moral e devocional, bem como a importância de uma fé simples e gentil para com os que pensam diferente.234

O resultado final, porém, é uma religião que nega o sentido expiatório da morte de Cristo na cruz e sublinha o desempenho e justiça própria do crente — a salvação por seguir o exemplo de Jesus. Pensemos na pergunta: “O que nos faz humildes?” O crente bíblico dirá que o Espírito Santo produz humildade no coração dos que são salvos pela morte de Cristo na cruz. O crente sociniano admoestará que temos de ser humildes, conforme o exemplo dado por Jesus na cruz, para que sejamos salvos.

Horton informa que “a tendência pelagiana da teologia moderna adotou esse modelo como a interpretação correta da morte de Cristo”.235 Mesmo um teólogo arminiano como

Olson, admite que Socino ensinou doutrinas heréticas sobre Jesus Cristo e a salvação, abra- çadas depois por unitaristas, pelo liberalismo teológico e por pluralistas.236

230 Ibid., p. 353.

231 Ibid., loc. cit. Grifos nossos.

232 BULTMANN, Rudolf. Novo Testamento e Mitologia. In: Crer e Compreender: Artigos Selecionados, p. 18, 39, apud FERREIRA; MYATT, op. cit., p. 590. Bultmann e o liberalismo teológico “não admitem”, destarte, a doutrina da expiação abraçada pelos cristãos bíblicos e pais reformadores.

233 BAVINCK, op. cit., loc. cit. Entendamos que, para eles, Cristo foi “qualificado” para ser chamado Deus e ado- rado, somente depois da ressurreição (HODGE, op. cit., loc. cit.).

234 Breward (op. cit., p. 933) informa que “como sistema de crença e vida cristã, o socinianismo fez adeptos não somente na Polônia e na Hungria, mas em muitos lugares onde houvesse crentes desamparados por amarga luta teológica e que buscassem um cristianismo mais simples, mais bíblico e mais tolerante”.

235 HORTON, op. cit., p. 533. Grifo nosso.

236 OLSON, Roger. História das Controvérsias na Teologia Cristã: 2000 Anos de Unidade e Diversidade. São Paulo: Vida, 2004, p. 331, 358, 389. O socinianismo propõe uma forma de adocianismo. Para o adocionismo, Jesus é uma “pessoa divinizada” (OLSON, 2004, p. 330). “O adocianismo reduz o evangelho a uma mensagem de se- guir a Deus como fez o homem Jesus. Em última análise coincide com um ‘evangelho’ de autossalvação porque reduz Cristo a mero exemplo” (ibid., p. 331). Unitarismo é o rótulo de todas as religiões que se dizem cristãs, mas negam a doutrina da Trindade (HODGE, ibid., loc. cit.). Pluralistas são os que defendem a ideia de uma

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Por fim, saibamos que o juízo sociniano — sobre a pessoa e obra de Cristo — influen- cia a teoria mística, cujo centro é a ideia de consciência de Deus, ligada especialmente a Friedrich Schleiermacher (1768—1834), como segue:

Para Schleiermacher, Cristo é igual ao resto da humanidade, exceto pelo fato de que “desde o início ele possuía uma absoluta e poderosa consciência de Deus”. Esta cons- ciência não era produto apenas da humanidade — era resultado da ação de Deus em sua vida. Era, porém, uma consciência completamente humana de Deus.

[...] Essa consciência ideal de Deus, que Jesus possuía, é suficiente para expressar o que o cristão chama de sua “divindade”.237

Sendo assim, e notemos o tamanho do problema, “o Redentor traz o crente para den- tro do poder de sua consciência de Deus e essa é a sua atividade redentora”.238 Ou seja, Cris-

to salva nos trazendo para dentro de sua consciência da Deus, e não por sua morte na cruz. Nesses termos, a teoria mística propõe uma elevação da alma sem expiação. Acertadamen- te, Berkhof afirma que esta teoria “não leva em conta a culpa do homem”.239 Além disso,

“desconhece toda e qualquer justificação e entende que a salvação consiste na santificação subjetiva”.240 Também distorce o que a Bíblia ensina sobre a pessoa de Cristo, sugerindo

que Jesus “participa da corrupção do pecado e da depravação hereditária”.241

Outro resultado dos defeitos destas teorias é o apontamento dos refletores apenas so- bre o aspecto subjetivo da expiação. A salvação deixa de ser garantida por algo que ocorre objetivamente, na cruz e na história, e passa a ser descrita como algo que depende do que ocorre subjetivamente, dentro do homem — uma decisão de seguir um exemplo ou uma consciência de Deus.

