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Como ressalta IBRI (1992), o que sustenta a hipótese metafísica do acaso

para Peirce são os fenômenos da diversidade e variedade da natureza. O acaso é um princípio ontológico associado à irregularidade e assimetria encontradas na Natureza. O Acaso é o modo de ser do incondicionado na existência, impactando, assim, em liberdade. Faz parte da primeira categoria, de ser primeiro, sem vínculos com qualquer necessidade lógica.

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Em um sistema isolado onde apenas forças conservativas causam variações de energia, a energia cinética e a energia potencial podem variar, mas a sua soma, a energia mecânica do sistema, não pode variar.

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O acaso confere liberdade para o ato de cada particular. Como princípio geral, ele está destituído da necessidade lógica que caracteriza a força de uma lei. O acaso atua de modo que a segundidade do fato não seja estritamente regida pela terceiridade da lei; a existência possui, assim, um elemento de espontaneidade, conferida pela primeiridade do acaso.

Sobre a primeira categoria:

...é licito considerar indissolúvel o par acaso e qualidade. O acaso como uma

propriedade de uma distribuição requer a potencialidade de alguma coisa a ser distribuída, no caso, a qualidade no fato, ou seja, o que é primeiro no segundo. As Qualidades são gerais, vagas e potenciais. Uma qualidade é mera potencialidade abstrata, uma potencialidade do mundo (primeiridade). Ela não é nada que seja, em seu ser, dependente da mente, quer na forma de sentidos ou do pensamento. Nem é dependente, em seu ser, do fato de que alguma coisa material a possua. Mas sua ocorrência é individual. Assim, o acaso pode ser considerado como o modo de ser da distribuição das qualidades nos individuais. (IBRI: 1992, pg. 41)

O quadro abaixo, baseado em IBRI (1992),13 apresenta um esquema

esclarecedor enquanto síntese da primeira categoria:

Principio Mundo (Fenomenologia)

Fenomenológico Ontológico Interno Externo

Liberdade Acaso Unidade de Quali-consciência Incondicionalidade Atemporalidade Diversidade Variedade Assimetria Irregularidade

A interioridade, em Peirce, só é conhecida pelo seu modo potencial, na medida em que se realiza no mundo exterior. A Qualidade (potência) torna-se ato sob a regência do acaso. Não há intencionalidade, mas liberdade.

Peirce, desta forma, substitui a teoria do determinismo pelo acaso ontológico. Cabe notar que, em sua teoria do tiquismo14, Peirce não nega a

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regularidade do mundo mecânico; apenas não a considera estrita. A total ausência de regularidade significaria caos. Assim, o que o autor contesta é uma regularidade absoluta advinda de um determinismo restrito. Na concepção peirciana de realidade, existe espaço tanto para as leis quanto para o acaso, ou seja, há uma combinação entre necessidade e possibilidade.

Conforme comenta SALATIEL (2008), o que Peirce questiona é uma

doutrina que generaliza a causalidade mecânica e afirma que: ―dado A, segue-se necessariamente B‖ (CP 6.592; 1893). Para tanto (conforme já comentado no item 2.1.2), Peirce começa sua crítica pelo viés epistemológico, mostrando que o determinismo não pode ser um postulado científico. Em seguida, o autor apresenta sua argumentação ontológica contra o determinismo e a favor do acaso.

Segundo o autor “(...) a essência da posição necessitarista é a de que certas quantidades contínuas têm valores exatos” (CP 6.44). Quer dizer, a condição é a de que os valores das variáveis (posição e aceleração, por exemplo) possam ser aferidos com precisão, de outro modo haveria uma quebra na causalidade. Mas é justamente esta precisão infinitesimal que não é possível de ser verificada empiricamente, ou mesmo matematicamente. Esta é, para Peirce, uma suposição ridícula (CP 6.44) (SALATIEL: 2008, pg. 80).

