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A Defensoria Pública como Função Essencial à Atividade Jurisdicional do Estado

A Constituição Federal de 1988 inovou, em seu art. 13429, ao tratar pela primeira vez da Defensoria Pública, qualificando-a como instituição essencial ao desempenho da atividade jurisdicional do Estado e atribuindo-lhe o relevante papel de orientação jurídica e defesa, em todos os graus, dos necessitados.

29 “Art. 134 - A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV)”.

A idéia de assistência jurídica na ordem jurídica brasileira, tal como hoje concebida, remonta às Ordenações Filipinas (1603), que vigoraram no país até 1916. Tal legislação assegurava isenção de custas àqueles que afirmassem em juízo sua situação de pobreza30.

A primeira referência histórica relacionada ao patrocínio de causas por advogados àqueles com insuficiência de recursos dá-se em 1870, pelo Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros, que disponibilizava alguns de seus membros para dar, gratuitamente, consultas jurídicas às pessoas pobres e defendê-las em juízo (SILVA, José Fontenelle, 2008, p. 1).

Somente a partir do Código Civil de 1916 os Estados começaram a legislar sobre normas de assistência judiciária. E em 1939, o Código de Processo Civil abordou o tema no capítulo “Das despesas judiciais” (BRITTO, 2008, p. 04).

A nível constitucional, a disciplina da assistência judiciária iniciou-se pela Constituição de 1934, que determinava à União e aos Estados a concessão de assistência

judiciária aos necessitados, através de órgãos especiais, de forma a assegurar “a isenção de

emolumentos, taxa e selos” (art. 113, 32)31.

O Estado de São Paulo, no ano de 1935, foi o primeiro do país a prestar um serviço de Assistência Judiciária do Brasil. A iniciativa foi seguida pelos Estados do Rio Grande do Sul e Minas Gerais (SILVA, José Fontenelle, 2008, p. 2; OLIVEIRA, 2006, p. 12).

30 Assim dispunha o Livro III, Título 84, § 10: “§10 – Em sendo o agravante tão pobre que jure não ter bens móveis, nem de raiz, nem por onde pague o aggravo, e dizendo na audiência uma vez o Pater Noster pela alma Del Rey Don Diniz, ser-lhe-á havido, como se pagasse os novecentos réis, contanto que tire de tudo certidão dentro do tempo, em que havia de pagar o aggravo” (SILVA, José Fontenelle., 2008).

31 “Art. 113, CF/1937 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidadedos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:[...] 32) A União e os Estados concederão aos necessitados assistência judiciária, criando, para esse efeito, órgãos oficiais assegurando a isenção de emolumentos, custas, taxas e selos”.

Após o silêncio da Constituição de 1937, a temática apenas voltou a ser tratada na Constituição de 194632. Sob a égide desta, foi editada a Lei nº 1.060/50, que, a pretexto de disciplinar a assistência judiciária, referiu-se tão-somente à “Justiça Gratuita”33, tratando da possibilidade de concessão de isenção de custas processuais e honorários advocatícios. O deferimento desta isenção era condicionado à apresentação ao juiz de requerimento acompanhado por documentos comprobatórios do estado de pobreza34.

À época da edição da referida lei, conforme aponta BRITTO (2008, p. 5), “não havia Defensoria Pública, e a assistência judiciária deveria ser prestada por um serviço organizado e mantido pelo Estado, ou mediante indicação feita pela Ordem dos Advogados por sua secção estadual correspondente, nos locais onde não houvesse aqueles serviços”.

Com as alterações processadas pela Lei nº 7.510/8635, a Lei nº 1.060/50 consagrou a obrigatoriedade de concessão da gratuidade de justiça aos necessitados, passando o estado de pobreza a gozar de presunção juris tantum, mediante simples declaração da parte.

A Constituição de 1967, por sua vez, manteve a mesma disciplina constante da Carta anterior, determinando, na forma da lei, a concessão de assistência judiciária. Apenas com a Constituição Federal de 1988 pode-se notar a existência de alterações substanciais na matéria, sendo a assistência jurídica integral e gratuita erigida à categoria de direito fundamental, nos

32 “Art. 141, CF/1946 - .A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: [...] §35 – O poder público, na forma que a lei estabelecer, concederá assistência judiciária aos necessitados”.

