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2 A FAMÍLIA E A CONSTRUÇÃO DO AFETO

3.1 Da Guarda de Filhos

3.1.1 Definição

O termo “guarda”, de acordo com a doutrina, tem conotação desfavorável uma vez que remete ao perfil histórico do pater famílias, com o tratamento dispensado às crianças e adolescentes como sendo objetos de domínio do pai e, posteriormente, da mãe. Segundo GAMA432, a carga semântica da palavra em

comento apresenta a noção de ato de vigilância, de sentinela, que mais se associa ao conceito de coisa guardada, o que não se revela condizente com a consideração atual de que entre pais e filhos deve existir uma perspectiva bilateral de diálogo e de troca na educação e desenvolvimento da personalidade dessas pessoas em formação. Porém, em que pese a impropriedade da palavra, é importante apresentar

432 GAMA, 2008, p. 200. O mesmo entendimento se descortina em: DIAS, 2005, p. 396; OLIVEIRA,

J.M. Leoni Lopes de. Guarda, tutela e adoção. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 35; PENA JR., 2008, p. 255; TEPEDINO, Gustavo. A disciplina da guarda e a autoridade parental na ordem civil-constitucional. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Afeto, ética, famìlia e o

sua definição433 para promover um melhor entendimento do que esse instituto

representa.

“Guarda” deriva do termo alemão warten (guarda, espera), sendo empregada em sentido genérico, para exprimir proteção, observação, vigilância ou administração. De forma mais específica, guarda de filhos é locução indicativa, seja do direito ou do dever, que compete aos pais ou a cada um dos cônjuges, de ter em sua companhia ou de protegê-los, nas diversas circunstâncias apontadas na legislação civil. E guarda, nesse sentido, tanto significa custódia como a proteção que é devida aos filhos pelos pais434.

De acordo com a lição de SZNICK435, a guarda se constitui em um direito-

dever: direito dos filhos é dever dos pais, já que se trata do poder de manter os filhos no lar, orientando em tudo o que se refere à vida em sociedade. Esse dever dos pais é instituído no interesse dos filhos, na proteção dos mesmos, que se mostram inexperientes por natureza e, portanto, necessitando de orientação, educação e afeto.

Para STRENGER436 a guarda de filhos menores é o poder-dever submetido a

um regime jurídico-legal, de modo a facultar a quem de direito prerrogativas para o exercício da proteção e amparo daquele que a lei considerar nessa condição. O autor explica que a guarda não só é um poder pela semelhança que mantém com o poder familiar, como é um dever, visto que decorre de impositivos legais, inclusive com natureza de ordem pública.

OLIVEIRA437 registra que a guarda é um conjunto de direitos e deveres que

certas pessoas exercem, por determinação legal ou judicial, de cuidado pessoal e educação de uma criança ou de um adolescente. A guarda para os genitores é um direito e um dever, de forma que cabe aos pais velar para que os filhos menores de

433 Para a doutrina em geral torna-se difícil apresentar um conceito unívoco de guarda, que se

apresenta como instituto dos mais delicados de todo o Direito de Família. Cfe. GRISARD FILHO, 2009, p. 57.

434 SILVA, 2001, p. 387-388. 435 SZNICK, 1993, p. 227-228.

436 STRENGER, Guilherme Gonçalves. Guarda de filhos. 2. ed. São Paulo: DPJ, 2006, p. 22. 437 OLIVEIRA, 2002, p. 53-54.

idade recebam os cuidados necessários para o adequado desenvolvimento físico, moral, intelectual e social.

FACHIN438, por sua vez, define a guarda como o exercício do dever de

vigilância que normalmente integra a autoridade parental. Também para o referido autor a guarda caminha em direção à proteção, sob a égide da prestação de assistência material, moral e educacional à criança e ao adolescente.

Na mesma linha de pensamento LAURIA439 aponta que a guarda consiste num

complexo de direitos e deveres que uma pessoa ou um casal exerce em relação a uma criança ou adolescente, consistindo na mais ampla assistência à sua formação moral, educação, diversão e cuidados para com a saúde, bem como toda e qualquer diligência que se apresente indispensável ao pleno desenvolvimento de suas potencialidades humanas, marcada pela necessária convivência sob o mesmo teto, implicando, inclusive, na identidade de domicílio entre a criança ou o adolescente e o respectivo titular.