Para Peirce, esta imprecisão não é decorrente de erros de observação, apesar de também acontecerem. A imprecisão é ontológica. Quanto mais precisas as observações de qualquer lei da natureza, mais afastamentos irregulares da lei ocorrerão (CP 6.36). Estes comportamentos irregulares devem ser atribuídos a um princípio de acaso operando no universo e não por circunstâncias subjetivas como erros de observação ou desconhecimento de causas. Este acaso é observado externamente na diversidade e complexidade do Universo e está vinculado ao modo de ser da Primeiridade, portanto, da ordem da originalidade, espontaneidade, liberdade, variedade, indeterminação e irregularidade.

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Importante notar que a tese de Peirce não significa dizer que as coisas ocorram por acaso, mas sim que o acaso é o principio original da organização.

Destas passagens (CP 6.58 e CP 6.59) chamamos atenção para a tese mais ousada e o ponto crucial da ontologia tiquista perciana: a hipótese de que o acaso é fonte de organização, de complexidade, em um universo em evolução. Em outras palavras, Peirce não pretende explicar que as coisas ocorrem “por acaso”, mas, ao contrário, que o acaso é que explica a origem da organização em sistemas, o fenômeno universal da diversidade do cosmos. “Eu faço uso do acaso principalmente para dar lugar ao princípio da generalização, tendência de formar hábitos, que afirmo ter produzido regularidades.” (CP 6.63) (SALATIEL: 2008, pg. 83).

Em ―The Doctrine of Necessity Examined‖ (CP 6.35-65; 1892) e posteriormente em ―Reply to Necessitarians‖ (CP 6.588-618; 1893), Peirce apresenta cinco argumentos na qual defende o acaso ontológico e substitui a teoria do determinismo pela hipótese do tiquismo.

1. Argumento da evolução ou do crescimento:

Para Peirce, a análise de qualquer ciência que lida com o curso do tempo, seja mineral, vegetal ou animal, mostra que o universo evolui e aumenta sua complexidade. Segundo o autor, o determinismo não pode explicar os fenômenos não conservativos como ―nascimento, crescimento e vida‖. Deve haver um princípio de espontaneidade, que produza desvios da lei, sem o qual a evolução e a vida não seriam possíveis. Este princípio de espontaneidade é o acaso.

2. Argumento da variedade:

A diversidade e variedade não podem ser explicadas pelo determinismo, uma vez que ela expressa diferenças e não semelhanças. Um homem não é igual a outro. Até mesmo o notebook no qual digito este texto, apesar de um produto fabril, não é igual a outro. Apesar do conceito de homem ser o mesmo, o que nos permite

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classificarmos como seres semelhantes (da ordem da terceiridade), cada um de nós é singular (da ordem da primeiridade).

Admitindo a pura espontaneidade ou a vida como uma característica do universo, agindo sempre e em toda parte embora restritas dentro de limites estreitos por lei, produzindo infinitesimais desvios da lei continuamente e grandes desvios raramente, Eu credito a ela toda a variedade e a diversidade do universo, no sentido único em que realmente o sui generis e o novo podem ser contabilizados. O senso comum tem de admitir a inesgotável variedade do mundo, tem de admitir que a lei mecânica não dá conta disso, pelo menos, que a variedade pode originar apenas a partir de espontaneidade e ainda negar, sem qualquer prova ou razão, a existência dessa espontaneidade, ou então devolvê-lo de volta para o início do tempo e supô-lo morto desde então15.(CP 6.59)

O acaso, portanto, seria responsável pela variedade e diversidade que existe no mundo. O surgimento do novo ocorre pelo acaso. Fica evidente neste argumento a influência da teoria de Darwin sobre a origem das espécies. Peirce também ressalta que a hipótese da espontaneidade explica a irregularidade de modo geral e não específico.

Cabe lembrar, como ressalta IBRI (1992), acaso como ―princípio

responsável‖ não significa ―causa‖, associado à idéia de lei, mas sim como modo de ser correlacionado com a irregularidade e assimetria tal qual como existente no mundo.