33 MIRANDA, P. (1967, p. 460), referindo-se ao equívoco legal, esclarece a diferença entre os dois conceitos: “Assistência Judiciária e benefício da justiça gratuita não são a mesma coisa. O benefício da justiça gratuita é direito à dispensa provisória de despesas, exercível em relação jurídica processual, perante juiz que promete a prestação jurisdicional. É instituto de direito pré-processual. A Assistência Judiciária é organização estatal, ou paraestatal, que tem por fim, ao lado da dispensa provisória de despesas, a indicação de advogado. É instituto de direito administrativo”.

34 “Art. 4º, L1060/50 - A parte que pretende gozar os benefícios da assistência judiciária, requererá ao Juiz competente lhes conceda, mencionando, na petição, o rendimento ou vencimento que percebe e os encargos próprios e os da família. § 1º - A petição será instruída por um atestado de que conste ser o requerente necessitado, não podendo pagar as despesas do processo. Êste documento será expedido, isento de selos e emolumentos, pela autoridade policial ou pelo prefeito municipal”.

35 “Art. 4º, L1060/50 - A parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família.(Redação dada pela Lei nº 7.510, de 1986)

§ 1º. Presume-se pobre, até prova em contrário, quem afirmar essa condição nos termos desta lei, sob pena de pagamento até o décuplo das custas judiciais. (Redação dada pela Lei nº 7.510, de 1986)”.

termos do art. 5º, inciso LXXIV: “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.

O Constituinte de 1988, tendo em vista a necessidade de efetivação do direito fundamental à assistência jurídica integral e gratuita, criou uma instituição precipuamente voltada para esse fim, a Defensoria Pública. Com efeito, esta instituição apresenta, no contexto do sistema de direitos e garantias fundamentais, o papel relevantíssimo de efetivar o acesso à justiça de milhões de brasileiros, em total consonância com o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana36.

Cumpre ressaltar a abrangência que adquiriu o direito ora tratado, através do acolhimento das lições doutrinárias que apontavam para a necessidade de ampliação do conceito de assistência judiciária. Nesse sentido, WATANABE (1984, p. 87) considerava a noção insuficiente, por ser sempre relacionada a um conflito a ser dirimido em juízo e a uma pessoa determinada, pelo que defendia uma acepção ampla da expressão:

Na acepção ampla, tem o sentido de assistência jurídica em juízo ou fora dele, com ou sem conflito específico, abrangendo serviço de informação e orientação, e até mesmo

de estudo crítico, por especialistas de várias áreas do saber humano, do ordenamento jurídico existente, buscando soluções para sua aplicação mais justa e, eventualmente, sua modificação e inclusive sua revogação. Mais adequado seria chamar-se, serviço de semelhante amplitude, de ‘assistência jurídica’, em vez de ‘assistência judiciária’ (grifo do autor).

Vê-se, pois, a adoção de um sentido amplo da assistência, qualificada agora de “jurídica” e “integral”, garantindo a plenitude do acesso à justiça aos necessitados. O termo “integral” apresenta uma cláusula aberta que permite ao intérprete agregar ao seu conteúdo o maior número de situações concretas possíveis, mormente aquelas relacionadas a direitos coletivos.

36 Algumas Constituições Estaduais, inclusive, explicitaram a íntima ligação entre Defensoria Pública e a Dginidade da Pessoa Humana, a exemplo da Constituição do Estado do Piauí: “Art. 153 - A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, com fundamento na dignidade da pessoa humana, a assistência jurídica integral e gratuita e a representação judicial e extrajudicial, em todas as esferas administrativas e instâncias judiciais, àqueles que, na forma da lei, sejam considerados necessitados. Parágrafo Único. A Defensoria Pública tem por chefe o Procurador Geral da Defensoria Pública, nomeado em comissão pelo Governador, dentro os integrantes da carreira, com prerrogativas e remuneração de Secretário de Estado" (grifo do autor).