Já na visão de RAMOS440, a guarda examinada sob a perspectiva do poder

familiar, é tanto um dever quanto um direito dos pais: dever, pois incumbe aos pais criar e educar os filhos, sob pena de deixarem a prole em abandono; direito no sentido dos genitores participarem do crescimento dos filhos, orientá-los e educá- los, exigindo-lhes obediência, podendo retê-los no lar, conservando-os junto a si, sendo indispensável a guarda para que possa ser exercida a vigilância, uma vez que seu titular se torna civilmente responsável pelos atos do filho.

Ainda, cabe a lição de GRISARD FILHO441 ao afirmar que o instituto da guarda

não se define por si mesmo, senão através dos elementos que o asseguram. A guarda encontra-se vinculada ao poder familiar por disposição legal442,

438 FACHIN. 1999, p. 187.

439 LAURIA, Flávio Guimarães. A regulamentação de visitas e o princípio do melhor interesse da

criança. 2. tir. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 62.

440 RAMOS, Patrícia Pimentel de Oliveira Chambers. O poder familiar e a guarda compartilhada

sob o enfoque dos novos paradigmas do Direito de Família. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2005, p. 55.

441 GRISARD FILHO, 2009, p. 58.

permanecendo ainda nos dias de hoje, com forte assento na ideia de posse443 e

surgindo como um direito-dever natural e originário dos pais, que consiste na convivência com seus filhos, além de se mostrar como pressuposto que possibilita o exercício de todas as funções parentais, que estão elencadas no artigo 1.634 do Código Civil de 2002444.

Também a lição de CARBONERA445 é colacionada ao dispor que a guarda

poderia ser compreendida como um instituto jurídico através do qual se atribui a um indivíduo, o guardião, um complexo de direitos e deveres, a serem exercidos com a finalidade de proteger e prover as necessidades de desenvolvimento de outra pessoa, colocada sob sua responsabilidade em virtude de lei ou decisão judicial

Por certo que o conceito de guarda passa, invariavelmente, pelo fato de que o instituto em comento se constitui em um dos deveres que integram o conteúdo do poder familiar, que, por sua vez, compreende os deveres de ordem jurídica que se impõem aos pais com relação aos seus filhos e a administração de eventual patrimônio que eles possuam446.

Destarte, a guarda é o direito concedido aos pais de conduzir a vida dos filhos, determinando-lhes a formação moral, sempre em busca de seu melhor interesse, com o poder de retirá-los de quem ilegalmente os detenha. É, ao mesmo tempo, um dever, um munus público de vigiar, orientar e cuidar, a que o guardião encontra-se obrigado a cumprir. Caso descumpra esse dever, comete delito e se

443 Estatuto da Criança e do Adolescente. Art. 33, § 1°. § 1º A guarda destina-se a regularizar a posse

de fato, podendo ser deferida, liminar ou incidentalmente, nos procedimentos de tutela e adoção, exceto no de adoção por estrangeiros.

444 Código Civil. Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: I - dirigir-lhes a

criação e educação; II - tê-los em sua companhia e guarda; III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; V - representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; VI - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; VII - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.

445 CARBONERA, Silvana Maria. Guarda de filhos na família constitucionalizada. Porto Alegre:

Sergio Antonio Fabris, 2000, p. 47.

446 SPENGLER, Fabiana Marion: SPENGLER NETO, Theobaldo. Inovações em Direito e Processo

sujeita a sofrer sanções penais447, além de resultar, inclusive, na perda do poder

familiar448.

Logo, o instituto da guarda destina-se à proteção e ao bem-estar dos filhos na fase da infância e da adolescência, e pode decorrer do exercício do poder familiar ou de decisão judicial449. E fica claro que diante da situação do rompimento do

convívio convencional sob o mesmo teto entre pais e filhos, seja pela separação, pelo divórcio, dissolução de união estável ou ainda daqueles que sequer tiveram a oportunidade de estabelecer tal convívio, como por exemplo, filhos de pais solteiros, a ideia de regulamentação da guarda é proporcionar-lhes um ambiente que diminua ao máximo ou que não potencialize os efeitos da grave mudança450. Não se

perdendo de vista que, em se tratando de guarda de filhos, o que deve prevalecer sempre é o interesse das crianças e adolescentes.