3. Argumento da origem da lei:

O terceiro argumento está associado à forma como a mente estabelece associações e como percebemos a uniformidade da natureza. Segundo Peirce, não

15 By thus admitting pure spontaneity or life as a character of the universe, acting always and everywhere

though restrained within narrow bounds by law, producing infinitesimal departures from law continually, and great ones with infinite infrequency, I account for all the variety and diversity of the universe, in the only sense in which the really sui generis and new can be said to be accounted for. The ordinary view has to admit the inexhaustible multitudinous variety of the world, has to admit that its mechanical law cannot account for this in the least, that variety can spring only from spontaneity, and yet denies without any evidence or reason the existence of this spontaneity, or else shoves it back to the beginning of time and supposes it dead ever since.

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temos como explicar uma lei se a mesma for fundamentalmente original e absoluta. Para o autor, a mente toma consciência do outro por associação. Só tenho consciência do ―Eu‖, se conheço o ―não-Eu‖. Da mesma forma, a lei só gera lei e, portanto, não podemos explicar a lei a não ser por outra lei, o que seria tautológico. A lei deve se originar da não-lei. Desta forma teríamos uma explicação plausível: do indeterminado (não-lei) para o determinado (lei). Cabe ressaltar que a não-lei, pelo seu caráter de indeterminação, não requer explicação. Ela sim é o principio original.

Há um processo evolucionário da ―não-lei‖ para a ―lei‖, do acaso para a lei. E, como o processo evolucionário ainda não atingiu seu estado final, existe um elemento do imponderável que impossibilita a total submissão à lei.

Peirce propõe que esta evolução, do acaso à lei, deva obedecer a um principio único, da natureza de uma lei. O autor vai encontrar este principio na ―grande lei da mente‖, cuja tendência é de generalização, associação e aquisição de hábitos.

Mas, se as leis da natureza são resultados da evolução, esta evolução deve proceder de acordo com algum princípio; e este princípio será, em si mesmo, da natureza de uma lei. Porém, ela deve ser uma lei que pode evoluir ou se desenvolver por si mesma... Evidentemente ela deve ser uma tendência à generalização – uma tendência generalizadora... Contudo, a tendência generalizadora é a grande lei da mente, a lei da associação, a lei da aquisição de hábitos... Assim, sou levado à hipótese de que as leis do universo têm sido formadas sob uma tendência universal de todas as coisas à generalização e à aquisição de hábitos16 (CP 7.515).

Peirce também comenta que as leis, apesar de aparentarem ser radicalmente diferentes entre si, apresentam fortes analogias. Peirce apresenta como exemplo a semelhança entre a lei das forças elétricas e a gravitação (CP 6.613). Para o autor, isto não seria possível se uma lei fosse fundamentalmente original e absoluta.

68 4. Argumento da consciência e sentimentos:

Segundo Peirce, se o mundo fosse universalmente regulado por leis, num caso extremo de determinismo, ter-se-ia que admitir, em decorrência, um materialismo em que a mente seria mero caso especial da matéria. Da mesma forma, um pensamento seria decorrente das ações ou estados anteriores e, desta forma, o estado futuro do mesmo poderia ser determinado. Neste caso, seria plausível prever o comentário que você leitor faria acerca desta tese. Assim sendo, seja em decorrência de um causalismo externo, no primeiro caso, ou um causalismo interno, no segundo caso, o livre arbítrio seria uma ilusão. Desta forma, descartando o dualismo cartesiano ou o nominalismo kantiano, Peirce propõe um idealismo objetivo, onde o acaso, responsável pela irregularidade e diversidade do mundo, seria o lado exterior do continuum da categoria de primeiridade.

5. Argumento empírico:

Neste argumento, não desenvolvido por Peirce, o autor afirma que as conseqüências da hipótese acaso-espontaneidade podem ser provadas matematicamente com precisão em detalhes consideráveis. Muitas críticas e interpretações foram feitas pelos comentadores a respeito deste argumento inconclusivo.

No documento E LEMENTOS PARA UME STUDO DOC ONCEITO DE (páginas 70-76)

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