Trocando em miúdos, tais teorias inspiraram o retrato de um falso “Jesus”, descrito meramente como modelo de espiritualidade e moral e avatar místico e para uma imagem editada da vida cristã; uma espiritualidade norteada por sentimentos e subjetividade. Isso pavimenta o caminho tanto para o liberalismo teológico, quanto para distorções evangéli- cas que valorizam o fervor e o compromisso piedoso, ao mesmo tempo em que desprezam a verdade bíblica doutrinária objetiva. Deste modo, salvação e santificação passam a ser articuladas em torno das decisões, sentimentos e ações do homem.

Para Bavinck, tais ideias contrariam o ensino de Lutero e Calvino. “Não o Cristo por nós, mas o Cristo em nós, não o Verbo, mas o Espírito, era considerado a essência da re- ligião”.242 Vemos isso acontecer com Nikolaus Ludwig von Zinzendorf (1700-1760), um

dos formadores do pietismo, influenciador das missões modernas e pastor da Igreja dos Irmãos Morávios.243 De acordo com Olson:

O conde era um forte crítico da ortodoxia e da teologia formal e sistemática. Decla- rou: “Quando a verdade se torna um sistema, deixa de ser verdade”. Em seus muitos salvação para todas as pessoas, indistintamente.

237 FERREIRA; MYATT, op. cit., p. 591.

238 SCHLEIERMACHER, Friedrich. The Cristian Faith, p. 425, apud ibid., loc. cit. Grifo nosso. 239 BERKHOF, op. cit., p. 358.

240 Ibid., loc. cit. 241 Ibidem.

242 BAVINCK, 2012, p. 350.

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sermões e cartas, Zinzendorf colocava a experiência cristã e os sentimentos piedosos no âmago do cristianismo autêntico e deixava a teologia e doutrinas formais em se- gundo plano. “A religião do coração” tornou-se o ideal pelo qual ele e os morávios lutaram com todo o empenho. Para eles, os julgamentos teóricos e conceitos intelec- tuais a respeito de Deus eram estranhos à essência verdadeira do cristianismo que era experimentar Deus com fervor apaixonado.244

Parece muito espiritual, e repito que estamos falando sobre um dos grande influencia- dores do movimento missionário moderno. O que importa é Cristo influenciando a alma diretamente. Cristo aplicado diretamente na veia, e não na mente. Cristo sentido e não pensando ou entendido. O Espírito produzindo experiências de Cristo a despeito de en- tendimento bíblico sobre a expiação de Cristo. Resultado, quanto à doutrina da expiação:

De acordo com Zinzendorf, Cristo é o criador e sustentador de todas as coisas, o Yahweh [seNhor] do AT que especialmente revelou o amor de Deus ao se tornar tão

pequeno, pobre e humilde e ao sofrer tanto. Seu sofrimento não é tanto punição e satisfação a Deus, mas martírio voluntário e amoroso. É assim que seu sangue e sua morte se tornam a fonte de vida para a humanidade. Os ferimentos de mártir do lado de Cristo são a matriz da raça humana, a origem do Espírito, que, derivando de Cris- to, se derrama em todos.245

O prejuízo maior aqui é o estabelecimento de um protótipo de obra missionária em que são dissociadas a ação evangelística piedosa da doutrina sadia; a missão que desconsi- dera o ensino correto sobre a expiação; o embuste de pregar como pelagiano para só depois doutrinar como calvinista. Isso rebaixa o evangelho a uma estratégia desonesta de venda; o uso de um meio ruim (atrair a alma com um discurso falso) para atingir um fim “bom” (pretensa salvação da alma).

No documento Misael Nascimento e Ivonete Porto (páginas 90-94)