Sem dúvida, a assistência jurídica integral abrange a adequada e efetiva tutela dos direitos, interpretação esta que se coaduna perfeitamente com o disposto na Constituição Federal de 1988, seja em razão de sua positivação como direito fundamental, seja por seu caráter instrumental, a serviço da máxima efetividade dos direitos fundamentais dos hipossuficientes.

Para MOREIRA (1994, p. 59):

A mudança do adjetivo qualificador da ‘assistência’, reforçada pelo acréscimo do ‘integral’, importa notável ampliação do universo que se quer cobrir. Os necessitados fazem jus agora à dispensa de pagamento e à prestação de serviços não apenas na esfera judicial, mas em todo o campo dos atos jurídicos. Incluem-se também na franquia: a instauração e movimentação de processos administrativos, perante quaisquer órgãos públicos, em todos os níveis; os atos notariais e quaisquer outros de natureza jurídica, praticados extrajudicialmente; a prestação de serviços de consultoria, ou seja, de informação e aconselhamento em assuntos jurídicos.

Destaque-se a importante tarefa da Defensoria Pública no que diz respeito à sua atribuição de orientação jurídica, a qual abrange não somente um assessoramento formal a quem procura a instituição, mas também o dever de informar, sobretudo às comunidades carentes, sobre a existência de direitos fundamentais, precipuamente aqueles de cunho coletivo, contribuindo, assim, para a mobilização político-social e a adequada reivindicação de direitos.

Nesse contexto, fácil constatar a importância da Defensoria Pública na efetivação dos direitos fundamentais dos hipossuficientes, daí sua categorização como instituição essencial à função jurisdicional do Estado, vale dizer, houve o reconhecimento de sua fundamentalidade para o exercício de cidadania, aqui considerada como “o direito a ter direitos” 37 (ARENDT apud LAFER, 1997, p. 4), contribuindo decisivamente para a promoção e defesa do regime democrático.

37 Segundo LAFER (1997, p. 4): “A experiência histórica dos displaced people levou Hannah Arendt a concluir que a cidadania é o direito a ter direitos, pois a igualdade em dignidade e direito dos seres humanos não é um dado. É um construído da convivência coletiva, que requer o acesso a um espaço público comum. Em resumo, é esse acesso ao espaço público – o direito de pertencer a uma comunidade política – que permite a construção de um mundo comum através do processo de asserção dos direitos humanos”.

Assim, depreende-se que a mencionada instituição pública está intimamente relacionada à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, comprometida com a erradicação da pobreza e da marginalização social, e com a promoção do bem-estar de todos, objetivos fundamentais a serem perseguidos pela República Federativa do Brasil, nos termos do art. 3º da Constituição Federal de 198838.

Representa, pois, a Defensoria Pública instrumento de afirmação e promoção da dignidade da pessoa humana, a qual, segundo SARLET (2008, p. 63), deve ser entendida como:

[...] a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, o complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.

Nessa perspectiva, a previsão da Defensoria Pública, órgão diretamente comprometido com o acesso efetivo à justiça dos necessitados, pela ordem constitucional instaurada em 1988 significou inestimável avanço, sobretudo ao se considerar que, pela primeira vez, houve uma determinação constitucional no sentido de implantação pela União e pelos Estados de uma instituição pública, de abrangência nacional e com delineamentos próprios, encarregada de tão relevantes atribuições39.

Cumpre observar, portanto, que o papel do defensor público não deve ser o de um mero advogado público do necessitado, deve, antes de tudo, assumir uma postura de agente comprometido com a transformação da sociedade, ultrapassando, pois, o esquema de atuação arcaico, privatista e fragmentado, por se centrar exclusivamente no cidadão individualmente considerado.

38 “Art. 3º - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

39 “Art. 134, §1º, CF - § 1º Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais”.

A adoção - sem prejuízo da necessária assistência individual ao particular - de uma perspectiva coletivista de atuação, com vistas a atender as crescentes demandas sociais coletivas, revela-se um poderoso instrumento catalisador de mudanças da estrutura estabelecida, contribuindo decisivamente para a concretização do acesso efetivo à justiça, como será analisado mais adiante.