Cabe ainda registrar a lição de RIZZARDO451 sustentando que a guarda de

filhos menores de idade é um dos aspectos mais delicados da separação dos pais, uma vez que os efeitos do rompimento da união destilam sérios prejuízos na criação e formação da prole. Na situação de ruptura da convivência dos pais, os filhos não mais ficam concomitantemente na tutela de ambos, mas de apenas um deles, quando se dá a concessão de guarda unilateral. Ressalta o autor que, juridicamente, o pai ou a mãe não perde o poder familiar, que perdura, embora não acompanhado, do exercício da guarda. Na realidade, geralmente, quem exerce efetivamente o poder familiar é aquele que detém a guarda do filho.

Por conseguinte, diante do término da união dos pais, tradicionalmente, impõe-se a definição da guarda dos filhos a um deles ou a ambos, desde que exista consenso entre o casal. Caso não entrem em acordo, a guarda também pode ser deferida por meio de uma sentença judicial, que irá atribuir a um dos pais ou a ambos os cuidados da prole, sendo que esta modalidade se apresenta como a

447 Cfe. artigos 244 a 247 do Código Penal brasileiro.

448 QUINTAS, Maria Manoela Rocha de Albuquerque. Guarda compartilhada: De acordo com a Lei

n. 11.698/08. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 21.

449 PENA JR., 2008, p. 255.

450 GARCIA, Marco Túlio Murano. Reflexões sobre a nova redação dos artigos 1.583 e 1.584 do

Código Civil: Guarda compartilhada e outras questões. Revista IOB de Direito de Família, Porto Alegre, n. 50, p. 111, out./nov. 2008.

menos desejável, diante do inconveniente da interferência do Estado na esfera familiar.

A discussão judicial vai envolver uma equipe interdisciplinar, tendo em vista que proposta a ação de guarda, o magistrado irá determinar que se faça um estudo social, para melhor amparar sua decisão. Este estudo é elaborado por assistente social e psicólogo, mediante entrevista com as partes envolvidas no conflito e, se for o caso, com visitas aos locais de convivência das crianças e adolescentes452.

Após a elaboração do estudo social, cabe ao magistrado tomar a decisão, mediante a devida análise do laudo relativo ao estudo psicossocial e as provas produzidas nos autos, mas considerando sempre o que representa o melhor interesse da criança e do adolescente. Portanto, é justamente pela importância dada à infância e à adolescência sadias, que o interesse concreto dessas pessoas em formação é critério de decisão do magistrado. Dessa forma, o juiz, ao examinar a situação fática que foi levada ao seu conhecimento, determina, a partir de elementos objetivos, o que é, verdadeiramente, interesse de determinada criança ou adolescente em situação concreta específica.

A doutrina453 aponta que se mostra necessário ter em mente que o interesse

ao qual o magistrado se encontra vinculado é aquele capaz de proporcionar à criança ou ao adolescente o completo desenvolvimento de sua personalidade de forma madura e racional, predominando o interesse moral sobre o material.

CARBONERA454 consigna que o prioritário respeito ao interesse dos filhos vem

como uma forma de colocar em situação de maior equivalência sujeitos que entre si apresentam diferenças substanciais. É a busca da igualdade na relação paterno- filial, especialmente diante de uma ruptura que tem lugar na relação homem-mulher e cujos efeitos são sentidos diretamente pelos filhos, que, geralmente, não são consultados acerca do fim da união.

452 Ver Apêndice: TJRS (Agravo de Instrumento n. 70021489620); TJMG (Apelação Cível n.

000.253.098-8/00, Apelação Cível n. 000.329.184-6/00).

453 Cfe. SPENGLER; SPENGLER NETO, 2004, p. 81. No mesmo sentido ver: LEITE, 2003, p. 199. 454 CARBONERA, 2000, p. 125.

Por fim, ressalta-se que a guarda pode ser revista a qualquer tempo, se for verificado que o deferimento anteriormente efetuado já não assegura plenamente a proteção da criança e do adolescente.